Memórias da Ditadura

Sorrateiramente, no dia 1º de abril de 1964, o então presidente do Congresso Nacional Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República. Tal fato ocorreu enquanto João Goulart ainda encontrava-se em território nacional voando em direção a Porto Alegre, de onde pretendia comandar a resistência ao golpe.

Foi dado início aos 21 anos de terror e sofrimento durante os quais as atitudes de governantes e setores da sociedade marcaram negativamente a história do Brasil e impuseram consequências severas para a sociedade atual. Simultaneamente, o mundo passava por uma disputa de poder entre superpotências, que influenciou o contexto político brasileiro. Os Estados Unidos e União Soviética disputavam cada palmo da superfície do planeta.

No Brasil a divisão ideológica era evidente, jovens e políticos de partidos de esquerda flertavam com o socialismo soviético. Os militares positivistas e os políticos de direita se alinhavam com os Estados Unidos. Havia ameaças de golpe por todos os lados.

Há exatamente 52 anos, o Brasil, acordou de forma atípica. Muitos não sabiam o que estava acontecendo, nenhuma notícia era transmitida nas emissoras de rádio, apenas boatos especulavam superficialmente sobre um suposto golpe. Os bochichos tratavam das tropas do comandante Mourão Filho, de Minas Gerais e de Amauri Kruel, de São Paulo, que estavam a caminho do Rio de Janeiro para a derrubada de Jango, e substituição pelos governantes militares.

O regime promoveu uma verdadeira “inquisição”, na qual taxava e massacrava qualquer pessoa com discordância política a ele, criando uma aversão às ideias comunistas na população alienada que acreditou piamente na imagem distorcida que o Estado transmitia. A sociedade sentia-se insegura com os ideais da esquerda e acreditava que os comunistas eram monstros e perigosos, assim apoiando o golpe.

No poder até o dado momento, estava o ex-vice-presidente eleito, João Goulart, do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), que substituiu Jânio Quadros  após a sua renúncia, que ocorreu sete meses após a posse. Já nesse momento os militares estavam insatisfeitos com a proximidade de Jango aos partidos de esquerda e fizeram o possível para impossibilitar sua posse na presidência.

A saída que a direita encontrou para diminuir o poder de João Goulart, foi transformar o modelo político brasileiro em República Parlamentarista, para que Jango fosse tutelado por um Congresso mais forte do que ele. A experiência durou um ano e meio, até que o país, em outubro de 1963, decidiu, em um plebiscito, voltar ao regime Presidencialista.

Tal fato ocorreu logo após Jango ameaçar intervir nos estados do Rio de Janeiro, então governado por Carlos Lacerda, São Paulo por Adhemar de Barros e Pernambuco por Miguel Arraes. João Goulart voltou atrás, mas já tinha causado uma tensão frente aos militares. Meses depois Jango, demonstrando novamente fraqueza, demitiu o ministro da guerra em apoio a uma insurreição dos sargentos do exército.

João Goulart então realizou um comício polêmico na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, se comprometendo a promover uma série de reformas (agrária, urbana e fiscal, entre outras), que incomodou a muitos dos setores mais conservadores da sociedade como empresários e ruralistas. Os ideais que motivavam tais reformas eram abominados pela classe média, e o discurso serviu como motivação principal para que o golpe acontecesse, enquanto o Presidente discursava os comandantes conspiravam.

 Os anos de chumbo

Os anos de chumbo começaram em 1968. O período de 6 anos foi, de todo o regime militar, o mais severo e violento. A população começava a se organizar e contestações políticas públicas começaram a surgir. Os jovens no movimento estudantil lutavam, não só contra o regime, mas pela sua liberdade e direitos. Em contrapartida às manifestações, o governo tomou uma postura radical e agressiva contra os subversivos instaurando uma repressão armada.

Em 13 de dezembro desse ano, entrou em vigor o AI-5 (Ato institucional 5) suspendendo o direito a voto político para todos os brasileiros por 10 anos, promovendo cassação de cargos políticos, o fechamento do Congresso, a anulação do habeas corpus, estabelecendo ao Governo Federal total poder de intervir em estados e Municípios e validou a censura em veículos de mídia impressa, televisiva e rádio.

Militares americanos ensinaram a grupos policiais e militares nacionais os métodos de tortura, que foram usados de maneira recorrente e sórdida para proteger o Estado e seus interesses contra seus inimigos internos, ou, melhor dizendo a população brasileira. A tortura passou a ser utilizada principalmente para conseguir informações de comunistas e pessoas ligadas a luta armada. Os quartéis e delegacias foram preparados para esse método e, inclusive tinham salas de interrogatórios revestidas de material isolante, para que os gritos não pudessem ser ouvidos.

