Monitoramento de Processos de Alta Qualidade
1.Introdução
Geralmente sou avesso a exercícios de previsão do futuro, e fujo de posts e artigos que versem sobre “eliminação de profissões no futuro”, “este é o novo mundo”, “sua nova forma de trabalho”, “isto ou aquilo está acabado”, e afins. Procuro me manter bastante humilde em relação aos efeitos dos milhões de variáveis que interagem em sistemas complexos e caóticos, procurando, como ensinou o grande Walter Shewhart, prever comportamentos somente “entre limites”, e ciente das incertezas que dominam um mundo probabilístico.
No entanto, certas progressões de comportamento nos levam a ser otimistas quanto a determinados cenários. Com o advento da chamada 4ª. Revolução Industrial, os profissionais da qualidade devem, num futuro próximo, experimentar o convívio com a Qualidade 4.0, que faz uso de novas tecnologias e deve nos levar, pelo menos no que concerne este artigo, a um menor nível de variação nos processos.
Segundo Dan Jacob, “a Qualidade 4.0 não substitui os métodos tradicionais da qualidade, mas os constrói e aprimora”.
Dito isto, será útil verificarmos como monitorar e melhorar processos que, por exemplo, apresentem baixas proporções de defeituosos, tentando obter critérios que permitam-nos julgar se houve modificações/melhorias nestes processos.
2.As Limitações do Método Geralmente Utilizado
Durante quase uma centena de anos, temos usado as cartas-p para o controle estatístico de processos, quando estamos trabalhando com dados de atributos (por exemplo, proporção de defeituosos). A carta-p se ajusta bem a situações em que o modelo binomial é atendido, ou seja, a probabilidade p de ocorrência de uma falha pode ser considerada constante e todos os elementos da amostra usada possuem a mesma probabilidade de apresentarem falhas. Um item possuir ou não um certo atributo não influencia a probabilidade do próximo item possuir o atributo. Esta é uma premissa que pode ser difícil de ser encontrada na prática e geralmente contornamos tal dificuldade usando cartas para valores individuais (XmR) quando não estamos certos do atendimento ao modelo binomial.
O fato é que a carta-p usa limites 3 sigma, pois baseia-se na aproximação com a distribuição Normal, o que ocorre para valores de p que não sejam muito baixos. Tradicionalmente, consideramos que esta aproximação ocorre quando np > 5 e n(1-p) > 5, onde n = tamanho do subgrupo utilizado para a amostragem e p = probabilidade da ocorrência do defeito (ou do sucesso).
A figura 1 nos mostra as condições necessárias, em termos de n (tamanho do subgrupo amostral) e p (proporção de defeituosos) para que a carta-p possa ser usada com a aproximação da Normal. Note que para p baixos (processos de alta qualidade), tendemos a tamanhos de amostra desconfortáveis, talvez até mesmo inviáveis. Neste caso, a forma tradicional de uso da carta-p já não satisfaz aos praticantes da área de processos.
Fig. 1. Para diversos tamanhos de subgrupo, os p mínimo e p máximo para a obtenção da aproximação com a distribuição Normal.
Uma outra característica complicadora do seu uso é que, em ambientes de alta qualidade de processos, com quantidade de defeitos próxima a zero, os limites inferiores de controle geralmente são menores que zero, perdendo seu significado.
A figura 2 mostra o tipo de distribuição Binomial assimétrica que obtemos em ambientes de baixa proporção de defeituosos (p = 0,005), ainda que usando um tamanho de amostra igual a 200.
A figura 3 mostra o efeito da alta qualidade do processo em uma carta-c, baseada em um modelo de Poisson, usada para monitorar a quantidade de defeitos encontrada em cada amostra. Note que, neste caso, qualquer ocorrência de defeito é considerada como causa especial de variação. A aproximação da distribuição de Poisson pela Normal só acontece para casos em que c-bar > 5.
Fig. 2. Distribuição Binomial assimétrica para p = 0,005 e n = 200.
Fig. 3. Carta-c para um processo com média de defeitos (c-bar) igual a 0,018.
3. O Uso de Limites de Probabilidade
Quando a aproximação à Normal não pode ser feita, os limites 3 sigma podem ser substituídos por limites probabilísticos.
Utilizando um exemplo onde temos p = 0,01 e n = 200 (amostras diárias de 200 itens nos últimos meses, com probabilidade de falhas de 0,01), podemos obter o equivalente às cartas de controle de médias e amplitudes e de valores individuais, quando a normalidade dos dados é assumida. Ou seja, esperamos que 0,27% das ocorrências caiam além dos limites de controle (abordagem probabilística das cartas de controle). Logo, se formos ao Minitab, podemos estabelecer a seguinte sequência de comandos.
Para o limite superior de controle:
Observe que estamos trabalhando com valores discretos (falhas), assim, optaremos pelo valor 7, correspondente a uma probabilidade cumulativa inversa que mais se aproxima de 0,99865, que é igual a (1 – 0,00135).
Para o limite inferior de controle:
Neste caso, teremos que usar o limite inferior de controle igual a 0. Desta forma, a nossa carta de controle np para os dados do exemplo ficaria no formato que aparece na figura 4. A carta-np é muito próxima à carta-p, só que plotamos os números de defeituosos encontrados em cada amostra de 200 elementos, em vez de plotarmos as proporções.
Fig. 4. Carta np com para um processo p=0,01 e n=200.
Observe que temos uma limitação de análise. O limite inferior de controle é zero, assim não temos como avaliar quando o processo for melhorado. Ainda que trabalhemos com limites probabilísticos, nem sempre teremos limites totalmente úteis. Quanto a isto, Xie, Goh e Kuralmani (2002) analisam como podemos utilizar o modelo Binomial para chegarmos a valores corretos para os limites inferiores de controle para cartas-np. A figura 5 mostra os limites inferiores que deveremos usar para n e p dados. Observe que, para n = 200 e p = 0,01 (nosso último exemplo), é realmente impossível trabalharmos com um limite inferior diferente de zero.
Fig.5. Alguns valores corretos para os limites inferiores de controle de cartas-np, dados n e p. Em “*” a solução não é possível, e não conseguimos detectar melhorias. Em “+” np é grande o suficiente para que limites 3 sigma sejam usados. Fonte: Xie, Goh e Kuralmani (2002).
Uma observação importante sobre a tabela acima é que, ainda que consigamos calcular tais valores usando um software, os autores optaram por valores mais conservadores, ou seja, valores de limites que aumentem a probabilidade de aceitarmos que o processo não se alterou.
4. A Carta G
Ao lidarmos com processos de alta qualidade, observamos que há um grande número de elementos conformes entre o aparecimento de cada não conformidade. A ideia por trás da carta G, então, é detectar mudanças na quantidade de conformidades entre defeitos, para verificar se houve uma modificação no processo.
A carta G surgiu nos anos 1990 e lida com o “espaço” entre eventos (não conformidades).
A carta G é baseada na distribuição Geométrica. Uma variável aleatória geométrica é uma variável discreta que representa o número de itens não defeituosos antes do primeiro item defeituoso, em uma série de itens independentes, cada um com probabilidade p de ser defeituoso. A figura 6 mostra uma distribuição Geométrica para p = 0,25.
Fig. 6. Distribuição Geométrica para p = 0,25.
Fig. 7. Representação da variável aleatória geométrica.
A fig.7 mostra a variável geométrica, que corresponde ao número de não eventos entre dois eventos. Assim, em termos de controle e melhoria de processos, não é difícil deduzir que, quanto maior o número de não defeituosos (não eventos) entre dois defeituosos (eventos), melhor a qualidade do processo. Desta forma, a carta de controle geométrica, que será apresentada, é lida e interpretada de modo diferente das tradicionais cartas de controle para atributos. Se um ponto cai acima do limite de controle superior, o espaço entre dois eventos é considerado grande o suficiente para ser interpretado como uma causa especial de variação na direção da melhoria de processo. Para um ponto situado abaixo do limite inferior de controle, temos um indício de uma piora no processo, já que o número de não eventos diminuiu de modo importante.
Se a probabilidade de um item não conforme é p, então a probabilidade de obtermos n - 1 itens conformes seguidos por um não conforme é:
p[(1 – p)^(n – 1)] , n = 1, 2, 3 ...
