MARIA MIJONA
Maria Mijona! Nós a chamávamos tão somente de Maria Mijona! E fugíamos. Aí Maria Mijona!, gritávamos, de prudente distância, e dávamos no pé, sensação boa, feita de medo e desafio. Temíamos Maria Mijona. Ao mesmo tempo, zombávamos dela, conhecida apenas por Maria Mijona. Quem era, de onde viera e por que todos a chamavam de Maria Mijona, não sabia. Nem eu, e, creio, ninguém o sabia. Mas a chamavam de Maria Mijona... Então, também eu, talvez por vingança, assim como todos os demais.
Maria Mijona morava havia anos no bairro, embora ninguém soubesse de onde viera, e quando. Surgira do nada, diziam, nunca envelhecia, pois permanecia a mesma desde que nossos pais eram crianças. Andava aqui e ali, cuidando da vida, aceitando as chacotas passivamente, até com indiferença, e nunca conversava com ninguém, exceto com ela mesma, uma vez que estava sempre mexendo os lábios, e quem chegasse perto dela, da Maria Mijona, ouvia palavras e frases desconexas. Fosse inverno ou verão, sempre vestia calça de brim, masculina, presa à cintura por uma corda fina, substituindo o cinto, um jaleco de lona, um par de botinas, um lenço amarrado à cabeça, e carregava dois ou três sacos de estopa onde depositava todo o lixo que pudesse encontrar. Andava sempre com um cigarro no canto da boca, outra de suas marcas características. Diziam que não “regulava bem da cabeça”.
Tinha motivos de sobra, a exemplo de crianças como eu, de chamá-la de Maria Mijona. Era a nossa desforra particular, herança que passava de pai para filho, porquanto Maria Mijona parecia eterna. Nossos pais, quando crianças, também a chamaram de Maria Mijona, nossos avós também, assim como nossos filhos e netos o fariam, no devido tempo. E era uma represália dupla: contra ela, Maria Mijona, e contra os nossos pais e avós. O mesmo aconteceria quando fôssemos pais e avós!
A gente se vingava dela, Maria Mijona, simplesmente porque era aterrorizada pelos pais, sempre que cometia alguma travessura. Ainda bebê, se mijássemos nas fraldas, lá vinha ameaça: Porquinho! É a última vez! Se não aprender usar o peniquinho, vou chamar a Maria Mijona pra ti pegar! Púnhamos a boca no mundo, atemorizados a simples menção ao nome de Maria Mijona, que nem sequer sabíamos quem era.
Se, mais crescidinhos, roubávamos um pedaço de bolo, era certa a ameaça: Vou chamar a Maria Mijona pra ti pegar, esfomeado! Tremíamos de medo e íamos nos esconder no guarda-roupa. Depois, já maiorzinhos, quando batíamos no irmão menor, ou afogávamos o gato na tina, éramos ameaçados: Malvado! Vou chamar a Maria Mijona pra ti pegar!
E chegou o tempo em que matávamos passarinhos a bodocadas e roubávamos frutas no pomar do vizinho. A ameaça continuava: Que barbaridade! Vou falar com a Maria Mijona pra dá um jeito nesse assunto!
E chegou um dia, já tínhamos pelos na cara, voz rouca e cabelos nas palmas da mão – embora eu nunca tivesse encontrado sequer um fiozinho – que a ameaça parou de funcionar. Foi quando teve início nossa vingança contra Maria Mijona. Gritávamos: Aí Maria Mijona!, sempre que a encontrávamos, e a mãe nos chamava a atenção, nos colocava de castigo e nos dava beliscões doloridos, porque, dizia ela, “é feio mexer com a Maria Mijona, coitada, que não faz mal a ninguém”. Mas o mal já estava feito: tanto à mulher quanto a nós mesmos. E assim foi, até que parei de gritar: Aí Maria Mijona!
Nessa época eu já não usava calças curtas e gostava de ter o cabelo bem penteado, untado de óleo. Fazia a barba uma vez por semana e andava me engraçando pros lados da filha do seu Ambrósio, o dono da venda. Ritinha era uma moreninha espigada, olhos negros, longas tranças, pernas finas e eterno ar de sapeca estampado no rosto. Colocava um vestidinho azul, sandálias brancas, pegava os cadernos e, faceira, ia à minha casa estudar com a Carminha, minha irmã. Às vezes, mãe não estava em casa, eu dava uns trocados para Carminha comprar doces na venda e ficava namorando a Ritinha. Um dia, Seu Ambrósio desconfiou e nunca mais a Ritinha foi estudar com a Carminha. Quando tiverem que estudar, disse o homem, irado, elas que estudem na minha casa, bem entendido?
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Mas isso de nada adiantou e nós continuamos namorando escondido. Eu, então, não tinha mais tempo pra gritar: Aí Maria Mijona! Talvez tenha sido em função disso que ela fez algo que, dizem, nunca fizera antes, e nos tornamos amigos. Por acaso.
