Não se formam super-heróis

Não se formam super-heróis

Executivos de todo o mundo se sentem pressionados a buscar características e habilidades das mais diversas, para fazer frente aos novos tempos. Mas será que isso não os faz perder o foco no que realmente importa, no exercício da liderança?

Quando se fala em negócios e liderança, os tempos atuais são, possivelmente, os mais desafiadores da história. A incrível aceleração das mudanças que já vivemos e que será cada vez mais sentida nas próximas décadas, diante dos avanços tecnológicos e científicos que caracterizam a Era Exponencial, traz tanto oportunidades como rupturas em ritmo frenético. Não bastasse esse pano de fundo já tão inquietante e volátil, tivemos que lidar também com as enormes dificuldades e ameaças trazidas pela pandemia da Covid-19 ao longo de mais de dois anos, e que de certa forma seguem pairando sobre nós. Esse cenário complexo vem pressionando executivos e provocando uma incidência preocupante e crescente de casos de adoecimento mental, como ansiedade, depressão e burnout, no ambiente corporativo.

Gera, ao mesmo tempo, um campo fértil para que pensadores sobre liderança e gestão em todo o mundo produzam livros, artigos, cursos e palestras sobre o líder para esses novos tempos. Hoje, ao pesquisar o termo “leadership” na seção de livros da Amazon, lançados na plataforma apenas nos últimos noventa dias, surgem mais de 6.000 resultados. Alguns poucos consistentes e decorrentes de estudos acadêmicos sérios, outros verdadeiras fantasias de quem provavelmente pouco viveu a experiência de liderar um negócio e mobilizar pessoas, e a maioria ricos em rótulos, platitudes e frases de efeito de pouca utilidade prática. A acreditar no que vem sendo difundido atualmente sobre liderança, ficamos todos pressionados a nos transformarmos, rapidamente, em verdadeiras máquinas sobre-humanas, capazes de enxergar melhor um futuro que é cada vez mais incerto, atuar mais e mais em modo multitarefa, desenvolver hiper resiliência, incorporar uma mentalidade digital, fazer brotar uma inteligência algorítmica, virar experts em análise de big data, exercer uma liderança transcendente (seja lá o que isso significa), aprender a ler mentes e almas, e incorporar uma miríade de novos rótulos que definem esse “novo líder”. Tudo isso ante uma ameaça explícita ou subliminar de inapelável fracasso caso não consigamos esse feito. Não é à toa que tanta insônia vem afligindo executivos no mundo todo.

O foco aqui não é criticar quem propõe enxergar as coisas dessa maneira, nem negar que vivemos novos tempos, e muito menos desestimular o leitor a buscar novos conhecimentos. Muito pelo contrário, a complexidade e volatilidade desse novo contexto nos obriga a ter que aprender sempre mais e a estar permanentemente atualizados. É um ambiente mais hostil e demandante do que poucas décadas atrás, que perdoa menos determinados comportamentos e falhas no exercício da liderança. Mas tenho certeza de que não há programas de formação de super-heróis e, portanto, vale a pena focar no que realmente importa, que está ao nosso alcance e é, a meu ver, a essência da liderança.

O ser humano tem características biológicas e capacidade intelectual praticamente inalteradas há milênios. Exceto por incrementos não-biológicos que poderão eventualmente alterar isso nas próximas décadas (como implantes neurais, artefatos internos de conexão com a Internet, novos “wearables” e outros recursos difíceis de vislumbrar que, sim, estão por vir, apesar de toda a discussão moral, social e religiosa que certamente os acompanhará), muitos milênios mais serão necessários para a que evolução natural produza alterações relevantes em nossa capacidade cognitiva, diante dos estímulos que a existência atual nos proporciona. O que fazer a respeito então?

Nossas prioridades de desenvolvimento devem se concentrar, dentro das limitações biológicas e naturais que temos, nas habilidades que favoreçam duas atribuições fundamentais de nossa existência: fazer boas escolhas e torná-las realidade. Vale para os negócios, vale para a vida. Vale para as situações do cotidiano, vale para decisões estratégicas de alto impacto. Quais são essas habilidades? Discernimento, iniciativa e habilidades interpessoais. E ao tê-las bem desenvolvidas e colocadas em prática, de forma natural se instalará uma quarta e fundamental habilidade, muito necessária nos tempos atuais: a capacidade de suportar pressões e de se adaptar melhor a esse ambiente complexo, volátil e de transformação acelerada, ou seja, a resiliência. Exploremos um pouco mais essas habilidades.