Note que a operação da carta de controle geométrica não foge ao padrão que utilizamos para as cartas Shewhart, no sentido de que precisamos estimar primeiramente os seus parâmetros, a partir de um processo em controle. Mas observe um outro ponto. Ao usarmos limites 3 sigma, devido à assimetria da distribuição, poderemos ter problemas com excesso de alarmes falsos. A figura 8 mostra um histograma de processo com p = 0,005 e as linhas de média e média + 3*sigma. Acima de média + 3*sigma ocorreram 16 eventos, ou seja, estaríamos com uma probabilidade de 1,6% de ocorrências de situações em que procuraríamos causas especiais de variação.
Fig. 8. Distribuição Geométrica com 1.000 observações e p = 0,005.
Este valor é considerado alto, já que, para uma carta 3 sigma lidando com dados aproximadamente normais em um processo em controle estatístico, a probabilidade de alarmes falsos seria de 0,27% (somando-se acima e abaixo dos limites de controle). Por falar em “abaixo do limite de controle inferior”, note que nós não o teríamos no exemplo acima, pois seria negativo. E já que a variável “número de não eventos entre eventos consecutivos” nunca é negativa, vemos que um limite negativo não teria sentido físico.
Logo, há alguns contratempos no uso de cartas geométricas nos moldes 3 sigma em processos com baixa proporção de defeituosos. Podemos, então, usar limites probabilísticos de controle como alternativa na construção da carta.
Vamos a um exemplo.
Podemos simular um processo fabril que tem como output um determinado componente que pode ser julgado defeituoso (evento) ou não defeituoso (não evento). Ao evento atribuiremos o número 1, e ao não evento, o número 0. Assim, por meio de uma simulação de experimentos de Bernoulli no Minitab, com probabilidade do evento igual a 0,008, chegamos ao processo. Podemos dizer, em linguagem mais simples, que o processo apresenta p aproximadamente igual a 0,8% de falhas.
Retorne à figura 7. A tabela que está abaixo inclui as quantidades de não eventos entre eventos consecutivos, ou seja, componentes que foram produzidos sem defeito entre os componentes que apresentaram defeito. A amostra total do processo foi de 4740 componentes.
Assim, pela tabela, vemos que até o primeiro defeituoso rastreado houve 125 não defeituosos. Entre o primeiro e o segundo defeituoso houve 116 não defeituosos. E assim por diante.
Há 40 dados a serem plotados na carta de controle geométrica.
Fig. 9. Quantidades de não eventos do processo analisado.
Os próximos passos são calcular a linhas central e os limites de controle da carta, para podermos analisar o processo.
Yang, Kuralmani e Tsui (2002) indicam as seguintes expressões para a proporção de defeituosos, linha central e limites de controle da carta:
p = N/m
onde
N = número de itens não conformes
m = tamanho da amostra utilizado
Linha Central
LC = [ln(0,50)/ln(1 - N/m)] - 1
Limite de Controle Superior
UCL = [ln(alpha/2)/ln(1 - N/m)] - 1
Limite de Controle Inferior
LCL = ln(1 - alpha/2)/ln(1 - N/m)
onde
alpha = probabilidade (0,0027) de falso positivo de uma causa especial de variação em uma carta de controle 3 sigma utilizando dados normalmente distribuídos.
As expressões para LC, UCL e LCL são obtidas a partir de manipulação da função de distribuição acumulada geométrica. Note que a expressão para LC, ao trabalhar com ln(0,50), atende à mediana da distribuição geométrica.
Aplicando as expressões acima aos dados do processo, temos:
p = 40/4740 = 0,008439
LC = [ln(0,50)/ln(1 – 40/4740)] – 1 = 80,8
UCL = [(ln(0,00135)/ln(1-40/4740)] – 1 = 778,7
LCL = [(ln(1-0,00135)/ln(1-40/4740)] = 0,16
A carta G construída está na figura 10. Observe que o processo está em controle estatístico e consideraríamos uma eventual melhoria do processo em situações em que o limite superior de controle (778,7) fosse ultrapassado. Isto seria o equivalente a dizer que o espaço entre os eventos (não conformidades) teria aumentado de modo significante. Uma piora do processo seria identificada em situações em que pontos caíssem abaixo do limite inferior de controle, o que é impossível nesta situação, já que “número de conformidades” é uma variável discreta e maior ou igual a zero, que é justamente o valor do limite de controle inferior.
Então, repetindo, nota-se que a carta G deve ser analisada de modo oposto às cartas p e np.