 


Para o jornalista Goulart de Andrade, 82 anos, as memórias dos idos tempos são até leves. Ele conta com muito humor, sobre o que viveu, e até mesmo o episódio de ter sido confundido com o poeta Ferreira Gullar por seus algozes.

Os militares o procuraram por terem ouvido falar do programa de TV que apresentava na extinta TV Tupi, chamado Sumaré 22 Horas. O seu jeito irreverente e polêmico não foi sufocado pelo regime.

 

Em plena ditadura e com censura severa, Goulart relata alguns momentos vividos, que se alternam de cômicos a muito tristes. Mesmo com a restrição e controle predominando o país,  ele deu um jeito de provocar os autoritários e driblar a situação. Não demorou muito para que achasse um jeito. “Era muito rígido, tínhamos que passar os detalhes de tudo que íamos fazer, mas descobri que jogando charme para a chefe de censura ela amolecia e deixava passar alguma coisa”, disse, dando uma risada, mas não parou por aí. Audacioso, fez uma provocação, em um de seus programas fazendo apologia à bunda. Goulart explica que  na realidade foi uma provocação, e até hoje, não sabe se tinha alguma veracidade no conteúdo exibido.

“Foram muitos momentos, um atropelo de informações. Era um atrás do outro. Tínhamos que tentar viver de forma normal, para que as crueldades acometidas não nos enlouquecessem”, assim ele descreveu o período nefasto.

“Paguei mil dinheiros para o Tião ser torturado ao vivo no meu programa.” Goulart de Andrade, se referiu a um programa onde conseguiu os aparatos mais comuns de tortura e demonstrou como eram utilizados. Embalado por risadas comentou que pagou mil reais para seu contrarregra, Tião, ser pendurado no pau-de-arara e levar choques e completou o relato dizendo  que pagou para ele fazer essa participação, já que a emissora, atrasava e praticamente não pagava salário.

Goulart já perdeu a conta de quantas vezes teve que fugir pelos fundos da TV Tupi e correr para a casa de Lolita ou Hebe Camargo, para se esconder dos milicos. Foi detido três vezes, mas em nenhuma das vezes sofreu tortura física, foi vítima da tortura psicológica.

Um dos momentos de maior sofrimento para ele, foi quando foi demitido por represália militar. De acordo com o jornalista, sua atuação no nordeste focando no conteúdo regional e diminuindo significativamente o espaço para o conteúdo nacional, chamou a atenção dos militares ao ponto de influenciarem a decisão de demiti-lo. Por motivos de saúde, então voltou para São Paulo.

“Um belo dia tocou meu telefone e minha mulher atendeu, deram o recado para ela que estava demitido”, não imaginava que um simples programa de entretenimento fosse virar o estopim e dar tamanha dor de cabeça. Um mês depois de ser demitido, começaram as inúmeras ameaças de morte, levando-o a passar muitas noites acordado, de guarda, em cima de uma árvore com uma espingarda na mão para proteger a si e sua família. Porém, Goulart de Andrade, teve muita sorte e não vivenciou nem de perto o horror que muitos conhecidos passaram. Famílias destruídas, agressões físicas, mutilações, pessoas desaparecidas, perseguições e mortes fazem parte da história de muitos brasileiros.


A escritora Martha Pannunzio, também é uma das sobreviventes, deste período horripilante. Tem em comum com o jornalista o fato de não ter  passado por torturas físicas. Porém, a escritora não consegue lidar com suas experiências com o mesmo bom humor de Goulart de Andrade.

 

As sequelas

As sequelas causadas pelas brutalidades inconsequentes dos autoritários causaram muitas lembranças, nada saudosas, desse período sombrio para Martha e sua família.

Filha de pais comunistas e criada em ambientes socialistas, sua história de vida é repleta de lembranças tristes e traumáticas. Presenciou a fuga de seus pais do país para o exílio, foi dada como uma das pessoas mais perigosas de sua cidade, viu a sede da sua fazenda sendo metralhada e logo em seguida incendiada, foi forçada a assinar um documento que a proibia de lecionar por 10 anos, ficou sem saber do paradeiro de dois irmãos após o golpe, teve que queimar mais de 2000 exemplares de seu livro sobre sua viagem à Rússia e fugiu para o interior com 3 filhos pequenos, sendo o caçula recém-nascido.

A violência desmedida e recheada de abuso e violência não terminou na ditadura. O regime deixou muitos rastros e uma de suas heranças malditas é a formação e despreparo da polícia militar. As PMs de todos os estados do Brasil agem quase sempre com truculência. Direitos humanos ainda são recorrentemente violados em muitas de suas ações.

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