Eu e Ritinha gostávamos um do outro e, juntos, descobríamos os segredos que, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos descobrindo. Atendíamos ao chamamento dos sentidos, seguindo cegamente a inefável rota dos amores juvenis, como se Romeu e Julieta, já que seu Ambrósio – que era uma fera – nem sequer poderia sonhar que a filha, a filhinha querida a quem ele queria formar na faculdade (Minha Ritinha vai ser doutora... Custe o que custar!) andava de agarramentos com o filho do Português atrás dos muros, nos matos e onde quer que fosse possível e a qualquer momento que calhasse.
Éramos, eu e Ritinha, dois animaizinhos no cio. Estávamos nos beijando atrás do muro da igreja do padre Marcelo, em plena luz do dia, imprevidentes, afoitos, quando fomos surpreendidos por Maria Mijona. Andava ela catando lixo por ali, quando nos viu no maior amasso. Ritinha quase não conteve um grito de medo, enquanto recolhia os mirrados peitinhos para dentro da blusa. Eu, então me considerando um homenzinho, me mantive impassível, encarando desafiadoramente o perigo que Maria Mijona representava. Afinal, estávamos a poucos metros de Maria Mijona, o terror do bairro, motivo principal dos pesadelos de todos nós, enquanto crianças. No entanto, fiquei firme como uma rocha, embora – não tenho vergonha de confessar – sentisse uma coisa esquisita, algo parecido como quando somos crianças e acordamos no escuro. E ela, a Maria Mijona, ficou nos olhando, e parecia sorrir. Cigarro no canto dos lábios, olhar irônico, ficou nos encarando, saco de lixo na mão. Eu e Ritinha não ousávamos dar um passo. A garota estava apavorada com a presença de Maria Mijona. Eu? Eu, passado o susto, me preocupei com a possibilidade de que ela contasse ao seu Ambrósio que o filho do Português, mais a sua Ritinha, que ele queria ver doutora, estavam de namorico atrás do muro da igrejinha do bairro. Foi então que Maria Mijona sorriu com mais vontade, deixando à mostra dentes perfeitos, branquinhos, enquanto dizia: Façam de conta que não estou aqui. Maria Mijona não vê, não ouve e não fala. Aproveitem, crianças! Eu sei, oh, como sei, que vocês dois nunca serão tão felizes e puros quanto agora. - Em seguida, deu-nos as costas e continuou o seu caminho.
Desde aquele dia e até eu mudar do bairro, sempre que nos encontrávamos, eu e Maria Mijona, trocávamos olhar de cumplicidade e ela piscava um olho maroto para mim.
A cumplicidade de Maria Mijona não impediu que, numa tarde, seu Ambrósio nos pegasse – eu mais a Ritinha – aos beijos e abraços, embaixo da velha e amigável centenária figueira da pracinha que dava um pouco de vida à vila onde morávamos. O velho fez jus à fama de invocado e ficou possesso. Resultado: Me perseguiu em vão por uns dois bons quarteirões, queixou-se ao meu pai – o calado e sisudo português, uma espécie de reserva moral do lugar, em função de um caráter reto e justo – e despachou Ritinha para a capital, onde ela iria estudar num bom colégio cristão e morar com uma tia.
Nem meu pai, que me deu uma surra, ou seu Ambrósio, cujo olhar quando me encontrava estava sempre carregado de raiva, preocuparam-se com o fato de que entre eu e Ritinha existia algo mais profundo do que um simples amor juvenil. Ao nos separar, ninguém se importou com nossos sentimentos e sofrimento, exceto Maria Mijona, de quem me tornei confidente. Para a minha surpresa, foi nela, na Maria Mijona, naquela que, segundo todos pensavam, não regulava bem da cabeça, que encontrei forças para suportar a falta da Ritinha. Na verdade, e isto eu descobri mais tarde, Maria Mijona realmente era meio maluca, se for levado em consideração o fato de que não suportava as pessoas, tinha verdadeira ojeriza de gente e fazia apenas uma exceção: eu. E, embora desconhecendo tudo isso na época, gozei do privilégio de ser amigo dela e sorvi seus ensinamentos com deleite.
Embrenhei-me nos caminhos que ela me apontava, sobretudo com relação à leitura, eis que em seu casebre, asseado e limpo, havia dezenas de livros dos mais variados autores, desde os clássicos como Machado de Assis e Dostoiévski, aos modernos, como J.D. Sallinger, Willian Faulkner, entre outros tantos. Maria Mijona não me influenciou apenas na literatura. Por meio de conselhos e ensinamentos, moldou o meu caráter e, acredito, transformou-me num ser humano melhor, mais tolerante, sábio e paciente. Foi com ela que aprendi a esperar por Ritinha. Foi com ela que descobri como me corresponder com a minha amada, e foi com ela, Maria mijona, que fortaleci a ideia de que, um dia, fosse quando fosse e custasse o que custasse, seria feliz ao lado de Ritinha, cuja recíproca era verdadeira, segundo atestavam suas cartas repletas de frases amorosas e saudosas.
Passaram-se os anos, eu segui o meu rumo, Ritinha o seu, até que trinta anos depois, voltei ao bairro onde nasci e tornei a encontrar Maria Mijona. O tempo não havia passado para ela: continuava idêntica à imagem que dela guardava desde o tempo de criança. Ao me reconhecer, me olhou fixamente e disse, quase num suspiro: A Ritinha morreu...".