Novela Dr. Cid - capitulo 2 - A pertubação
Capítulo segundo
A perturbação
Final de expediente. Cid ocupou o seu dia com atividades pouco complexas. Organizou arquivos de antigos processos e resolveu desmarcar tudo que não fosse urgente. O dia anterior, feriado de Tiradentes, fora bem agitado. Teve passeio ciclístico com Carol, sua sobrinha filha de Dalva, visitou suas irmãs, foi ao teatro com Flora à tarde onde enfrentaram uma peça forte, e por fim, uma noite de inquietações e insônia.
Ao chegar a casa foi recebido por Flora toda sorridente, de maneira especial. Pedagoga, ela atua em uma escola local e mantém vínculo de pesquisas com entidades educacionais. É voluntária em vários projetos sociais. Gosta de ler, posiciona-se firmemente nas questões politicas. Com sua aparente fragilidade encara serenamente discussões acirradas.
Enquanto Cid parecia extenuado com as atividades do feriado, para Flora, o descanso foi revigorante. Ela praticou atividades físicas, se embelezou, saiu com as amigas, foi ao teatro com Cid e abraçou e riu muito com a sobrinha Carol. Ela estava dinâmica como nunca. Após o jantar, perguntou a Cid se poderia acontecer uma reunião de amigas em casa no próximo sábado. Um desses chás de enxoval. Cid aceitou de pronto. Ficarei no sótão, pensou.
Flora continuou carinhosa e solícita. Naquela noite, a despeito do cansaço de Cid, fizeram amor na sala. Mas o assunto da reunião com as amigas logo voltou à tona. Flora disse que não se lembrava da presença masculina nessas ocasiões, e confessava que não conhecer bem algumas das pessoas que estariam lá. Em seguida aproveitou para perguntar se ele não poderia aproveitar a tarde para ir ao cinema ou procurar um clube de xadrez, conforme havia comentado outro dia, já que seus amigos não eram praticantes.
Dia seguinte, uma sexta, lá pelo meio da tarde, Cid finalizou sua última reunião, fechando um bom acordo, melhor do que as expectativas.
Após as despedidas, sua secretária veio informar sobre uma pessoa um tanto estranha que o aguardava há algum tempo para uma breve consulta, dizendo querer relatar um caso importante.
Cid olha pelas frestas e vislumbra pelas costas um indivíduo grisalho.
- Fiquei curioso com essa história, diga a ele que temos dez minutos.
O sujeito entra, coloca um cartão de visitas sobre a mesa e diz “boa tarde”
Cid ao computador move o olhar e acena para que se sente. Termina o que estava digitando toma o cartãozinho e lê com expressão de esquisitice:
“Sofá – Projetos Cibernéticos - Gilberto Cunha - Diretor”.
- Pois não, Sr. Gilberto, em que posso ajudá-lo?
Gilberto desloca a cadeira a seu lado como se fosse sentar, mas permanece em pé. Sua roupa, se não estivesse tão amarrotada, poderia passar por elegante até. Os cabelos despenteados, a gravata como um cipó, a camisa um pouco maior e a calça um tanto menor do que deveriam. Ele parecia ansioso, irrequieto e tinha trejeitos particulares. Porém ao falar, o fez com segurança:
- Dr. Cid, analisei o trabalho de diversos advogados da cidade e o considerei o mais indicado para a preparação de uma ação efetiva contra o maior crime econômico desse século. Devo dizer que essa é a minha missão mais importante.
Um esboço de sorriso surgiu e reprimiu-se no canto da boca do Dr. Cid. O aloprado disse:
- Necessito de seus conhecimentos para a tipificação jurídica do maior assalto que se tem notícia ao patrimônio público de um País.
Dr. Cid frustrou-se com a aparente falta de seriedade do interlocutor. Então reparou que Gilberto parecia estar se sentindo mal. Talvez uma queda de pressão. Ele foi ficando pálido, apoiou-se com as mãos no encosto da cadeira, no entanto continuava a falar:
- Trata-se de um crime de tráfico de influência. Sou uma das vítimas, assim como o senhor e milhões de outras pessoas também.
- Meu senhor, receio que esteja falando com a pessoa errada e na ocasião errada. Você me parece uma boa pessoa, um tanto transtornada…
Nesse momento Gilberto despenca desmaiado. Cid e sua secretária acodem o homem semiconsciente e rapidamente o sentam. Ainda voltando a si, desculpa-se e diz que está perfeitamente bem e que se esqueceu de almoçar.
Permanece mais alguns segundos com a cabeça abaixada e se levanta lentamente até o ponto em que estava pronto a seguir falando, ainda pálido, mas Cid se antepõe:
- O senhor precisa de ajuda, essa é a minha opinião. De onde vem? Mora com a família? O senhor tem alguma doença que o induz a esses desmaios?
