Muito mais que um solvente
O obstáculo
A água é o liquido mais abundante do planeta chegando a cobrir três quartos da superfície. Constitui a maior parte dos fluidos vitais nos seres vivos e é onde ocorrem diversas reações biológicas formando compostos orgânicos necessárias à vida, com as mais complexas estruturas, assimetrias e arranjos tridimensionais [1]. Diante da observação do seu papel biológico, da sua abundância, de ser um composto verde, não tóxico e não inflamável, além de poder coexistir nos seus três estados nas condições ambientais existentes no planeta, não se pode negar sua potencialidade para as mais diversas aplicações, sejam elas industriais, acadêmicas ou comuns ao dia a dia [1,2].
Infelizmente, longos anos de desenvolvimento metodológicos na área de síntese orgânica não favoreceram o emprego das competências desse solvente. Por vezes, esse menosprezo é advindo da pouca solubilidade de alguns materiais orgânicos em meio aquoso, além de reações indesejadas entre esses compostos e a água, que reduzem a produtividade do processo reacional e reações catalíticas que são desativadas pela presença desse solvente polar [3].
A reviravolta
Realmente a água não pode ser utilizada simplesmente pela sua adição ao meio reacional. É fato que ela tem todas as capacidades de ser aplicada nas mais diversas reações, mas são necessárias algumas adaptações a sua utilização, assim como pode ser observado no trabalho de Manabe et al. (2000) [3].
Segundo Butler e Coyne (2010) [1], existem ao todo três formas de utilização da água em reações. Primeiramente a água pode ser um dos reagentes, ou seja, pode fazer parte do processo de formação do produto desejado, o que acontece, por exemplo, em reações de hidrólise.
A segunda é quando a reação acontece via processo “In Water”, expressão essa que veio a ser largamente utilizada após o trabalho de Rideout e Breslow (1980)[4,5]. Processos como esse ocorrem quando todos os reagentes envolvidos são capazes de se solubilizar em água. As interações conhecidas para esse tipo de sistema e que explicam, de certo modo, o aumento da velocidade da reação quando em presença de água são o efeito hidrofóbico, descrito originalmente por Rideout e Breslow (1980)[4], pela presença de ligações de hidrogênio, descritas no trabalho de Blake e Jorgensen (1991) e Rodgman e Wright (1952)[6,7] e o efeito da polarização para reações, onde o estado de transição é mais afetado pela polarização da água que os reagentes, como descrito por Otto, Blokzijl Engberts (1994)[8].
A terceira forma pela qual a água é utilizada em síntese orgânica é em processos, de modo similar ao caso anterior, conhecidos pela expressão “On Water”. Nesses processos nenhum reagente é solúvel no meio reacional. A primeira vista, essa ocorrência vai de encontro a intuição comum, onde um processo ocorrendo em meio aquoso só acontece se houver dissolução de pelo menos um dos reagentes, caso onde a reação estaria acontecendo em um meio homogêneo ou heterogêneo que já apresenta equações e modelos suficientemente sofisticados para prever o que acontece com cada reagente dentro do processo. Entretanto, Narayan et al. (2005)[9] mostraram que isso não era necessário. A condição suficiente, para que uma reação orgânica que siga um mecanismo “On water” é que pelo menos um dos reagentes seja líquido. No caso de dois reagentes sólidos, esse tipo de mecanismo se torna desafiador como descrito por Butler e Coyne (2010)[1].
Nessas configuração de reagentes insolúveis em água, Jung e Marcus (2007) [10] mostraram que a capacidade da água em aumentar a velocidade da reação está relacionada à ligações de Hidrogênio na interface entre as fases aquosa e orgânica que são recebidas favoravelmente por compostos que possuem o estado de transição mais polar que os reagentes, o que é conhecido como a Marcus trans-phase H-bonding.
Discussões aprofundadas acerca desses tópicos podem ser eficientemente endereçadas a alguns trabalhos reconhecidos na literatura especializada [1,11,12,13, 14, 15, 16].
Em resumo...
Muito mais do que um solvente, a água é um catalisador, e também um ótimo meio para produção mais limpa seguindo os padrões de desenvolvimento de produtos verdes. Assim, deve haver um potencial ainda pouco aproveitado para utilização da água como solvente em sínteses orgânicas, mas que requer estudos aprofundados e, com certeza modificação de como são realizados os protocolos de reação, pois não se pode imaginar que todos os compostos orgânicos apresentem as mesmas interações com a água e consequentemente os mesmos fatores que incrementem a taxa de reação. Os estudos relatados são, portanto apenas o início de uma tendência que pode abrir novos rumos para reações orgânicas mais rápidas, eficientes e limpas.
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Referências
[1] R. N. Butler, A. G. Coyne, Chem. Rev. 2010, 110, 6302–6337.
[2] J. B. F. N. Engberts, M. J. Blandamer, Chem. Commun., 2001, 1701–1708.
[3] K. Manabe, Y. Mori, T. Wakabayashi, S. Nagayama, S, Kobayashi, J. Am. Chem. Soc. 2000, 122, 7202-7207.
[4] D. C. Rideout, R. Breslow, J. Am. Chem. Sot. 1980, 102, 7817-7818.
[5] R. Breslow, Acc. Chem. Res. 1991, 24, 164- 170.
[6] J. F. Blake, W. L. Jorgensen, J. Am. Chem. Soc., 1991, 113, 7430-7432.
[7] A. Rodgman, G. F. Wright, J. Org Chem., 1953, 465-484.
[8] S. Otto, W. Blokzijl, J. B. F. N. Engberts, J. Org. Chem. 1994, 59, 5372-5376.
[9] S. Narayan, J. Muldoon, M. G. Finn, V. V. Fokin, H. C. Kolb, K. B. Sharpless, Angew. Chem. Int. Ed. 2005, 44, 3275 –3279.
[10] Y. Jung, R. A. Marcus, J. AM. CHEM. SOC. 2007, 129, 5492-5502.
[11] N. Shapiro, A. Vigalok, Angew. Chem. 2008, 120, 2891 –2894
[12] J. E. Klijn, J. B. F. N. Engberts, NATURE, 2005, 435, 747-747.
[13] A. Chanda, V. V. Fokin, Chem Rev., 2009, 109(2), 725–748.
[14] C. J. Li, Chem. Rev. 1993, 93, 2023-2035.
[15] C. J. Li, L. Chen, Chem. Soc. Rev., 2006, 35, 68–82.
[16] M. C. Pirrung, Chem. Eur. J. 2006, 12, 1312 – 1317.