Discernimento

Discernimento vai muito além do raciocínio lógico e da capacidade analítica. Não há sinônimo que contemple seu significado pleno. Na realidade, discernimento diz respeito à qualidade de se ter uma visão completa e realista de determinada situação. É capacidade de distinguir o certo e o errado, destreza para entender algo, habilidade para colher e interpretar informações e lucidez para decidir usando o raciocínio. É uma combinação de bom senso, perspicácia, capacidade de compreensão e de apreciação que, associados a conhecimento e informações de qualidade, geram os insights necessários para as boas decisões. Na prática, resulta da combinação de experiência e conhecimento, capacidade intelectual e inteligência emocional. Como potencializar o discernimento então?

Experiência e conhecimento são adquiridos ao longo do tempo, não há mistério nisso. É importante saber escolher o que buscar, ser seletivo, ter fontes confiáveis tanto de conhecimento como de informações, e fazê-lo com consistência e constância. É combustível essencial, porém não suficiente, para se tomar boas decisões.

A capacidade intelectual é a característica menos flexível que temos. O já antigo quociente de inteligência, ou QI, que mesmo sendo por alguns criticado é até hoje a medida mais usada para se avaliar as habilidades lógicas de um indivíduo, é resultante de características genéticas e hereditárias. Há recursos para treinar essas habilidades ou mesmo para mantê-las “afiadas”, mas elas são razoavelmente inelásticas. Felizmente há estudos que mostram que, desde que estejamos em um patamar normal nesse quesito, ele está longe de ser o mais determinante para um líder ser bem-sucedido.

Com a inteligência emocional a situação é outra. Diversos estudos mostram que, dentre as três características que interferem na capacidade de discernimento, ela é a mais determinante para o sucesso de líderes. Inteligência emocional, na prática, é a combinação de autoconhecimento, autogestão, consciência social e habilidades sociais. Como a inteligência emocional favorece o discernimento? Autoconhecimento, autogestão e consciência social bem desenvolvidos permitem que autoconfiança, autoconsciência (ou seja, conhecimento das próprias forças e limitações de momento), serenidade, sangue-frio e compreensão de nossas responsabilidades assegurem um uso adequado e pleno do raciocínio, ao se lidar com diferentes contextos, inclusive os mais tensos, evitando que caiamos em armadilhas decisórias.

Portanto, para aprimorar o discernimento as frentes importantes são a busca por conhecimento acadêmico, informações precisas sobre o negócio e seu setor de atuação, tendências e atualidades, e o desenvolvimento contínuo das características de personalidade, ou seja, da inteligência emocional.

Iniciativa

Iniciativa é uma das poucas características comuns a todos os líderes bem-sucedidos, independentemente de seu estilo. É a capacidade de tomar as rédeas das situações e saber agir e reagir a elas, seja quando na zona de conforto, seja fora dela. Mas é importante não confundir iniciativa com precipitação. Há uma relação direta entre a capacidade de ter iniciativa e os diferentes estilos de personalidade. Existem pessoas mais voltadas à ação, outras mais reflexivas, algumas reagem rapidamente, outras preferem recorrer à razão e ir com calma. Ter iniciativa e saber como dosá-la é uma questão de treino, é uma habilidade que pode e deve ser desenvolvida, independentemente da personalidade. É por essa razão que, também nesse quesito, a inteligência emocional é fundamental.

Autoconhecimento, autogestão e consciência social norteiam nossa capacidade de agir da forma correta. Conhecer a própria personalidade, reconhecer nossas forças e limitações de momento, e ter a consciência de nossa responsabilidade no contexto vivido, nos ajudam a regular nossas ações. Estilos mais afoitos podem ser treinados a dosar forças para evitar a precipitação, estilos mais conservadores e voltados à razão podem ser estimulados a agir, mesmo ante uma tendência natural de dar tempo ao tempo. Disciplina, atenção e treino são a chave para isso, e o passo inicial, mais uma vez, é o autoconhecimento.

 Habilidades interpessoais

Discernimento e iniciativa, como vimos, são habilidades que nos asseguram uma boa capacidade de condução de nós mesmos. Mas para liderar pessoas é imprescindível desenvolver as habilidades sociais ou interpessoais, o quarto pilar da inteligência emocional, que envolve exercer influência positiva, criar vínculos, ter boa gestão de conflitos, desenvolver pessoas, cooperar e trabalhar em equipe. Também nessa frente há estilos de personalidade que favorecem mais essas características, outros nem tanto. Alguns estilos são mais voltados ao social e coletivo, outros são introspectivos e individualistas, mas, assim como qualquer outro aspecto da inteligência emocional, as habilidades sociais podem ser desenvolvidas a qualquer tempo, independentemente da personalidade de cada um. Para isso, a frente prioritária a ser trabalhada é a comunicação.  

