No mundo dos haters e cancelamentos,
todo dia é dia de cadeirada.

No mundo dos haters e cancelamentos, todo dia é dia de cadeirada.

Em 1973, Raul Seixas provocava a sociedade com a música Metamorfose Ambulante: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Nada mais atual, não é mesmo, 51 anos depois?

O que há de errado em estar aberto a novas perspectivas? O compositor usa a metamorfose para falar da possibilidade de mudar atitudes e pensamentos, em vez de se apegar a conceitos que não têm mais valor. Para ele, não existia verdade absoluta e, de fato,

não existe. Mas, no mundo atual, isso beira um crime.

E, neste caso, o debate atual não está relacionado a alterar opiniões ou posições. O ponto central é o respeito por quem pensa de forma diversa. Nesse ambiente de haters, cancelamentos, e linchamentos virtuais e reais, a abertura para o diálogo, a flexibilidade de pensamento, e a capacidade de crescimento pessoal foram se perdendo. Esses gestos, hoje em dia, são encarados como sinais de fraqueza.

O novo normal subverteu qualquer lógica racional em todos os setores, onde quer que se olhe. Exemplo: a cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal, durante debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, demonstra tal estado de tensão no mundo contemporâneo.

Nesse caso, entre a agressão e a provocação, as pessoas se sentem impelidas e necessitadas a optar por um dos lados. E defendem seus pontos de vista de forma aguerrida com os argumentos mais absurdos e sórdidos, inacreditáveis até. O importante é ter razão. Aqui deixo minha opinião para eliminar qualquer tipo de dúvida: o ato foi deplorável sob qualquer perspectiva.

O pior é que, metaforicamente, a "cadeirada" está nos grupos de WhatsApp, na mesa do bar entre amigos, nas relações entre pais e filhos, dentro da família, no ambiente de trabalho, e por aí vai.

A virulência por ter uma opinião formada sobre tudo elimina o autocontrole e a ponderação. Na verdade, é uma briga sem vencedores, mas quem acha que leva vantagem é aquele que berra mais ou dá a primeira “cadeirada”.

Estou aqui fazendo essa ponderação, mas confesso que já caí nessas armadilhas. O problema é que, no calor do momento, a situação torna-se incontrolável e você, mesmo sem perceber, é jogado num pântano movediço, sem volta. Quando retoma a consciência, pode ser tarde: o estrago foi feito.

Para este tema, recomendo a leitura do excelente texto de Vania Bueno (Onde há pessoas, há conflito: mas o que fazer a partir disso?).

É justamente nesses instantes que precisamos estar mais atentos aos nossos comportamentos e à nossa comunicação. Conflitos sempre existiram, mas a velocidade e a intensidade com que surgem atualmente são avassaladoras. E basta um átimo de segundo para entrar nesse redemoinho visceral.

A pressão para revelar a opinião imediata, tomar um lado, sem a chance de uma pausa para reflexão, alimenta a espiral de reatividade que impacta diretamente nossas relações e nosso bem-estar. E repare, se já passou por isso: a primeira reação, logo no segundo seguinte ao evento estressante, é sempre desastrosa.

Espaços de confiança, onde conversas difíceis podem acontecer sem julgamentos, são cada vez mais raros. Contudo, quando encontramos esses ambientes, eles se tornam preciosos, permitindo que o diálogo seja genuíno e respeitoso.

Mas, como reagimos fora dessa arena confiável? É aí que entra a importância de escolhas conscientes e da busca por equilíbrio. O caminho para sobreviver em tempos de extremos está justamente em abraçar a transformação e abrir a escuta diante da incerteza, convivendo bem com elas.

Em vez de nos sentirmos pressionados a ter uma resposta para cada questão, podemos adotar uma postura de curiosidade e aprendizado contínuo, mesmo que não concordemos. E está tudo bem.

Diante de tantos extremos, o verdadeiro ato de coragem não é vencer debates, ter a última palavra ou distribuir “cadeiradas”, mas acolher o contraditório, ouvir o outro e permitir que as ideias fluam com liberdade. A genuína força está em não se apegar a convicções imutáveis, mas em crescer com cada nova perspectiva, em cada nova troca.

Se não for assim, recorro mais uma vez a Raul Seixas para encerrar este texto: “Prefiro ser louco em um mundo onde os normais constroem bombas.”

Ana Claudia Scardoeli

Sócia e Diretora Executiva na Aware Comunicação | Comunicação Estratégica

3 m

Para refletir

Glaucia Santos

Psicóloga e Psicanalista Clínica de Psicologia

3 m

Excelente reflexão!

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos