Nossas interfaces digitais e as cavernas de Lascaux possuem muito em comum
É um tópico sempre recorrente: A questão sobre o que vem a ser, afinal, uma "imagem". O fato antropológico - agora bastante reconhecido - de que uma imagem é uma metáfora cultural, está bastante claro. Essa clareza deriva principalmente da mudança do conceito de “significado” impulsionada pelos pensamentos Hegelianos-marxianos, tornando-o algo mais “histórico” e “terreno” (em vez de metafísico), de modo que o que chamamos de “imagem” se torne algo que pertence definitivamente ao tempo e ao espaço, em outras palavras, que seja histórica e contextualmente determinado. Essa perspectiva é inescapável - e poderíamos até dizer, inegável - dentro dos termos científicos atuais; o que resta do outro lado é simples metafísica. Ainda assim, é muito importante lembrar que esta mesma corrente materialista já desaguou em algumas afluentes estritamente positivistas; vale citar o relativismo cultural de Franz Boas, que tão logo se aflorou pelos trabalhos de Sapir ou Mead.
É fundamental mantermos estes afluentes e mente, de forma que possamos evitar cairmos nos mesmos erros conceituais. O relativismo hardcore Boasiano com certeza tem seus méritos: Cessou com a longa e persistente crença em uma natureza humana para a leitura das coisas do mundo, uma crença que aparece nitidamente desde os trabalhos de Agostinho, que focavam em definir métodos de interpretação da realidade através de um conjunto estrito de regras, o que em última análise consiste em uma “hermenêutica da realidade” divinamente inspirada. Foucault exemplifica bem essa influência do pensamento medieval quando organiza a lista de “formas possíveis de relações na natureza”, em seu livro “L'Ordre du Discours”, usada para se compreender os signos velados no mundo. Tudo no mundo está disposto em relações determinadas por uma lista, e cada forma infere um valor para a relação de troca:
“Amicitia, Aequalitas (contractus, consensus, matriomonium, societas, pax et similia), Consonanti, Concertus, Continuum, Partias, Proportio, Smilitudo, Conjunctio, Copula”
Podemos encontrar estes manuais de relações do mundo tão cedo quanto o trabalho de Doctrina Christiana (Quatro volumes escritos entre 379 e 426 dC) onde Agostinho, por meio da estilística retórica que herdou da própria Rhetorica de Cícero, apresenta um livreto prático com metodologias para compreensão de ciências como Gramática, Geografia, Tecnologia, Estudos Pagãos, Lógica e Cronologia, como formas de iluminação por meio de escritos divinos.
Mas de volta à questão Boasiana, ela não provém respostas convincentes à complexidade da influência da cultura na capacidade de leitura da realidade pelos indivíduos, uma vez que não reconhece o ato de interpretação como um ato projetivo e ativo, em detrimento a um processo meramente receptivo. Neste aspecto, Boas é conhecido por ter sido um Lamarckiano, e transfigurarmos os fins mecânicos da biologia lamarckiana para as relações mecânicas da sociologia de Boas, não é algo muito complicado. A forma segue uma função, para Lamarck, o que vale como dizer que a anatomia não seja criativa, de forma que a função sempre precederá a forma, e que a última acaba por servir a um propósito meramente mecânico.
Transportando a questão para uma crítica semiosférica Lotmaniana, poderíamos dizer que a via Boasiana tomaria as imagens como algo naturalmente dado, objetivo e que precede a consciência. Desta forma, esta (desistorizada) consciência poderia estar apenas em relações binárias, positiva ou negativa em relação às imagens dadas, certa ou errada. Adentrando o terreno semiológico, encontramos de Saussure também partilhando das aventuras Boasianas, onde assume um aspecto histórico à linguagem (seu diacronismo) enquanto contraditoriamente propõe que estruturas linguísticas precedem o ato da fala (langue versus parole).
Reitero, o fenômeno cultural da “imagem” não precede o fenômeno biológico da consciência.
Mas se todos concordarmos que o fenômeno das “imagens” não pode ser compreendido fora de ambos recortes, cultural (semiosférico e social-psicológico) e cognitivo (subjetivo, biológico), nós chegamos ao ponto comum em que concordamos que os efeitos ao redor do significado/interpretação devam ser fenômenos linguísticos contextuais e históricos, não limitados (mas definitivamente influenciados) pela cultura. Mas se chegamos até aqui, somos interpelados pela questão:
Quando foi que a imagem - sendo o fenômeno de imagem que conhecemos hoje em dia - deixou de ser uma representação livre do imaginário, profundamente desconectada das contingências da lógica física, e tomou o prumo das “metáforas práticas” que conhecemos? Talvez ainda melhor: Metáforas com fins práticos e positivos (tecnicistas)?
Frente a isso, devemos ainda questionar: afinal, foram as imagens humanas em algum momento desconectadas da função de metáforas práticas?
No ápice da questão, caímos em um jogo de acusação, já que aspectos cruciais de praticidade das imagens serão encontrados em toda manifestação imagética desde o berço da humanidade. Retornando ao caso de Lascaux, devemos reconhecer os tão debatidos objetivos das figuras animais ilustradas nas cavernas. Em partes, o trabalho se torna o primeiro catálogo do mundo (primeiro esforço enciclopédico?) ao mesmo tempo que - e isso nunca saberemos mas somos livres para especular - a ilustração metafórica de relações cósmicas mais complexas. Estamos frente a aspectos muito importantes aqui, apontando à tese das metáforas práticas, principalmente se levarmos a cabo o fato de que estas figuras são extraordinariamente respeitosas à anatomia dos animais ilustrados.
