O Apartheid Ágil contra Introvertidos
Woman thinking photo created by karlyukav @ Freepik

O Apartheid Ágil contra Introvertidos

Em 2019, antes da pandemia, visitava um cliente em consultoria aqui em São Paulo quando a Paula (este não é seu nome real), uma moça nos seus 30 anos, me abordou enquanto eu tomava o cafezinho. Ela era membro de um dos times e me pediu graciosamente alguns minutos de atenção. Prontamente a atendi, e ela, falando baixo, entretanto de maneira incisiva, afirmou que não gostava da reunião diária, porque ela não gostava de falar em público - e para ela, falar para um grupo de 10 pessoas todos os dias, era falar em público. Paula também me confidenciou que a transformação ágil para ela era um pesadelo, pois constantemente era exigido que ela desse sua opinião em grupo em prol do consenso e do alinhamento, mesmo que ela não quisesse expô-la.

Antes de continuar a ler o artigo gostaria que você refletisse se, no seu papel como agente de mudanças, consideraria a postura da Paula adequada e normal. Por outro lado você pode achar que ela "não tem o mindset correto" e deveria passar por um processo de coaching ou similares. Eu tenho uma confissão a fazer: hoje quem me vê ministrando treinamentos, mentorando líderes ou palestrando não deve imaginar que antes dos meus 16 anos eu tive muito poucos amigos. Eu era uma criança tímida e reservada. Muitas pessoas ao meu redor na infância viam isso como um problema dizendo: "- Você precisa ter mais amigos". Isso me irritava profundamente!


A Extraversão

Nos últimos 10 anos algumas perguntas de ordem social e do comportamento humano - que impactam uma organização em processo de mudança - me intrigaram e me empurraram a buscar respostas em lugares inusitados. Algumas dessas perguntas circulam ao redor de temas como: Por que gestores resistem mudar? Por que certas pessoas são mais pessimistas e não compram riscos? Por que a comunicação é tão complicada? Por que certas pessoas sobrevalorizam o lúdico, o consenso e o coletivismo ao invés de indicadores, a ciência e o individualismo? A conversa com a Paula também me intrigou: por que certas pessoas são mais reservadas? Tais questionamentos me levaram para a Psicologia e o estudo da personalidade, suas características e transformações. Hoje tenho respostas fundamentadas para algumas destas perguntas. Estudar principalmente sobre a personalidade me levou para o modelo Big Five que afirma que temos 5 traços básicos da nossa personalidade - um deles é a extraversão.

É bem provável que você que está lendo este artigo é um extrovertido - alguém que adora o contato social. Para você, festas, encontros, conferências, almoços e talvez até a reunião do condomínio são grandes playgrounds de interações sociais que te energizam e revigoram. Um bom encontro com muitas pessoas é algo desejado e primordial para você. Do outro lado deste traço de personalidade temos os introvertidos: eles gostam do anonimato e encontram na introspecção e solitude o seu refúgio. Para eles o contato com muitas pessoas os drena fisicamente e se por alguma convenção social obrigatória são forçados a participar de encontros, festas e shows, eles chegam a precisar de alguns dias sozinhos e sem falar com ninguém para "se recuperarem" deste esforço. Ambos os espectros da extraversão são normais e não defeitos da personalidade a serem consertados. Somente os extremos são casos que podem ser motivo para tratamento por terapia comportamental.


O Problema

Você deve estar questionando porque esse artigo tem o título tão forte. Bem, observei na minha jornada que o mundo digital atual e, infelizmente, o mundo dos negócios evoluíram para um nefasto concurso de popularidade onde os humanos mais sociáveis, comunicativos e positivos têm sucesso e somente a extroversão é valorizada. O ápice dessa cultura geral são os "likes" e "views" de redes sociais, entretanto, para alguns agilistas, vejo tal cultura se manifestando na ânsia ilusória que o destino inexorável de suas carreiras é ser um guru "influencer" iluminado, palestrando e gravando lives para milhões de pessoas. Já os quietos, introspectivos e solitários são considerados pelo mundo e pelo mercado de trabalho como pessoas ou profissionais de segunda categoria, perdedores, e em certas ocasiões, "não colaborativos", receosos, inadequados e "não ágeis".

