Mentiras têm perna curta
Todo mundo mente para evitar sofrimento. Mas a mentira acaba gerando um desgaste enorme e, no fim das contas, vale a pena ser evitada.
Dizemos que a mentira tem pernas curtas porque sabemos que ela não costuma ir muito longe. Cedo ou tarde, ela cambaleia, tropeça e acaba sendo alcançada pela verdade. Isso acontece por, pelo menos, dois motivos: primeiro, porque quando mentimos fazemos mais esforço do que quando dizemos a verdade, em função do dilema moral envolvido na questão, ainda que inconsciente. Segundo porque, quando precisa ser repetida, a mentira perde força, sendo contaminada por fragmentos da verdade ou por outra mentira, pois sua base não é a realidade, e sim a ficção.
Mentir significa “inventar” uma verdade que não existe, e não “relatar” a verdade como ela é. A mentira começa com a pessoa, a verdade é anterior a ela. Quando mentimos criamos uma realidade que não se baseia em nenhum outro fato, a não ser nossa própria criatividade, o que não é suficiente para sustentar o que foi dito, caso o assunto não se esgote rapidamente.
O candidato a emprego que mente sobre sua experiência e qualificações será desmascarado pela inconsistência do currículo ou pela incapacidade de atender às expectativas que criou. E por aí vai. Fatos que demonstram o insustentável peso da mentira podem ser colhidos aos montes na história de vida de quase todas as pessoas – de adolescentes a presidentes da república.
Mas, afinal, por que mentimos, se todos sabemos que existe a chance de sermos desmascarados mais cedo ou mais tarde? Que força é essa que nos impele a não sermos sempre fiéis aos fatos?
Há mentiras justificadas ou não? A verdade, doa a quem doer, sempre é a melhor opção?
Por que mentimos?
Essas são questões da ética humana que interessam a várias correntes do pensamento. A psicologia explica a mentira pelo mecanismo de defesa, a sociologia pela busca do poder, a filosofia pela imperfeição humana e a religião pela compulsão ao pecado. As explicações, entretanto, quase nunca justificam a mentira ou desculpam o mentiroso.
As motivações são diversas, o que pode ser percebido até na literatura. Podemos examinar um filme e uma novela que abordam bem essa faceta do ser humano, com suas conseqüências. O filme: O Fabuloso Destino de Amélie Poulin, dirigido por Jean Pierre Jeunet – uma versão moderna de Poliana, a garota que sempre via o lado bom das situações. Em uma das cenas, Amélie conta a Joseph que Georgette está apaixonada por ele e, para Georgette, afirma que Joseph também está interessado nela. Duas mentiras, pois eles não haviam dito nada disso, mas nossa heroína percebeu a possibilidade de aproximar os amigos que sofriam, ambos, do medo da rejeição. A conseqüência foi que essa “mentira amorosa” encorajou o casal a se relacionar, o que acabou interferindo, para melhor, no clima do bar que todos frequentavam.
A novela: Beto Rockefeller, escrita por Bráulio Pedroso e produzida pela TV Tupi em 1968, marcando o início da moderna teledramaturgia brasileira. O personagem, Beto, interpretado por Luis Gustavo, é um rapaz suburbano de São Paulo, inconformado com sua pobre condição social. Por ser simpático e bem falante, consegue ser aceito por grupos de jovens da elite paulistana, que desconhecem sua origem. Durante toda a trama ele se faz passar por filho de uma família rica e aristocrata. Inventa histórias, mente descaradamente, arma tramas incríveis e, dessa forma, vai se dando bem. Até que, é claro, a casa cai, os amigos descobrem sua verdadeira identidade e o anti-herói sofre as conseqüências de sua impostura.
Quais as semelhanças e as diferenças entre essas duas histórias? A semelhança é que os dois personagens-tema usam mentiras para atingir seus objetivos. A diferença fica por conta da qualidade dos objetivos. Enquanto Amélie inventa lorotas com a intenção de ajudar seus semelhantes, Beto só quer se dar bem. Nos dois casos, ambos foram desmascarados, com a diferença que Amélie foi ainda mais querida por seus amigos, enquanto Beto foi defenestrado por todos.
