As Manas Má-RAIZ

As Manas Má-RAIZ

CAMPANHA DA PODA

RELATO DOIS

AS MANAS MÁ-RAÍZ

As manas Má- Raiz são danadas para a brincadeira.

Como diz o Tio Lico, da irmandade das sete da manhã, “não as mandou serem educadas pelas freirinhas, pronto. Foi buscá-las ao campo, pronto. É o que se vê, umas vadias”.

Não têm nada a ver com a velha velhaca (ver Relato um).

Gostam da farra, pronto.

E quando detectam a minha chegada, sabem que farra vai haver.

Juliana, Adriana, Mariana, Santa Ana, Catiana e Joana.

Todas da linhagem Má-Raiz, uma das mais respeitadas na espécie das roseiras bravas da planície.

A Juliana é a mais velha, tronco já largo e forte, idade adulta.

Anda de vistas com um arbusto nativo que chegou o ano passado.

Ocupa o canteiro de honra com a Adriana, a segunda mais velha.

Ainda bailam, mas com aquele comedimento que a saia já não pode ser demasiado curta.

Deixam-me sossegado com os bolbos secos, as folhas mortas e os ramos sem vida.

Claro que à medida que vou descendo para a raiz, não resistem.

A raiz está fora da terra, é grossa, forte, entrelaçada.

É preciso tocar-lhes, mexer-lhes, afastar ramos para encontrar secos e mortos.

Jovem mulher honrada não aceita atrevimentos destes.

Os picos entram em acção, rasgam braço e perna.

Mas só de aviso, de sinal.

A Mariana e a Santa Ana, que ocupam o canteiro do lado direito de quem passeia pelo jardim, estão entre o fim da juventude e a entrada nas responsabilidades.

Tempo manhoso, tempos angustiados.

Apresentam-se em caos total, como se no armário da roupa não houvesse nada, o salão do gelinho tivesse falido, e os leggings tivessem desbotado.

É ramos estruturais para Norte, Sul, Este e Oeste.

Ramos secundários enredados uns nos outros, a crescer para todo o lado.

Bem diz o Tio Lico, como umas vagabundas de Castro Verde, de cabelos ao vento.

Folhas e botões em anarquia, as primeiras a esconderem os segundos, os segundos a disfarçarem as primeiras.

É preciso domá-las.

Separar ramo a ramo, procurar ao longo de toda a superfície, de todos os ângulos.

Amansar as feras.

Tirar a folha seca, deixar a folha viçosa.

Cortar o botão morto, deixar o botão vivo.

O truque que uso é apertá-las bem com sisal vegetal da Maia.

Elas não confessam, mas gostam.

Adoram o apertão, porque festa sem ele é como bolo de hipermercado.

Muito açúcar e pouca substância.

Pena que a maneira de o mostrar seja ferrarem como se fossem machados suecos.

O sangue jorra-me nas mãos.

Mas rave a sério é com a Catiana e a Joana.

Para elas vale tudo, venha a ketamina, venha o ácido checo, venham os shots de tequila adulterada, venha o fumo do Rif.

Para ver o quilate destas duas adolescentes, tenho de contar a história da vizinha.

A Catiana e a Joana estão num canto do jardim, encurraladas pela laranjeira e pela pereira.

Junto ao muro.

Elas gostam, é o sítio perfeito para aviar vídeos do Tik-Tok, sem as manas a dar sermão.

A vizinha disse que elas só chateavam, que era para arrancar as maganas.

Tudo o homem sensato sabe a regra número um para viver em paz na aldeia.

Obedecer à vizinha.

Veio enxada, veio machado, veio serra eléctrica, veio mini retroescavadora.

Mini, está bem, mas Kubota.

Havia um problema sério.

Era para arrancar raiz sem partir a laje de xisto de Mourão.

Assim se fez, cirurgia de valor.

Não ficou nada, só laje e terra.

Assim pareceu aos anciãos convocados, apesar de todos sabermos que as raízes estavam lá, no subterrâneo.

Seis meses depois estavam por cá outra vez.

Riam-se tanto que parecia terem andado entre uma clínica de rejuvenescimento suíça e as câmaras de criogenia dos HNWE (High Net Worth Individuals), ou seja, dos ricalhaços.

Devem também ter andado no bailarico com bambus chineses.

Explico porquê.

Voltaram ao jardim com mil e um raminhos, verdes e viçosos.

Pequeninos em altura, mas mil e um viçosos.

Como os bambus do “Segredo dos Punhais Voadores”, mas com diâmetro de modelo anoréxico.

Estão a ver a rave que a Catiana e a Joana preparam para mim.

Os botões secos são milhares e por todo o lado.

As folhas secas, muito pequeninas, dezenas de milhar.

Eu dobro-me. Eu meto-me de cócoras. Eu deito-me. De barriga para baixo, de barriga para cima. Eu rastejo, palmo a palmo.

A laje de Mourão ferve, queima como um maçarico.

E cá em baixo, nas muitas raízes, estão as folhas, os caracóis, os lacraus e os frutos secos da velha Albertina Antónia, que consegue enganar as miúdas.

Não esquecendo o Exército Formigueiro do Sul (EFL).

Quando falei do EFL aos velhos, eles perguntaram-me pelo tamanho da cabeça dos soldados.

Grande, disse eu.

“Menos Mal”, garantiu o Ti Joanico, “é só o esquadrão de reconhecimento. Quando chegar o batalhão, é que vão ser elas”.

Isto de ser só o esquadrão deu conversa toda a manhã entre os veteranos da guerra.

Da quente.

Podia ser a coluna avançada, por exemplo, lembrou o Ti Pedro.

Achei melhor pedir nova rodada de cálices das clandestinas de Monchique quando um dos compadres disse para o outro “tu sabes lá de táctica, lá em Bissau nunca saíste da repartição”.

Enfim, fosse qual fosse a dimensão do inimigo, tinha de retirar tudo.

Folhas, botões, caracóis, ramos.

Para retirar qualquer dos seres, só um a um, com a faca de jardinagem japonesa, com o ancinho, com as mãos.

A rave não tem fim.

Eu caio para o outro lado.

A Catiana e a Joana sempre a acelerar, com os ramos a dançarem com o vento.

São adolescentes, mázinhas como as cobras.

Os picos não são espigões.

São drones de titânio miniaturizados.

Quando caio de joelhos, as pernas parecem ser de um boneco de peluche de um tigre da Sibéria.

Os braços parecem pertencer a um explorador que atravessou uma das equatoriais.

Não escrevo sobre o rosto, mais uma vez para não desencadear piedade ao leitor.

As manas Má-Raiz dão cabo de mim.

Para elas, é a farra do ano.

(continua)

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