Manifesto do fim de um mundo
No primeiro dia do fim de um mundo houve espanto e incredulidade. As fortes chuvas que iniciaram no final de abril alcançaram maio com uma fúria diferente. Comunidades varridas pela segunda vez em menos de oito meses, montanhas desabando, estradas se esfacelando como pedaços de papel rasgado, dezenas de pessoas sendo soterradas e muitas, centenas, milhares de edificações submergindo. Mas ainda assim, era só um ponto de atenção para quem vivia nas grandes cidades.
No segundo dia do fim de um mundo, a população de todo o Estado começava a compreender que iria enfrentar algo diferente. Não se tratava de mais um dos vendavais, ciclone, tempestade elétrica ou qualquer outro dos eventos meteorológicos que há alguns anos se tornavam frequentes. Era muito mais. As evidências estavam por todos os lados: águas fortes movidas pela correnteza invadiam tudo: casas, prédios, hotéis, escolas, igrejas, prédios públicos. Lugares que nem nas piores e longínquas catástrofes registradas na história ficaram submersos, agora estavam embaixo da água.
Nos longos dias que se seguiram, o medo filtrava o surrealismo do vivido. A agoniante música gerada por helicópteros que povoavam o céu no qual não podiam mais voar os aviões comerciais tinha o acompanhamento das sirenes e das buzinas. O bailado era provocado por bombeiros, policiais, médicos e paramédicos e cidadãos comuns dispostos a ajudar, além de, vez por outra, um grito de dor, lamento, desabafo.
Crianças, idosos, mulheres grávidas, pessoas doentes e animais desprotegidos estavam sob a violência do desastre, desabrigadas sobre os telhados e aquecidas apenas pela companhia de outros sofrimentos. O alívio era estar no desconforto da carroceria de um caminhão ou dentro de um ônibus que levava mortos-vivos para os abrigos. Quem ajudava ou estava fora de risco engordava as filas de supermercados, postos, saídas – das poucas saídas – das cidades. Era melhor enfrentar a insegurança e a incerteza dos caminhos de fuga do que a ausência de quase tudo, a sede e o escuro.
Ir para onde? Se proteger como? Até quando? Buscar por água, comida e alguma roupa era o apelo de sobrevivência no qual os raros sorrisos de esperança eram sufocados pela raiva, pela briga e por ações extremas de violência.
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Ir para onde? Se proteger como? Até quando?
Saques expunham a face sombria do humano em contraste com a onda de generosidade de quem abria suas casas, suas economias, seu tempo e sua vida para acolher o outro em sofrimento. Nada parecia real e nada era parecido com o que se viveu antes dos dias do fim de um mundo.
E que mundo se esvaia naquele choque cruel de realidade? O mundo ufanista do desenvolvimento e do progresso a qualquer preço, da alienação no hiperconsumo, da produção desmedida, da fuga pelo trabalho excessivo, da omissão no espaço público, da má escolha de representantes políticos, da ambição pelo poder, da apção pelo conflituoso mundo do extremismo e da guerrilha digital, do desperdício, do abandono e da falta de cuidado com tudo e com todos.
Esse é o mundo que acabou ou que deverá ter acabado se conseguirmos aprender com o sofrimento. Um mundo que já deveria ter sumido com a pandemia da Covid-19, mas que se reconstituiu depois de passado o susto do confinamento e que se deparou com uma nova provação. Vieram as águas e sufocaram justamente o povo que se diz bravo e que quer que suas façanhas sejam copiadas pelo mundo todo. Pois que o aprendizado aconteça e que sejam copiadas as atitudes necessárias e coerentes que devem emergir das águas para construir um mundo novo de muito mais cuidado.
*Texto escrito na catastrófica enchente de Maio de 2024 no Rio Grande do Sul.
Sócio Presidente
8 mFantástica! Descrição e mostra o que devemos refletir e agir para poder de alguma forma reformular nossa forma de atuar e de encarar este novo mundo que se apresenta e que será nossa realidade daqui para frente. Força e esperança.
Sócia ÍKONA Strategy & Brand Reputation
8 mManifesto certeiro Rosângela Florczak ! Será necessário construir o futuro com as feridas ainda todas abertas. Mas vamos em frente! Que assim seja 🙏
CEO na Cosafe LATAM. Comunicação e Gestão de Crises.
8 mBrilhante texto que expõe a ferida aberta de uma catástrofe. Minha solidariedade ao povo guerreiro do Rio Grande do Sul.
Que texto necessário. Nossa, Rosângela Florczak quando tudo isso começou a acontecer eu pensei muito em vc e em tudo que vc sempre nos ensinou. Espero muito que tudo isso passe logo! 😌
Sócia na FALE Consultoras, professora, palestrante e facilitadora de processos e pessoas.
8 mQuanta sensibilidade traduzida em palavras necessárias 🙏🙏🙏