A carta abaixo pode ser utilizada como referência para futura coleta de dados, a chamada fase II do controle estatístico do processo. Na fase I estimamos os limites de controle e a linha central do gráfico.
Fig. 10. Carta G para um processo com p aproximadamente igual a 0,008.
A carta de controle acima pode também ser elaborada no Minitab, o que nos dá a opção de realizar testes de detecção de causas especiais, além do “ponto além do limite de controle”. Um dos testes úteis que foram criados para a detecção de piora do processo em situações de processos de alta qualidade é o teste de Benneyan. Esta piora (ponto abaixo do limite de controle inferior) nem sempre é possível de detectar, já que os limites inferiores se aproximam frequentemente de zero, ou mesmo são iguais a zero.
5. Crítica do Modelo
Ao substituirmos uma carta p tradicional por uma carta G, estamos aptos a detectar melhorias em uma situação de baixo percentual de defeituosos. Já que o limite inferior de controle em uma carta p, neste tipo de processo, será próximo ou igual a zero, é muito difícil, ou mesmo impossível, detectar baixas na proporção de defeituosos. Na carta G, isto é fácil, já que uma melhoria significativa será indicada por pontos que ultrapassem o limite superior de controle.
O modelo geométrico apresenta o mesmo problema que o modelo binomial ou Poisson. As cartas de controle neles baseadas partem do princípio que a carta usada é aplicável ao caso, atendendo às premissas do modelo probabilístico no qual ela se baseou. Isto pode não ser verdade, dependendo do caso.
A questão do tamanho de amostra não foi completamente resolvida. Se antes, para uma carta p, trabalharíamos com subgrupos muito grandes, no exemplo que apresentamos trabalhamos com subgrupos de tamanho igual a 1, o que nos fez analisar toda a produção até aquele momento. Certamente, em um ambiente em que possamos usar tecnologia para tornar tal inspeção a mais rápida possível, a questão acima mencionada não trará grande impacto. Processos de manufatura automatizados podem endereçar tal situação.
O processo apresentado no exemplo possui nível sigma igual a 3,89. Para um processo em controle estatístico, podemos esperar intervalos bem maiores entre os eventos (defeituosos) para processos de níveis sigma maiores. Para um processo 4,79 sigma (aproximadamente 500 ppm), podemos esperar uma média de 2000 não eventos entre cada evento.
6. Considerações Finais
Para os apreciadores do controle estatístico do processo, o assunto parece fascinante, já que processos com maior qualidade são um dos objetivos de qualquer profissional de melhoria.
Neste sentido, foram apresentadas algumas técnicas dentre as diversas existentes para trabalharmos com processos de baixa variação, dentro do universo das variáveis discretas. Espero trazer mais alguns tópicos sobre este assunto em futuros artigos. O fato é que variação sempre existirá, em maior ou menor grau, e devemos utilizar métodos adequados para sua análise e redução.
Referências
Yang, Z., Xie, M., Kuralmani, V., Tsui, K-L. On the Performance of Geometric Charts with Estimated Control Limits. Journal of Quality Technology (2002).
Benneyan, J. Performance of Number-Between g-Type Statistical Control Charts for Monitoring Adverse Events. Health Care Management Science (2001).
Xie, M., Goh, TN., Kuralmani, V. Statistical Models and Control Charts for High-Quality Processes. Kluwer Academic Publishers (2002).
Executiva C-Level Negócios, Comercial e Operações | Relacionamento com Clientes | Planejamento | ESG | Docente | Mentora | Master Black Belt
4 aPerfeito! Adorei
Master Black Belt - Head of EmPower Continuous Improvement @ Serasa Experian | LSS MASTER BLACK BELT | Melhoria contínua
4 aPerfeita avaliação mestre
Transformando dados em informações estratégicas através da metodologia Lean Six Sigma / Engenheiro de produção / Black Belt
4 aParabéns Marcelo Grimaldi pelo artigo.
Estratégia Corporativa (Performance | Processos | Projetos | Melhoria Continua | CX)
4 aMarcelo, você é o cara!!!
Gerenciamento de Projetos | Melhoria Continua (Master Black Belt) | Planejamento Estratégico | Desdobramento de Metas | Gestão da Qualidade
4 aBacana seu artigo Marcelo! Parabéns!