A milésima segunda noite no fundo do mar - Parte 1
Você saberia dizer quais são as três palavras mais reconhecidas do mundo? Segundo uma recente publicação da Smithsonian Magazine são, nessa ordem: Deus, Coca Cola e Titanic. Para mim é curioso, pois, enquanto a primeira diz respeito ao tema universal da espiritualidade e a segunda é uma máquina global de marketing de marca, a terceira é, bem, o RMS Titanic.
Muitos vão imediatamente pensar na famosa cena romântica na proa do “navio mais seguro do mundo” e que afundou logo na sua primeira viagem, em abril de 1912, perto da costa canadense, depois de zarpar do porto de Southampton, na Inglaterra.
Foi um dos maiores acidentes marítimos da história, com cerca de 1500 mortos, mas o filme romântico embalado no enredo dessa tragédia certamente ajudou na mitificação desse nome. Até aqui é o terceiro longa-metragem que mais arrecadou receita, ultrapassando U$ 2 bilhões (e segue contando).
Foi atrás desse Patrimônio Cultural Subaquático (título dado pela Unesco em 2012) que cinco pessoas curiosas, corajosas e endinheiradas entraram numa pequena embarcação feita pela NASA para visitar os escombros do naufrágio.
Pagaram em torno de U$ 250 mil cada e, até o momento em que escrevo estas linhas, estão perdidos no fundo do mar, sem comunicação com o navio que serviu de base para seu lançamento no local da visita. O pequeno submarino tem autonomia de oxigênio para alguns dias, mas se a busca, que conta com barcos e aeronaves das guardas costeiras do Canadá e EUA não tiver sucesso, o destino deles será fundido ao da “nave mãe”, tendo as criaturas das profundezas do mar como testemunha.
Mais ou menos no mesmo período em que esses aventureiros partiram em regozijo neste turismo de luxo, em outro porto do mundo, mais precisamente em Tobruk, na Líbia, partiu um navio tainheiro, de pesca, portanto, com sabe-se lá quantas pessoas à bordo. Acredita-se que eram 300.
Não havia serviço de bordo, tampouco registro deles, pois eram refugiados (leia-se “desesperados”) da guerra naquele país. Conseguiram chegar perto da Grécia, quando foram cercados por barcos patrulheiros europeus até que, minutos depois, naufragou.
Pouco mais de 100 pessoas foram resgatadas com vida até agora, quase o mesmo número de corpos, e aqui está a verdadeira tragédia. Não que os afortunados endinheirados turistas dos escombros do Titanic não mereçam nossas preces, mas é importante refletirmos sobre a disparidade da proporção humana dos problemas.
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Não é novidade, apesar de ser cruel pensar nisso, que a vida de quem tem mais dinheiro vale mais do que a de quem tem menos. A de quem não tem nada, pois teve que deixar desesperadamente tudo para trás, vale menos ainda, pelo que esta e tantas outras histórias similares nos contam.
Cruzar estas duas jornadas, uma de luxo e riqueza, outra de pobreza e esperança, não seria tão útil ao processo da produção de texto como é para a reflexão sobre os desafios da vida. O mundo, nosso mundo, afinal, é feito disso, de diferenças e discrepâncias, de desafios e sonhos, de luxos e tragédias.
Já se vão mais de 100 anos que o Titanic afundou e mesmo lá, com tanta fartura no andar de cima, havia fome e desespero o andar de baixo. Aliás, a maioria dos mortos estavam lá (como o Jack do filme), pois assim como em 2023, a vida deles valia pouco.
Essas histórias seguem se desenrolando e espero muito que venham notícias boas dos dois mares, dos dois mundos, apesar de, pessoalmente, me conectar mais com os problemas do tainheiro. Ali a luta só está começando e muitos outros desafios hão de vir aos que escaparem de um destino no fundo do mar.
Talvez essas histórias não sejam tão espetaculares para o cinema quanto a do transatlântico, mas não tenho dúvida que a jornada de cada um ali foi muito maior, mais poderosa e mais corajosa do que muitos de nós podemos imaginar.
É emocionante ver os protestos e trabalho dos que tentam ajudar essas pessoas, é um sinal de que ainda podemos ter salvação moral como espécie. Aos que estão longe, pode parecer pouco a torcida e orações, mas para nossa humanidade fará muito bem ter ao menos compaixão aos que perecem tentando viver, mesmo que saibam que a maioria não se importa.