Não ignore as métricas
Elas podem dizer muito a respeito de como o jornalismo é utilizado para o bem e o mal
Jornalistas são profissionais cujo discurso profissional, por anos a fio, blindou a categoria em muitos aspectos.
Integrar seu trabalho às estratégias comerciais da empresa? Nem pensar! Convidar departamentos exógenos à redação para participar de uma reunião de pauta? Esquece! Conceber um novo produto ou serviço e perscrutar como o jornalista pode ajudar no incremento financeiro do projeto? Cruz credo!
Felizmente, uma lufada de novos ares parece estar dando novos contornos ao papel do jornalista dentro de suas organizações. Tudo embrionário, é verdade – e teremos oportunidade de falar muito sobre isso aqui –; mas, ainda assim, já é um começo.
Parte desse novo córpus da profissão também chega à técnica. Em termos práticos, alcança novas ferramentas de trabalho e demanda competências até então estranhas ao dia a dia do jornalista.
Exemplo disso são as métricas. Quase tudo hoje é mensurável. Dados e mais dados devidamente trabalhados conseguem prover ao jornalista um conjunto de informações a partir do qual pode se orientar para construir pautas, apurar notícias, aferir recepção de determinado assunto pelo público, entre outros.
Tais métricas, não raro, são interpretadas pelos ortodoxos como um modelo concebido para ser clickbait. Na equação de pageviwes e usuários únicos, importariam apenas os quesitos quantificáveis da amostra implicada nos números, ficando relegada a qualidade do jornalismo.
Goste-se ou não, métricas são padrões que auxiliam empresas na condução de seus negócios. Organizar uma home de portal com base nesses dados, hierarquizando informações conforme o interesse orgânico dos leitores, não tem nada de antijornalístico. Inclusive, esse artifício editorial pode ser combinado com estratégias comerciais, trabalhando, por exemplo, afinidades temáticas entre produção jornalística da redação e content marketing.
Além do lado business, métricas cumprem um papel importantíssimo no próprio fazer jornalístico e no compromisso que a atividade tem com a verdade dos fatos no espaço e no tempo. Excelente exemplo disso é do jornal britânico The Guardian.
Em uma manhã de março deste ano, Nick Dastoor, componente da equipe de audiência do jornal, iniciou seus trabalhos como de costume: redigindo e-mail diário para a equipe do The Guardian detalhando aos jornalistas como o público reagiu às reportagens publicadas no dia anterior.
Para isso, Dastoor se utilizara do Ophan, ferramenta que permite rastrear pari passu histórias publicadas pelo portal. Eis que um dado métrico saltou-lhe aos olhos: uma reportagem sobre um bombardeio em uma igreja no Paquistão estava aumentando significativamente o número de visitas. Mais de 51 mil visualizações eram provenientes do Facebook.
Os leitores estavam acessando a reportagem basicamente através dispositivos móveis. Era um público global, que chegava à história graças a páginas de nicho de redes sociais – o que surpreendeu o jornal, pois ele mesmo não estava promovendo a reportagem. Grande parte dos leitores, constatou Dastoor, estava investindo apenas poucos segundos na leitura do conteúdo de cerca de 1 mil palavras.
O mais curioso: tratava-se de uma história de 2013, ressurgida inexplicavelmente abril de 2019.
Naquela manhã, Dastoor encaminhou à redação mensagem em que admitia não saber precisamente o motivo do renascimento da repercussão da reportagem. Ele destacou que nos últimos dias a história havia sido compartilhada em um monte de páginas do Facebook de extrema direita e islamofóbicas. Ocorre que, ao remontar a publicação, nenhuma das postagens fazia a ressalva de que se tratava de um fato de mais de cinco anos.
O que os dados mostraram ao The Guardian é que suas reportagens antigas, convenientemente, poderiam ser utilizadas para fomentar discursos de ódio. Pela mera omissão da data da publicação, pessoas do mundo todo serviram-se da publicação para fazer circular nas redes boataria conveniente à xenofobia. Óbvio que, se clicassem na matéria, os leitores saberiam que se tratava de coisa antiga. Com isso, outra revelação dos dados dava conta de que inúmeras pessoas estavam repassando adiante uma informação sem nem sequer ter clicado no post.
Assumindo que o jornal tinha uma dose de responsabilidade no que as métricas estavam mostrando, o Guardian decidiu adicionar às imagens de notícias mais antigas o ano em que foram publicadas, dificultando a vida de quem pretende se utilizar maliciosamente de velhas histórias para espalhar indignação.
Em dias de desinformação, ajudar a combater rumores eivados de vícios nas redes pode ser um papel institucional de enorme valor ao jornalismo profissional. No caso do The Guardian, isso só foi possível graças à análise minuciosa de métricas – essas mesmas vistas por muita gente como mero artifício comercial.
É evidente que números fornecidos por ferramenta precisam de contextualização. É aí que entra o conhecimento editorial e jornalístico para lançar luzes sobre dados que, por si só, não dizem nada. Sua interpretação e alocação no mundo dos fatos e da dinâmica jornalística pode alçar os veículos a patamares mais elevados em diversos pontos do ecossistema jornalístico, seja para benefício comercial, seja para subsidiar a produção de reportagens robustas, ou para tomar uma simples decisão (colocar data na imagem!) e, assim, ajudar a combater um dos cânceres do ambiente informativo de nossos dias.
Não ignore os dados.
Entre no mundo das métricas.
Elas dizem muito a respeito do jornalismo e como ele é utilizado -- para o bem e para o mal.
Diretora de Atendimento na CDN | Especialista em Comunicação Corporativa e Relações Públicas
5 aExcelente iniciativa do Guardian!