Nascer pronto
O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Por trás dessa aparente obviedade está um dos mais importantes alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que o ser humano se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.
A advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento. A satisfação acalma, limita, amortece.
“Nascer sabendo” é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais nasce pronto, mais refém alguém se torna do que já sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.
Um bom livro não é aquele que, quando encerramos sua leitura, deixamos um pouco apoiado no colo, absortos e distantes, pensando que não queríamos que terminasse? Uma boa festa, um bom jogo, um bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos que se prolongue?
Com a vida de cada um e de cada uma também tem de ser assim; afinal de contas, não nascemos prontos e acabados. Ainda bem, pois estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e constrangido ao possível da condição do momento.
Diante dessa realidade, deve-se questionar a ideia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém quanto mais vivesse mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando...
Isso não ocorre com gente, e, sim, com fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não pronta, e vai se fazendo. Eu, no ano em que estamos, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um pouco ampliada.); o mais velho de mim (se é o tempo a medida.) está no meu passado, e não no presente.
Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro”...
Fonte: Mario Sérgio Cortella. Não nascemos prontos! Provocações filosóficas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p. 11-13 (com adaptações).
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4 aLindo e relevante texto. Inspirador!