Memento Mori, 2020!
Ontem, após deixar o meu carro no lava-rápido, caminhei alguns quarteirões e decidi sentar-me no banco de uma praça para esperar o término do serviço, sentindo a brisa suave da tarde. A tranquilidade desse cenário, no entanto, era apenas aparente. Ao meu redor, veículos ferozes rosnavam e ameaçavam pedestres e outros carros, abafando toda a paz que eu desejava naquele momento.
Mas, apenas alguns segundos observando de fora aquela selva me fizeram pensar em como ficamos arrogantes e agressivos ao assumir um volante (nem todos, mas eu me incluo) e (milagre!), como assumimos novamente a mansidão e humildade ao voltarmos à forma de pedestres. Um mistério que provavelmente remonta à pré-história dos carros, na época das carruagens.
Essa enigmática transformação, à semelhança do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, me faz lembrar também um desenho dos estúdios Disney, veiculado à exaustão nas tardes de sábado, nos anos 70 e 80, onde o calmo personagem Pateta se transmutava em um raivoso piloto, sem piedade e inimigo de quem estivesse na frente de seu carro.
Hoje de manhã, relembrando a cena do dia anterior e pensando em escrever um artigo sobre o que nos faz cultivar personalidades tão antagônicas no trânsito, deparei-me com uma entrevista do jornalista Gilberto Dimenstein à Folha de São Paulo. Nela, ele conta que, este ano, aos 63, descobriu um câncer no pâncreas, com metástase no fígado. Imediatamente, essa informação me transportou para o começo da minha profissão de jornalista, em Fortaleza, quando, na década de 90, cobri uma palestra de Dimenstein a empresários, na Federação das Indústrias do Ceará.
O Gilberto Dimenstein do qual me lembrava, bem-sucedido, ganhador de vários prêmios cobiçados pela minha geração iniciante, era bem diferente do que via esta manhã, naquela matéria. Fisicamente envelhecida e desgastada pela luta contra a doença, obviamente sua figura não tinha a mesma juventude e altivez que meus olhos viram naquela época. Porém, a mudança mais detectável para mim não estava em sua aparência, mas em seu discurso. A imponência, o profissional vitorioso, a competitividade e a segurança davam lugar à simplicidade, à mansidão e à gratidão.
E, em que ponto o câncer de Gilberto Dimenstein e a agressividade no trânsito se encontram neste artigo? Esses fatos se conectam a partir da observação feita pelo jornalista de que, apesar de ser uma situação difícil e dolorosa, ele estava vivendo o momento mais feliz de sua vida, pois “aquele Gilberto Dimenstein antes do câncer morreu. Nasceu outro”. Ancorado nessa nova percepção de vida de Dimenstein, em que ele explica ter aprendido a “viver o momento presente” e deixado para trás o “culto a bobagens”, compreendi que nossa transformação em Mr. Hyde não acontece apenas no trânsito, mas durante toda a nossa vida e todas as vezes que não percebemos o valor das coisas que realmente importam.
"Mas, nada melhor para nos despertar dessa letargia que a perspectiva do fim. Seja o fim de um ano, de uma década, de um trabalho ou de uma vida."
O dia a dia na cidade de São Paulo é um bom exemplo desse transe que nos cega para o que está ao redor. Ele está no sobe e desce apressado nas escadas e corredores do metrô, na competição febril por emprego e trabalho nas ruas e ambientes digitais, na disputa de vagas nos concursos e universidades, além, é claro, no acelerado frenesi do singular trânsito paulistano – seja na pressa para ir ao trabalho ou se desvencilhar dele. Nas palavras do novo Dimenstein, essa hipnose da sobrevivência nos faz atravessar a vida como se estivéssemos “passando por um lugar lindo num trem em alta velocidade, vendo tudo borrado”.
Com certeza essa anestesia que vivenciamos diante de sensações simples como sentir a brisa em uma tarde na praça ou acompanhar o sorriso de uma criança no supermercado, ou mesmo apreciar o pôr-do-sol ainda que seja entre o frenesi dos carros em uma rodovia, não é um sintoma apenas dos paulistanos. Habitantes de outras grandes metrópoles também estão envoltos nesse emaranhado competitivo, acostumados aos gritos das buzinas e aos esbarrões com outros que ousam, como eles, competir pelo mesmo lugar ao sol.
Mas, nada melhor para nos despertar dessa letargia que a perspectiva do fim. Seja o fim de um ano, de uma década, de um trabalho ou de uma vida. A expressão latina Memento Mori que, segundo historiadores, era sussurrada ao ouvido dos generais romanos vitoriosos quando desfilavam pela cidade celebrando sua conquista, significa “lembra-te da tua morte” ou “vais morrer”. Servia para “baixar a bola” dos conquistadores, lembrando-lhes que, como todo mundo, um dia morreriam. Ela também chegou a ser usada como saudação pelos monges paulianos ou “Eremitas de São Paulo”, no século XVII.
Talvez seja por ter vislumbrado a perspectiva do fim que Dimenstein descortinou seu olhar para um outro mundo, “o mundo das gentilezas”. Como ele mesmo diz: “com ou sem câncer vamos todos morrer, e se pudermos antecipar essa sensação, vamos evitar várias bobagens. A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo”. Na sua perspectiva, esse parece ter sido um grande presente que ele recebeu este ano.
Outras pessoas, como eu, recebem essa dádiva dolorosa com a morte de um familiar muito querido e próximo. E quem é mais próximo do que a própria mãe? Sim, minha mãe faleceu este ano e, como Dimenstein, percebi que a ida dela foi uma dádiva para mim e para ela. Porque, refletindo em sua vida, lembrei que minha mãe nunca dirigiu um carro, nem mesmo xingou de dentro de um. Não que não tivesse tido vontade.
Para mim, ela era a rainha da educação, paciência e gentileza. Via as pessoas e situações com outra perspectiva e, por essa razão, tinha muitos amigos próximos. Pessoas, que como eu, também lamentaram sua partida. Percebi, a partir da sua ida, que ser lembrado pela gentileza e simplicidade e cultivar relacionamentos sinceros e duradouros é mais importante que conquistas que vêm e passam. Principalmente se, com elas, acabamos não nos dando conta daqueles que construíram essas conquistas conosco.
Por fim, o término de uma vida ou de uma fase pode ser uma excelente oportunidade para tentar ver a vida de uma outra perspectiva e enterrar de vez o Mr. Hyde interior que sempre teima em vir à tona. Que, em 2020, possamos nos lembrar de dizer constantemente “Memento Mori” e passar a ter um olhar com mais gentileza e menos anestesiado pelo corre-corre cotidiano. Quem sabe assim possamos ter não somente um novo ano, mas também uma nova vida feliz de verdade.