Movido a àlcool [crônica]
Faz tempo que eu havia esquecido que um dia houve um tal de Proálcool, destinado a desenvolver uma alternativa energética para nosso país. Talvez a gente não tenha dado a devida atenção, mas verdade é que nós, brasileiros, há muitos anos dominamos uma tecnologia de ponta, de exploração bioenergética, menos poluente e, principalmente, renovável. Já movimentou boa parte da frota nacional e ainda hoje faz parte da mistura de nossa gasolina.
Foi na época da crise do petróleo, em que os maiores produtores mundiais resolveram se organizar, que surgiu no Brasil uma solução tecnológica única no mundo, talvez até hoje inigualável pela sua escala.
Também inigualável eram as aventuras de Osmani com seu Corcel II LDO.
Quando comprou o carro, o primeiro (e único) "zero quilômetro" de sua história automobilística, o must era a cor prata. Esnobava para todos os amigos e, principalmente, aos parentes (especialmente os cunhados) sua nova aquisição com a novidade da pintura metálica.
Os anos se passaram, veio o Plano Cruzado, e junto com ele, sua demissão do cargo de gerente do mercado do bairro, um pouco antes dele tentar trocar o Corcel por um DelRey Ghia. Os fiscais do Sarney pegaram a famigerada maquininha remarcando os preços e Osmani ainda tentou se defender: "estou remarcando para baixo". Mas, é claro, ninguém acreditou.
Ficou famoso ao aparecer na TV sendo preso, mas sua família não aguentou sua notoriedade, ainda que fugaz. A mulher decidiu voltar para o interior de Minas Gerais levando os filhos assim que os vizinhos começaram a apontar Osmani e sua família enquanto andavam pelas ruas. Tentou ir junto, mas a sogra decretou seu estado de calamidade: "se você aparecer por aqui, eu lhe mato a vassouradas, capitalista safado, explorador de pobres, remarcador do caramba!".
Ficou sozinho em São Paulo. Passou a morar com seu carango. Logo deu a volta por cima, vendendo doces pelas ruas do bairro, com um alto-falante tipo corneta sobre o capô. Com a experiência que tinha no mercado - literalmente - começou a refazer sua vida.
Tratou logo de colocar uns acessórios - farol de de milha Cibié tipo bi-iodo e rodas raiadas tipo Mercedes, exclusividade da Rodão, famosa loja paulistana de acessórios da década de 80. Era a forma de homenagear a solidariedade que seu Corcel II lhe prestou nos tempos difíceis. Afinal seu carro era praticamente seu escritório e sua casa.
O estado do carro já estava calamitoso, com marcas de massa plástica cobrindo parte da porta, dando uma aparência rajada que fazia o Ford ser reconhecido à distância. A grande vantagem é que tão logo as crianças o avistavam, já saiam saltitantes à espera de jujubas, doces de abóbora e outras iguarias que saltavam do porta-malas na companhia de sacos rosados de pipoca de canjica.
Um dia foi a uma festa e, quando perguntado se havia ido sozinho, disparou:
- Vim com a Jurema - referindo-se ao seu carro.
Nem ele mesmo entendeu porque disparara aquele nome tão prosaico, mas decidiu adotá-lo. Pediu desculpas ao nobre amigo, que, ao ser elevado à condição de companhia incondicional de Osmani, recebeu nome digno de uma égua puro-sangue. Acontece, caro amigo Corcel.
Uma vez foi convidado a ir a uma quermesse em uma igreja em São Bernardo do Campo. Quando chegou, foi orientado a estacionar em um pátio, que Osmani estranhara, pois parecia parte da praça. Mas, desligado que era, deu de ombros e seguiu para a festa.
Enquanto passeava de barraca em barraca, prestava atenção a cada disparo de alarmes, pois acabara de colocar um que tinha sensores em todos os vidros, inclusive no basculante traseiro.