- Moro com parentes e não tenho doenças que induzam a desmaios. Além disso, o senhor poderia me ajudar realmente não me tratando como um débil.
E o tresloucado se pôs a falar:
- Voltando ao assunto, a nossa remuneração dos títulos públicos é um verdadeiro assalto, uma patifaria. Isso é universal, acontece no mundo todo, mas aqui é um fenômeno único, desproporcional, a expressão da nossa colonização econômica! Temos que desmascarar esses interesses nefastos!
O impulso de Cid era de não permitir a Gilberto mais uma só palavra. No entanto, percebeu que o estranho se acalmava ao falar. Passado o susto, sua paciência acaba e então resolve colocar um ponto final naquela situação esdrúxula:
- Senhor Gilberto, (segurando o cartão de visitas), me desculpe.
Não posso mais ouvi-lo agora. Tenho que voltar ao meu trabalho.
- Dr. Cid, me ouça. Estou interessado em seu aconselhamento jurídico e...
Cid interrompeu o sujeito:
- Se quiser podemos ligar para a sua família e pedir para que venham buscá-lo.
Ao que Gilberto responde resoluto:
- Dr. Cid, essa é justamente a parte da sua solidariedade que eu não necessito.
Cid se irrita. Aquele energúmeno nem mesmo reconhecia a própria insanidade e era hostil à ajuda oferecida.
- Boa sorte, desejou Cid apontando a porta.
- Dr. Cid, não acho certo que me dispense dessa forma sem me ouvir.
- O Senhor está certo no que tange ao meu erro, que na verdade foi recebê-lo.
- Se a gente conseguir tipificar o crime, as consequências seriam estarrecedoras.
- O senhor deveria fazer literatura. Passar bem.
- Por favor, me chame de Gilberto. E eu faço literatura!
Dr. Cid vai encurralando Gilberto em direção à saída, que levanta os braços e aponta o cartão deixado sobre a mesa dizendo:
- Minha última tentativa com o senhor: no verso do meu cartão que está sobre a sua mesa, anotei o endereço de um clube de xadrez. Gostaria de lhe mostrar o local. Aguardo a sua presença no sábado para que possamos conversar. Lembre-se que também é do seu interesse.
E sai apressado, aos tropeços. Cid ficou boquiaberto. Fecha a porta lentamente gracejando: “Só me faltava essa, um lunático. Podia ser um assassino, um psicopata, foi uma estupidez atende-lo”. E fez sinal para a sua secretária fechar o escritório.
Ao final do dia, sentia-se novamente inquieto. A imagem daquele indivíduo pedante teimava em voltar como uma música chata. Aqueles olhos penetrantes a observar você por dentro. Cid mal ouviu o que ele disse, quase desatento, mas agora, as suas palavras voltavam aos poucos, uma a uma. E quanto ao xadrez! Era como se ele soubesse dos seus planos de amanhã. Havia também o desmaio, que colocou Cid em uma situação inusitada. Talvez tenha sido isso que tenha marcado a sua memoria daqueles momentos.
Tudo bem, simples coincidências. Sob outra perspectiva tudo poderia parecer muito lógico. Um louco que joga xadrez e quer mover uma ação contra poderosas instituições com base em uma teoria conspiratória.
Poderia ser um psicótico transtornado, um criminoso. Mas também há de se considerar que ele deixou o seu cartão. Isso não quer dizer nada. Aquela pessoa seguramente deveria ser um lunático, um transtornado.
Sem saber o porquê, Cid procurou e leu algumas anotações em seus diários da época de estudante. Os detalhes agora não vêm ao caso, mas sentiu nas passagens relidas saudades do arrojo daqueles tempos. Foi a disciplina inerente do esforço da abstração intelectual, página a página, que moldou a sua transição de jovem romântico para adulto maduro, que como qualquer um carrega suas próprias cicatrizes e frustrações incompreendidas.
Aquele ser enigmático que esteve hoje no escritório quem sabe tenha transferido um pouco da sua confusão. Talvez o seu jeito inusitado tenha desencadeado em Cid um processo que estava latente. Fosse como fosse, não poderia negar que afinal era muito prático um clube de xadrez vir até ele, inclusive no horário predeterminado. Seria interessante ver que tipo de reação poderia suscitar ao seu tempo presente a volta a esse ambiente, onde já viveu em tempos tão intensos.
Agora, mais maduro, poderia até perder alguns jogos com serenidade, consciente de não ter exercido os estudos necessários para se conseguir as vitórias. Mas há que se cuidar, pois além de problemáticos, os enxadristas são muito sagazes em geral.