A linha imaginária diante do abismo
Não, o Brasil não é “conservador” como se tem ouvido pelas vozes amplificadas dos comentaristas de política dos canais de televisão, ao apontarem para o mapa colorido de azul e vermelho das artes atraentes em seus telões. Não. O que lá se vê é pouco menos da metade de um Brasil historicamente “conservado” à luz – ou seria melhor dizer às trevas? – do pensamento dos senhores de engenho, que se foi atualizando em sua forma, adaptando-se às exigências do tempo, mas que em sua essência permanece o mesmo.
O capataz estilizado que conseguiu alcançar o poder cumpre agora o seu roteiro, disfarçando-se de autoridade ameaçadora com suas armas de papel e tinta, brandindo o pequeno livro verde e amarelo como se fora um chicote a garantir-lhe, mais do que tudo, a proteção contra a outra metade do Brasil. Não demorou muito para que a avidez impaciente dos donos do poder lhe confiscasse as insígnias, lembrando-lhe o seu lugar de subalternidade – o que é, senão isso, o que a imprensa convecionou chamar de “centrão”?
Mas não se chega a isso de uma eleição para outra, assim como não se cai no abismo sem os passos que levam até sua borda. Não; os miasmas da casa grande encontraram acolhida ao longo de todo o caminho que nos trouxe até aqui, infiltrando-se nas exigências do tempo e negociando, com o tilintar de seus dinheiros, a manutenção da ordem perversa dos senhores dos escravos, das minas, das fazendas, das armas, do poder – e hoje eles dominam quase a metade do Brasil, como se fosse uma grande fazenda cercada por uma linha imaginária.
A outra metade não percebeu, talvez não tenha prestado atenção, mas estava em todas as emissoras de rádio e TV, muitas vezes de forma explícita na concessão às igrejas que secularmente não se conformam com a laicidade do Estado. A representação recalcada da morte do outro através da posse de armas foi alimentada em doses midiáticas acima do suportado pelo organismo social. O racismo, a homofobia, a misoginia e tantas outras vontades de exclusão, que agora se apresentam em forma de voto, foram cultivadas sutilmente, e às vezes nem tanto, em forma de programas de TV.
Não está muito longe o tempo em que esquetes de racismo eram o mote predileto de programas de humor. Não existem metáforas inocentes; elas infiltram a realidade, insistem com o pensamento, aproveitam-se da distração e do riso, esperando a oportunidade de se manifestar concretamente, como temos presenciado, mas também simbolicamente, violentando o voto.
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Passados só existem na memória, e a memória, mesmo que multifacetada, só persiste através da lembrança. O que é o coronelismo eletrônico senão uma espécie de corporação das velhas oligarquias que agora detêm o poder de dizer, de fazer crer, de convencer? Não, não foi por distração que chegamos a esse estado de coisas. Quando a mídia é dominada, a primeira vítima é a ética da informação – como explicar então que regulação da mídia não é a mesma coisa que censura? Não, esse assunto não interessa aos jornais, nem às redes de rádio e de TV que em uníssono bradam "censura!".
A comunicação é um direito humano que está na base de todos os demais direitos. Mas onde, nos programas especiais de eleições nos multicanais, este e outros direitos estão sendo destacados? Não; o que os diferentes comentaristas entendem (e explicam!) é que o lado que representa bem mais do que a metade do povo brasileiro vota com o estômago, como se todos fossem famintos que trocam candidato e voto por um prato de comida, um litro de gasolina, um botijão de gás, um dinheiro qualquer.
Insistem em falar de dinheiro e riquezas, como se uma esmola fosse capaz de empurrar mais para lá a linha imaginária que separa o Brasil do atraso daquele que que tem fome de direitos – subestimam o aprendizado que vem do sofrimento, como se a Economia fosse um deus de todos os direitos, inclusive o de pautar o que todos devem acreditar sobre o que está em jogo nesta eleição.
“Se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (Além do Bem e do Mal, Friedrich Nietzsche). Se pode haver alguma virtude no suplício deste momento, este é o de ter-nos colocado de frente para o abismo da iniquidade, obrigando-nos a olhar para dentro de nós mesmos para encontrar a urgência de uma coragem adiada.