Ainda, é claro, encontramos uma considerável quantidade de ilustrações metafóricas simbólicas (convencionalizadas), como o famoso enquadramento do homem com cabeça de pássaro, desproporcionalmente posicionado ao lado de um bisão deveras mais realístico, que levanta questões relacionadas à auto-imagem versus a ‘imagem do mundo lá fora’(subjetivo/objetivo), que novamente, permeia a imagem com uma metáfora mais alegórica do que prática.
Parece haver um caminho de orientação para estas questões, e poderemos encontrar em Vilém Flusser. Com relação ao caso específico de Lascaux, Flusser parece não ter despendido muito tempo sobre a questão da estética, conformação, ou qualquer análise intrínseca das relações icônicas (semelhança) ou simbólicas (convencionalidade), mas de fato, brilhantemente enxergando nestas imagens nada além de signos indiciais (causais) de uma ação cultural, e ainda, o ato da pintura, ele próprio, devendo ser considerado como o aspecto mais importante da função de significação da imagem. Isso porque entender a “imagem como processo” é um aspecto central para a filosofia Flusseriana da imagem, e isso fica perfeitamente sintetizado na passagem a seguir:
Eles buscavam símbolos, e a atividade era sobre símbolos, sobre um gesto no qual as mãos se afastavam do objeto para abordar as profundezas do sujeito em quem, tão estimulado, um novo nível de consciência estava surgindo: O "imaginativo". E dessa consciência imaginativa surgiu o universo de imagens tradicionais, de conteúdo simbólico, o universo que passaria a servir de modelo para manipular o meio-ambiente. (FLUSSER, 2011, p.12)
O que aprendemos disso é que, nem pela interpretação controladora Boasiana, nem pela leitura linguística intrinsecamente alegórica, podem prover uma compreensão transparente do fenômeno da imagem. Talvez devamos a Flusser a compreensão da imagem como resultado, como uma confluência congruente de ação e pensamento, à qual as imagens deveriam ser compreendidas como resíduos em termos antropológicos. Como pode ser que a vasta maioria das imagens que nos cercam servem ao propósito único de mediação de esquemas lógicos, em outras palavras, imagens-ferramentas, tornadas instrumentos de demonstração técnica? Estamos vivendo no império da denotação pura?
Bem, provavelmente não. Imagens técnicas, ou “metáforas práticas”, estão tão distantes de denotações puras quanto elas poderiam estar.
Os fins práticos das imagens contemporâneas pode ser vistas em virtualmente tudo; de vídeos do youtube, a anúncios publicitários, filmes, mas além, sistemas operacionais, navegadores de internet, chats, aplicações de smartphones e por aí vai. Todas aderem a um único cerne: tentativas de denotar função por meio de forma. Estas interfaces são - como o título informa - inter-faces, ou seja, superfícies intermediárias que agem como tradutores de dois ou mais sistemas de codificação culturais.
Encontramos os sistemas de linguagens culturais e suas complexidades de ordem política, psicológica e econômica, de um lado da interface, e do outro lado deste fino filme da interface da imagem técnica, as linguagens-sistemas da ordem matemática, booleana (combinatória) e algorítmica. A interface atua como um inter-médio permeado pelo continuum entre linguagem cultural e linguagem técnica, de forma que, quanto mais próximo se está da extremidade humana desta divisão, mais constantemente se encontrarão imagens suprindo a função simbólica e icônica, no sentido de representarem elementos puramente culturais das ações (verbos) que eles representam. Na outra via, quanto mais aprofundado no lado técnico, menor a aderência se encontrará entre os signos e as conotações culturais.
Para darmos um exemplo prático, em sistemas operacionais, o verbo “salvar” é relacionado com o ícone do Disquete (ainda que as novas gerações pós-millenials não o possam ver como um ícone, considerando que eles não conhecem o objeto ao qual este pictograma se relaciona por semelhança) enquanto é, ao mesmo tempo, um símbolo de “salvar”. Este exemplo particular demonstra perfeitamente que a imagem aqui (ícone de disquete, símbolo de salvar) não age como provedor do seu conceito simbólico sem o encargo de recorrer a um elemento cultural físico historicamente limitado - neste caso, um elemento tecnológico superado, um produto comercial defasado. Pode-se dizer que isso ocorre de forma semelhante ao fenômeno de Lascaux, onde a representação da realidade prática da anatomia daqueles animais muito provavelmente não era nula de significação, muito pelo contrário, e desta forma, não se tratavam de denotações vazias, mas se valiam de representações icônicas (semelhança por forma) para conotar (em metáfora) algo a mais.
Os desenhos das cavernas de Lascaux, são ícones ou símbolos, afinal?
O problema do subjetivismo aqui poderia ser facilmente imaginado se utilizássemos um experimento lógico: Imagine a civilização do ano três mil, olhando os ícones de sistemas operacionais que utilizamos atualmente (da forma como olhamos aos ícones do povo de Lascaux). Sem acesso aos códigos que estruturam estes textos culturais, eles jamais conseguiriam relacionar a demonstração de um elemento mundano, um produto de uso comercial, chamado “disquete”, ao fato de que ele seja a solução do sentimento de “manter”, o medo da perda, a urgência para colecionar ou “salvar” algo que produzimos, um sentimento afinal tão específico para nossa espécie em nosso tempo. Talvez possamos concluir, que as imagens que nos cercam, ainda que tecnicamente orientadas, não podem jamais serem tomadas como garantia de puras denotações, porquanto cumprem com uma função muito mais profunda: corresponder a uma apropriação simbólica subjetiva da realidade onde a própria apropriação é cultural, e portanto sua superfície estética (aesthesis) sozinha jamais poderia ser suficiente.
Há muito mais em comum entre as telas LED que nos cercam e as imagens das cavernas de Lascaux do que nós usualmente consideramos.
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FLUSSER, Into The Universe Of Technical Images, 2011.