Um pouco mais e esbarrou em uma loura monumental na barraquinha de quentão, a mesma que já perdera as contas de quantas vezes passara. De tão bêbado mandou uma cantada que só depois soube porque funcionou. Mas o importante é que convencera a mulher a sair dali para um lugar mais apropriado aos interesses de ambos.
Caminharam até a praça, onde estava a Jurema. Quando a mulher viu o carro, foi logo perguntando se era um DelRey. Osmani, constrangido, pacientemente explicou que a grade com frisos verticais e as pequenas lanternas do sinalizador que saltavam do capô foram uma adaptação de peças modelo rico, irmão de fábrica do Corcel.
Quando deu por conta, percebeu que Jurema estava exatamente no meio do pátio com carros espremidos em sua volta. Osmani xingou toda a família do flanelinha - que a esta hora também se divertia nas barracas da quermesse - ao perceber que seu carro estava todo cercado e que não havia a menor chance de sair de lá.
Negociou pacientemente com a mulher que, compreensiva, resolveu atender ao convite e aguardar um pouco no interior carro.
Osmani, então, gentilmente ligou seu toca-fitas RoadStar e o equalizador Tojo que alimentavam os altofalantes triaxial 6x9 da Novik, instalados no tampão atrás do banco traseiro e a meia dúzia de falantinhos Blaupunkt nas portas da frente.
Conversa vai, conversa vem, Osmani esbarrou com o joelho no toca-fitas e a trilha musical saltou de um sertanejo animado de seu K7 para uma estação de rádio romântica. Por um desses motivos que só a alma feminina é capaz de explicar, a mulher saltou excitadíssima sobre Osmani quando ouviu a voz de Julio Iglesias.
Osmani lembra-se somente de que ouvira algo sobre "ah, como você é romântico! ahhhh... hummmm..." antes de começar um sacolejante teste de amortecedores, em tórridas e indescritíveis experiências de amor.
Ainda pela manhã, não dava para ver nada dentro do carro.
Esse comentário merece uma pausa: outro dia mesmo, contava esta estória para um colega da labuta diária - na verdade, uma roda formada pelos manobristas da garagem do prédio que formavam, ao menos, uma audiência interessada. Um deles, o Tónin (sempre tem um, assim como Zézin, Ciará e Baixin) perguntou:
- Tinha "issofilme", dotô?
- Claro que não seu Tônho. Naquele tempo a novidade ainda era o parabrisa degradèe e laminado. No máximo, vidros verdes. Filme é para outra história...
Mas, como eu ia contando, quando amanheceu, não dava para ver nada dentro do carro. Os vidros estavam totalmente embaçados por dentro e por fora. O orvalho fino cobrira Jurema, em uma poética cena matinal.
Osmani acordou com um ruído seco de metal batendo no vidro. Olhou para a loura, que parecia um pouco mais velha pela manhã do que parecera na noite anterior. Revolveu-se, de modo a tirar as mãos debaixo do coxinil laranja que lhe servira de cobertor e abriu os vidros. Deu de cara com um cano de revólver, e um quepe que abrigava um policial por baixo:
- Isso é lugar para fazer sexo, rapaz?
- Quéisso, seu guarda. Meu carro que é movido a álcool. Eu não - protestou Osmani.
Então explicou a ladainha do flanelinha, de como ficou preso com os carros em volta e, canalhice, apontou a loura, que dormia, e comentou que não abusaria de uma senhora tão idosa e distinta.
- Positivo. Vou liberar, desta vez. Vamos circulando rápido antes que chegue outro comando por aqui.
- Sim, senhor... mas o policial pode arrumar um pouco de gasolina? É para a partida a frio...
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Esta crônica foi escrita há alguns anos. Encontrei em um velho HD, esquecido nas inúmeras pastas. Resolvi compartilhar aos mais "experientes" que, certamente vão reconhecer diversos ícones das décadas de 70 e 80!
CEO - Politech Soluções
6 aEste foi o melhor motor a alcool do Brasil, para sua epoca, no inverno nao dava chabu.
Supervisor / Coordenador de Logística e Manuseio de Materiais
6 aEsse Corcel II era TOP!