Além de ser uma obra de ficção, ou seja, uma mentira por si só, o filme de Amélie brinca com falsas afirmações de uma forma doce e benéfica. Ela mente para as pessoas ao seu redor com a intenção de lhes proporcionar coisas boas. O seu objetivo, portanto, é nobre – trata-se de uma forma positiva de encarar a mentira. Isso quer dizer que estamos autorizados a faltar com a verdade, pois ela é relativa? Não, por favor, não me entenda mal. O que é relativo é a percepção que temos dos fatos, e a mentira grande ou pequena, danosa ou inconseqüente, piedosa ou maldosa, sempre será uma mentira e, como tal, poderá ferir alguém.
Mecanismo de defesa
Desde a infância mentimos para nos isentar de culpas ou para alcançar o que queremos, com a finalidade de obter prazer ou evitar sofrimento. Estudos indicam que apenas até os 3 meses de idade um bebê é incapaz de mentir. Após essa idade, aprende a se utilizar artifícios para chantagear seus pais. E somente quando a criança atinge cerca de 7 anos passa a ter a capacidade de diferenciar com clareza o falso do verdadeiro.
A mentira quase sempre é utilizada pelos indivíduos como forma de evitar o sofrimento. Ela pode ocorrer de maneira consciente ou inconsciente. Em sua forma inconsciente, acontece um processo denominado pela psicologia de mecanismo de defesa, que pode ser de três tipos: negação, projeção e introjeção. Negamos os fatos desagradáveis e as sensações dolorosas, como se não existissem. Projetamos nos outros, ou nas coisas, fatos nossos que nos são repugnantes, como se não nos pertencessem. Introjetamos objetos de desejo, que podem ser coisas ou pessoas, como se fossem nossos.
Isso significa que mentimos para nós mesmos e acreditamos em nossas mentiras para evitar a dor ou para obter prazer. Nesse caso poderíamos dizer que se trata de uma “mentira justificada”, pois seu objetivo é esconder ou falsear fatos, buscando o bem para nós mesmos e para nossos semelhantes. Portanto, se a prática da mentira não envolver o hábito, a perversidade e a hostilidade, e se não deixar seqüelas, ela pode ser útil e até necessária. O problema é estabelecer a diferença entre os tipos de mentira, pois nem sempre percebemos quando deixamos de ser Amélies e nos tornamos Betos.
Realidades subjetivas
Na exposição de Picasso realizada em São Paulo há alguns meses, além da coleção que reunia telas das diversas fases do pintor espanhol, havia também frases dele, igualmente geniais, pintadas em algumas paredes. A mais perturbadora dizia:
“A arte é uma mentira. Mas é através dessa mentira que podemos enxergar a verdade”.
Nesse caso Pablo Picasso usou as palavras como usava os pincéis. Justificou a importância da arte e recolocou em cena a velha discussão da convivência do homem com a verdade e com a mentira.
O pintor queria mostrar que qualquer forma de expressão – principalmente a artística – carrega uma interpretação que distorce os fatos reais. Picasso lembra que, sem a mentira, a arte não existiria em nenhuma de suas formas. Uma escultura é um corpo de mentira. As pinturas, os poemas, os romances – todos falsos em princípio, assim como o cinema, a fotografia, o teatro.
Mas, veja bem, mesmo sabendo que qualquer interpretação da realidade é subjetiva – e inevitavelmente não dá conta de toda a realidade –, isso não serve como desculpa para sair por aí contando mil e uma fábulas. A mentira consciente é aquela em que sabemos, temos a consciência plena de que estamos dando uma indicação contrária a essa realidade parcial que percebemos. Senão, não é mentira – é engano. A pessoa não mentiu, apenas enganou-se, e passou o engano adiante. Mas, quando mentimos, sabemos que estamos mentindo. Isso faz toda a diferença, por que é nesse momento que temos a possibilidade de escolher se queremos faltar com a realidade ou não.
Seria uma grande mentira dizer que você nunca mais mentirá, pois você é um ser humano. E a mentira é um desses defeitos “excessivamente humanos” – como diria Nietzsche. Mas, como ser humano, é possível cultivar o hábito de sempre se observar para constatar se sua relação com a verdade e com a mentira é saudável o suficiente para que você mantenha uma boa relação consigo mesmo. Sem se enganar.
Texto publicado na Revista Vida Simples.