O ALCANCE DA TUTELA DA SAÚDE, CONFORME LGPD, E OS ATOS DE PROMOÇÃO À SAÚDE

Já tivemos a oportunidade de explanar a respeito do entendimento de que, para fins de efetivação de tratamentos de dados pessoais em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº. 14.079, de 14 de agosto de 2018), o consentimento deve ser aplicado de forma residual em relação às demais hipóteses previstas nos artigos 7º e 11 da referida lei (confira aqui), preferindo-se às hipóteses que dispensam o consentimento a este, para fins de maior segurança e controle das operações realizadas.

Em relação aos serviços de saúde, área em que este articulista atua, verifica-se que há previsões específicas no inciso VIII do art. 7º, e na alínea “f”, do inciso II, do art. 11, ambos da LGPD, pois é possível o tratamento de dados pessoais, sem a necessidade de consentimento, para fins de “tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária”. Ocorre que, diante de tais previsões, se faz necessário refletir a respeito do alcance do sentido de “tutela da saúde” para a LGPD, sobretudo na atuação de fornecedores em que os serviços de saúde são os mais diversos, como no caso das operadoras de planos privados de assistência à saúde.

A questão veio à tona quando se passou a questionar se atos relacionados à promoção à saúde, como gerenciamento de determinada carteira de beneficiários de planos de saúde para tomada de decisão acerca de quais atos e implementações devem ser feitas, podem ser enquadrados em procedimento da tutela da saúde a tornar lícito o tratamento de dados pessoais sensíveis de saúde sem necessidade de consentimento, nos termos, especificamente, do art. 11, inciso II, alínea “f”, da LGPD.

A resposta, a nosso ver, é negativa diante da leitura do texto expresso da referida alínea “f”, pela qual o tratamento de dados pessoais sensíveis é considerado regular no caso de “tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais da saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária” (grifo nosso). Assim, entendemos que pelo termo “em procedimento” se está diante de ato isolado ou conjunto de atos isolados, como no caso de consulta médica, atendimento de urgência ou emergência, realização de exame ou de cirurgia, dentre outros. Logo, o gerenciamento da carteira de beneficiários, por exemplo, com levantamentos de comportamentos e perfis dos usuários do plano, mesmo que tenham a finalidade final de tomada de decisões para atos de promoção à saúde, não estaria abrangido no sentido da previsão legal que ora foi analisada, sendo que promoção à saúde é entendida, nos termos do art. 2º, inciso I, da Resolução Normativa nº. 264, de 19 de agosto de 2011 (RN nº. 264/2011), da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), como:

[…] processo político que articula ações sanitárias, sociais, ambientais e econômicas voltadas para a redução das situações de vulnerabilidade e dos riscos à saúde da população; capacitação dos indivíduos e comunidades para modificarem os determinantes de saúde em benefício da própria qualidade de vida; e participação social na gestão das políticas de saúde. A prevenção de riscos e doenças orienta-se por ações de detecção, controle e enfraquecimento dos fatores de risco ou fatores causais de grupos de enfermidades ou de enfermidade específica. Dessa forma, esse amplo conceito fundamenta-se nos princípios de intersetorialidade, integralidade, mobilização e controle social, informação, sustentabilidade, entre outros; […]

Até pode se encontrar entendimento em sentido contrário, como no caso do autor Caio Cesar Carvalho Lima (in LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais comentada, coord. MALDONADO, Viviane N., OPICE BLUM, Renato. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 197), que assim afirma:

[…] os serviços de saúde, isto é, os ‘estabelecimentos destinados a promover a saúde do indivíduo, protegê-lo de doenças e agravos, prevenir e limitar os danos a ele causados e reabilitá-lo quando sua capacidade física, psíquica ou social for afetada’ também poderão se utilizar dessa base legal para sustentar suas atividades. (grifo nosso)

Mas ainda assim mantemos a interpretação mais restritiva da base legal (art. 11, inciso II, alínea “f”, da LGPD), até mesmo pelo fato de estar ligada a tratamento de dados pessoais sensíveis, os quais merecem ainda maior proteção, e por isso mesmo interpretação restritiva. E por tal interpretação restritiva o alcance do termo “procedimentos de tutela da saúde” estaria ligado somente a procedimentos propriamente ditos, caracterizados por ato ou conjunto de atos isolados para tutela da saúde, e não procedimentos políticos de articulação para ações sanitárias, sociais, ambientais e econômicas ligadas à redução de vulnerabilidades dos envolvidos, o que é muito mais amplo, e por isso se denominam programas.

Disso poderá surgir a dúvida: se a promoção à saúde não pode ser considerada “procedimento de tutela da saúde”, o consentimento será a solução para que prestadores de erviços de saúde, em específico operadoras de planos de saúde, possam realizar tratamentos de dados pessoais sensíveis para tal finalidade? Nossa resposta para tal questionamento também é negativa.

Isso porque, conforme se verifica do teor da referida RN nº. 264/2011, da ANS, a promoção à saúde é incentivada pela agência reguladora por meio de tal ato normativo, que apresenta modalidades de programas (art. 3º da resolução) e lista de incentivos à operadora de planos de saúde que realizar programas de promoção à saúde, consoante disposto no art. 5º. Assim sendo, os programas de promoção à saúde e os tratamentos de dados pessoais, inclusive sensíveis, que deles emanam, encontram amparo em cumprimento de obrigação regulatória – por mais que o art. 3º da RN nº. 264/2011 refira à faculdade das operadoras em relação à implementação dos programas de promoção à saúde, uma vez exercida esta faculdade, cria-se a obrigação de respeito aos regulamentos correlatos.

Portanto, por mais que não se possa considerar a efetivação de programas de promoção à saúde como procedimento de tutela da saúde, ante o texto da alínea “f” do inciso II do art. 11 da LGPD, o tratamento de dados pessoais para aquela finalidade encontra amparo na alínea “a” do inciso II do mesmo artigo, pois estará, a operadora de planos de saúde, em tal hipótese, cumprindo ordem regulatória, uma vez que os programas de promoção à saúde devem seguir os ditames da resolução normativa aplicável à espécie.

Em complemento, para fins de obtenção de certificado de Acreditação, nos termos da Resolução Normativa nº. 452, de 09 de março de 2020 (RN nº. 452/2020), da ANS, se faz necessário que a operadora de planos de saúde mantenha programas de promoção à saúde, como se pode facilmente verificar da leitura da norma regulamentar, sendo que, na introdução do item nº. 3.3.3 do Anexo da RN, por exemplo, há previsão de necessidade de definição do público-alvo, além de ser “necessário que seja realizada busca de beneficiários que possam se favorecer da participação no Programa”, o que pressupõe, evidentemente, tratamento de dados pessoais sensíveis para definição do público-alvo e dos programas a serem enquadrados.

Em conclusão, o que se verifica é que, muito embora programas de promoção à saúde não possam ser enquadrados como procedimentos de tutela da saúde, para fins da LGPD, e conforme seu texto expresso, o tratamento de dados pessoais para tal finalidade (execução dos programas) encontra amparo no disposto no art. 11, inciso II, alínea “a”, da citada lei, pois estará ocorrendo em cumprimento ao disposto nas RN’s. nºs. 264/2011 e 452/2020, da ANS, ou seja, em cumprimento de norma regulatória, sendo cediço que a realização de tais programas de promoção à saúde vêm, inclusive, em benefício dos próprios consumidores, que poderão ter acesso a serviços indicados em conformidade com suas necessidades, sendo sabido, também, que em que pese a saúde suplementar se paute em relações contratuais, ainda assim desenvolve serviços de saúde reconhecidos, pelo art. 197 da Constituição Federal, como sendo serviços de relevância pública, inclusive no que concerte à promoção da saúde.


Stella Muniz

Jurídico | Privacidade e Proteção de Dados | LGPD | Compliance | Membro ANPPD®

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