Nossa consciência é negra?, por Dalila Musa

Nossa consciência é negra?, por Dalila Musa

Fiquei por muito tempo pensando a melhor forma de começar essa newsletter. Embora eu seja uma mulher negra e pesquise questões raciais, falar sobre consciência negra ainda não é fácil para mim. “Tornar-se negra”, como diz Maria Aparecida Bento, não é um processo confortável. Foi difícil me dar conta que meus bisavós foram os primeiros a nascerem livres, que meu avô é a primeira pessoa da família a saber ler e escrever, que minha mãe é a primeira a chegar à universidade e que eu sou a primeira a acessar a pós-graduação. Foi doloroso procurar informações sobre meus tataravós e não conseguir encontrar nenhum registro, só ter a certeza que eles foram escravizados. Na memória, só os nomes Lourencinho e Madalena que eu ouvi em histórias do meu falecido avô, quando era muito criança.

A minha consciência negra se construiu na violência da falta. Falta de amigos, de namorados, de oportunidades, de identidade, de histórias, de referências. E acho que é sobre isso que devemos pensar no dia de hoje, sobre a nossa falta de consciência negra. Sobre como ainda nos falta repertório para construir um país mais justo e seguro para pessoas negras. Ainda não tomamos consciência de como a raça foi usada como um dispositivo de segregação e morte no Brasil. Não somos apresentados a histórias de pessoas negras com recorrência e buscamos nos aprofundar na cultura, religiosidade e herança afro-brasileira. Nossa consciência negra ainda não despertou.

Por que ainda achamos normal que pessoas negras morem, frequentem e convivam apenas em determinados espaços, que geralmente são marginalizados? Por que ainda não conhecemos histórias como as de Enedina Alves Marques, João Cândido, Auta de Souza, Tia Vista? Porque insistimos em desconhecer um passado que não é só negro, mas brasileiro?

Talvez, esse despertar ainda não tenha acontecido exatamente por ser doloroso e violento.  Não é fácil admitir que a imagem de pessoas negras felizes e bem sucedidas nos choque mais do que a morte de negros, ou que no nosso ciclo de amigos e trabalho não tenha pessoas negras ou que, em nosso cotidiano, elas só apareçam em posições de subserviência como o porteiro, a empregada, a balconista. 

Pode ter sido desconfortável para você se dar conta de que eu sou a 4ª geração livre da minha família e que você, pessoa branca, nunca pensou sobre isso. É chato, eu sei! Mas construir uma consciência negra é isso! Despertar para os sinais que a sociedade nos dá diariamente e que ignoramos por anos. Passar a se incomodar com as faltas de pessoas negras e a pensar estratégias para não reproduzir mais esse padrão. 

Desenvolver uma consciência negra é um processo que exige tempo, empenho e dedicação. Só o dia de hoje não será suficiente! É preciso constância, mas podemos usar a data de hoje para começar. Por isso, deixo alguma dicas simples para iniciar esse processo de despertar:

  1. Faça o “teste do pescoço”. Conte quantas pessoas negras estão no mesmo ambiente que você e que não estejam em posição de subserviência.
  2. Procure histórias de pessoas negras para além da escravidão. Os podcasts “Vidas Negras” e “Projeto Querino” são ótimas formas de começar.
  3. Busque na memória situações em que você foi racista e escreva sobre elas, assim você pode analisar e entender melhor o que te levou a praticar tais ações.
  4. Leia escritores negros como Conceição Evaristo, Ana Maria Golçalves, Lélia Gonzales, Achille Mbembe, Solano Trindade.
  5. Não deixe que o medo ou o desconhecimento impeçam você de continuar tentando.
  6. Escute as experiências de pessoas negras e aprenda com elas!

Quando nossa consciência negra verdadeiramente se estabelecer, entenderemos que o combate ao racismo faz parte da estrutura da sociedade democrática, segura, próspera e justa que queremos construir e não podemos esquecer que as organizações também precisam despertar para o fato de que o combate ao racismo exige estratégia e continuidade. Precisamos revisitar o passado por meio de outras perspectivas, para termos a capacidade de enxergar, trabalhar e solucionar nossos problemas no presente, criando outras possibilidades de futuro. Não será fácil, nem simples! Estamos realmente dispostos?

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