"A marca que não pode ser mencionada" X Cícero: uma aula de cultura participativa no mundo real
É fato: vivemos em um mundo profundamente mais complexo. Um mundo volátil, líquido, imprevisível, ambíguo. Um mundo de áreas cinzas, sentimentos híbridos, visão turva. Um mundo em que somos testados diariamente. E podemos, sim, errar.
"A marca que não pode ser mencionada" errou. Errou ao enviar uma mensagem para uma blogueira que teria cometido o terrível pecado de simplesmente postar uma crônica que a mencionava. Exigiu que a menção fosse retirada por se tratar de uma marca registrada globalmente com blá-blá-blá anos. Assim, mostrou-se arrogante, arbitrária, antiquada, com sua noção de marketing e gestão de branding deveras empoeirada. Diria até que muito pouco inteligente emocionalmente. Acontece nas melhores empresas. Mas a dúvida maior que fica é: por que insistir no erro? Por que não assumir que a abordagem fora, de algum modo, equivocada? Seja na proposta de não poder mencionar sua marca, seja no tom ou abordagem, seja no fato de estar investindo energia e dinheiro para monitorar as pessoas e impedir que aquelas que admiram seus produtos os citem em seus textos e conteúdos literários. E se essa energia fosse canalizada noutra direção? Por que não demonstrar absolutamente nenhum poder de empatia e humildade?
E foi então que a concorrente Cícero foi lá e fez. E deu uma aula de empatia, bom humor, leveza e cordialidade. Valores contemporâneos elementares nos dias de hoje. A inteligência emocional talvez seja a mais valiosa e relevante moeda de troca do novo protocolo social.
Sim, erros como este acontecem. Podem acontecer com qualquer marca. Mas devemos, no mínimo, pensar muito antes de tomar alguma medida. Fazer uma matriz de risco tentando prever o quanto cada atitude pode repercutir negativamente. Pesar os lados e colocar a sensibilidade — o que os americanos chamam de "gut feelings" — para comandar os seus atos. E o mais importante: caso o erro ocorra, perceba o mais rápido possível e assuma imediatamente o deslize. Os americanos têm um lema: "fail fast". Erre rápido e recupere-se rápido.
Tenho dito por aí, nas mesas de reunião e nas salas de aula, que a melhor forma de enfrentar a complexidade do mundo contemporâneo é lançar mão de algo muito elementar e raro em muitas decisões: a simplicidade.
Tiago Mattos, autor do livro "Vai lá e faz", diz que sempre acreditou que é mais bonito simplificar o complexo do que complexificar o simples. Sou partidário da mesma visão. E, todos sabemos, como ser simples é complexo. Como dizem os escritores, "easy reading is damn hard writing". David Ogilvy tinha pendurado em sua sala na Madison Avenue um quadro com apenas quatro letrinhas impressas: "K.I.S.S.". Ao ser perguntado sobre o que aquela sigla enigmática significaria, respondia com um sorriso no rosto. E entre uma baforada e outra em seu cachimbo, dizia: "keep it simple, stupid".
Ser simples é compreender que se você cria, produz e lança ao universo um produto que estimula esse tipo de admiração e apropriação por parte das pessoas, por favor, a última coisa que você deve pensar em fazer é ceifar esse tipo de atitude. Jamais considere a cultura do fã como se fosse um roubo. Estamos falando na verdade de uma apropriação legítima de alguém que admira tanto a sua marca que a deseja mais perto dela, entranhada em suas histórias, reinventada em suas co-criações, viva em sua respiração. Não desperdice energia tentando interromper esse lindo movimento acontecendo diante dos seus olhos.
Tenha em mente uma verdade universal do mundo contemporâneo: a sua marca não lhe pertence mais. Calma, eu sei que você tem todos os papéis de registro devidamente carimbados no cartório por um senhor suado de terno e gravata. Sim, você pode geri-la, é sua responsabilidade. Claro, você deve protegê-la de maus tratos, calúnias e ataques que coloquem em risco a sua história, sua imagem, suas vendas e seu lucro. Isso tudo é genuíno e legítimo. Mas não incorra no erro de fazer algo contra aqueles que simplesmente desejam utilizá-la de bom grado. Entregue-a ao mundo. Abra-se ao diálogo, ao controverso, ao diferente. Faça parte dessa esfuziante mistura orgânica viva na qual todos estamos imersos no mundo hoje.
As marcas hoje compõem o organismo vivo do tecido social que nos envolve. É lindo observar a forma profunda e identificada com a qual elas fazem parte da vida cotidiana. Elas respiram nas ruas, nas mãos das pessoas. É ali que elas vivem de fato, onde encontram sua razão de existir. Quando são desvendadas e colocadas em uso, satisfazendo aos anseios e desejos das pessoas. Não em nossas mãos gestoras. Claro, seguiremos trabalhando firme na construção de universos narrativos em torno delas. Faremos de tudo para que, de forma autêntica e verdadeira, as pessoas as percebam da forma como acreditamos que elas devem ser percebidas. Mas marcas são como filhos: as criamos para ganhar o mundo e brilharem, fazer bonito. Não para agonizarems em nossas mãos gélidas e enrugadas.
Raul Santahelena é Escritor, Autor dos livros "Truthtelling — Por Marcas mais Humanas, Autênticas e Verdadeiras" e "Muito Além do Merchan", Professor da Miami Ad School / ESPM, Colaborador do Adnews e do Meio & Mensagem e Gerente de Publicidade da Petrobras.
Profissional de Alinhamento Energético | sensitivismo
6 aTexto redondo que saiu de um fôlego porque quando se tem cultura, se tem certezas. O problema do marketing - e eu “me incluo dentro” - é o apego aos percentuais das velhas mídias. Pela demora da reação, das marcas tradicionais e suas agências, ainda há ai um desdém qualquer pelos “multimeios” e seus novos influencers. Pena... porque quem devia reinventar o mundo e se chafurdar no novo, é justamente que tem entrado de penetra na festa!