A principal característica da boa comunicação é a assertividade. E aqui não posso deixar de manifestar meu inconformismo com a distorção que o “corporativês” vem por vezes trazendo ao significado dessa palavra, porque com frequência, em diálogos com executivos de todos os níveis hierárquicos, ouvimos o português ser agredido por expressões como “previsões assertivas”, “contratações assertivas”, e assim por diante, quando na realidade ela nada tem a ver com “acerto”, e sim com “asserção”, ou seja, “afirmação”. Creio que a melhor definição de assertividade seja “a capacidade de nos comunicarmos respeitando a nós mesmos e nos fazendo respeitar, sem desrespeitar os outros”. Mas para os que preferem uma definição mais cartesiana, ela pode ser entendida também como “o ponto ótimo entre a passividade e a agressão”.

Outro atributo essencial para a boa comunicação acontece no sentido inverso, que é o saber ouvir. A escuta atenta é a base para o desenvolvimento da empatia, ou seja, da capacidade de compreender o outro e se colocar no lugar dele. Líderes habilidosos se destacam por essa característica, e dependendo do estilo de personalidade ela pode ocorrer com maior ou menor naturalidade, por isso é importante que seja foco de atenção e de desenvolvimento. 

A comunicação, incluindo a arte de ouvir, acontece por meio da combinação de fala, escrita e linguagem corporal. Muitos não se dão conta da importância relativa desses três componentes. Deles, o mais importante é a linguagem corporal (incluindo a expressão facial), que segundo alguns estudos responde por mais de 50% da mensagem transmitida, seguida pela fala, e só depois vem a escrita. Por exemplo, a linguagem corporal tem grande impacto em como nosso interlocutor percebe também a qualidade de nossa escuta, mesmo que estejamos em total silêncio. Portanto, conversas difíceis, feedbacks, discussões estratégicas e quaisquer outras interações com a equipe que tenham potencial grande de causar impacto nas atividades ou nas relações interpessoais devem, idealmente, ser feitas presencialmente ou, no mínimo, em vídeo com uma boa conexão.

Assim como tudo o que envolve habilidades comportamentais, desenvolver a boa comunicação requer disciplina, treino e repetição. Mas uma excelente ferramenta para adotar como parâmetro e obter avanços rapidamente é o esquema dos quatro quadrantes da comunicação. O conceito é muito simples, mas poderoso: observe que toda comunicação ocorre sempre em dois eixos: o da mentira–verdade, e o da raiva–amor. Quando você adota o quadrante da mentira com raiva, o que está provocando na relação? Destruição. E verdade com raiva? Agressão. A mentira com amor? Ilusão. Mas quando a comunicação acontece no quadrante da verdade com amor ocorre crescimento, aprimoramento da relação. Portanto, a melhor maneira de se alcançar a assertividade é nunca deixar de dizer o que queremos ou precisamos dizer (respeitando a nós mesmos), mas fazendo-o com base na nossa verdade (nos fazendo respeitar) e de maneira educada e empática (respeitando o outro).  

 Em síntese

Meu objetivo neste artigo é incentivar o leitor a focar no que realmente são os alicerces da boa liderança. É importante trabalhar prioritariamente as habilidades que de fato representam a essência de liderar, que são discernimento, iniciativa e habilidades interpessoais. São essas habilidades que dão a sustentação para a palavra que realmente importa, que é “líder”. A prioridade deve ser essa, antes de buscar os rótulos acessórios que possam acompanhá-la, que algumas vezes parecem remeter a personagens da Marvel ou DC Comics. Bons líderes tomam boas decisões e as colocam em prática tendo a flexibilidade de adotar diferentes estilos de liderança, apropriados ao que exige o contexto vivido.

Não se formam super-heróis, eles não servem para liderar.

Thomas Karsch

Lifelong Learner - Empreendedor, executivo, marketing, comunicação

2 a

Excelente artigo Marcos! Vou compartilhar!

Paulo Oliveira

Marketing and Strategy Leader

2 a

Excelente artigo, Marcos, parabens! Gostei muito do quadrante da comunicação, nao havia consuderado esse ângulo. Merece um visual.

Victor Sichero

CFO, Board Member and Investor

2 a

Otimo Marcos

Fabio Amorim

Executivo C-Level, Consultor, Árbitro, Conselheiro , acadêmico, autor de livros e artigos, e Presidente da Comissão de Direito de Energia Elétrica da OAB/RJ desde 2010.

2 a

Marcos Braga , parabéns. Texto abrangente, claro e voltado para GENTE.

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