O mercado precisa compreender que em diversas interações (ágeis ou não) introvertidos podem se sentir desconfortáveis ou coagidos a ter os comportamentos exibicionistas da tribo só para evitar repercurssões, e assim, se livrar de mais exposições indesejadas. Algumas delas são:

  • Reuniões Diárias (e talvez Kanban Meetings)
  • Inceptions, Groomings, Plannings e "War Rooms"
  • Apresentações e Palestras (internas ou externas)
  • Restrospectivas (e talvez Service Delivery Reviews e Operations Reviews)
  • Obrigar a abrir a câmera no Zoom
  • Elogios "forçados" e tentativas de "motivar"
  • Obrigar as pessoas a usar certas roupas ou apetrechos tribais em eventos, datas comemorativas e etc.
  • Sessões de Moving Motivators, Delegation Poker, Team Building e afins...
  • Dinâmicas e Facilitações Lúdicas ou Exóticas


"Integrando" Introvertidos

A psicometria sugere que a extraversão distribui-se normalmente na população, logo, o Apartheid que defendo aqui é grave, pois o mercado pode estar marginalizando (ou sorreteiramente forçando-os a se encaixarem em uma forminha) aproximadamente 50% dos indivíduos. O maior objetivo deste artigo é chamar a atenção e não dar soluções definitivas, porém, uma heurística geral que sugiro é compreender que em um mundo onde a exposição exacerbada é lei, introvertidos ficam deslocados e se sentem inadequados - e este é um sentimento terrível. Quem se autodenomina "empático" precisa no mínimo compreender essa realidade e tomar algumas ações como as que sugiro aqui:

  1. Não os force a dar opiniões em público. Introvertidos podem dar sua opinião sob convite para uma ou duas pessoas em quem confiam, e elas podem ser seus porta-vozes para um grupo maior;
  2. Entenda que introvertidos precisam "tirar férias" de interações sociais intensas;
  3. O que é confortável para você extrovertido possivelmente não é para o introvertido;
  4. Métodos Ágeis precisam ser mais ajustados a esse público, mas, pelo amor de Deus, não criem mais uma dinâmica pônei para tal.

Em 2007, em uma das primeiras transformações ágeis que trabalhei para uma empresa de produtos, tinha uma pessoa que era excelente tecnicamente - um arquiteto de software sábio e compenetrado. Ele era muito produtivo e também auxiliava individualmente a todos com serenidade e eficiência. Ele também era muito introvertido. Ele foi treinado por mim em Scrum e odiou o framework. Ele me falou que escolheu a área de tecnologia exatamente porque achava que não teria tantas interações sociais e os Métodos Ágeis estavam destruindo seu sonho. Ele queria simplesmente fazer software com excelência, a portas fechadas e idealmente com as pessoas passando requisitos junto com pizzas por debaixo da porta. Ele tinha MUITO a contribuir para esse projeto que participei, mas não na forminha ágil vigente na maioria das empresas que tenho contato. Felizmente, o meu passado mais introvertido me sensibilizou na época e liberei esta pessoa de participar dos rituais e situações de exposição desconfortáveis para ela. A solução foi alguém interagir com ele individualmente e assumir o papel de "espelho" nas reuniões. Introvertidos sempre têm algo a contribuir, mas sem fazer o moderninho estardalhaço ágil sobre isso.

Aqui na Aspercom temos experimentado algumas práticas nas nossas formações e mentorias para tornar a agilidade mais palatável para os introvertidos (assim como os inconformes e pessoas com alto neuroticismo, mas isso é assunto para outro artigo). Quando, por exemplo, precisamos da opinião de um grupo todos damos alternativas para que a colaboração dos introvertidos nos seja enviada de forma privada. Não exigimos a abertura da câmera em treinamentos e consultorias remotas. Também isentamos as pessoas de falarem em atividades em grupo. É pouco, mas um começo. Se você tem tentado práticas similares compartilhe aí nos comentários e também espero que se você, introvertido, tiver algo a compartilhar para aprimorar esse artigo comente ou entre em contato comigo no privado.

Juliana Alves

Agile Master | Agile Coach | Analista de Negócios | PSM-I | KSD | M 3.0 | CLIF | PBBP | LSA | POCC

2 a

Me identifiquei muito com o que disse! Obrigada pela colocação

Douglas Martins Pereira

Gerente de Projetos | Gestão de Produtos | PMO | Projetos de TI

2 a

Boa Reflexão!

Leandro Pachega

Apaixonado por pessoas, transformação e tecnologia | CXP, KCP, KMP, PMP, SAFe Agilist | Cristão 🙏 | Beka ❤️ | Lolo 👦 | Bobby 🐕 |

2 a

Na minha opinião a chave está em conhecer as pessoas com quem trabalhar antes de aplicar qq método, dinâmica etc… e pra conhecê-la o ideal é falar individualmente com ela.. tb acho que 10 a 30min em 6 ou 8 h dia para uma pessoa introvertida seria ok mas denovo precisamos ouvi-los porque cada caso é um caso!

Claudio Ponte

Qualidade e Testes de Software | Lider de Testes | Analista de Requisitos | Ágile Coach - CAC® | Scrum Master | Agile Master | Lean Inception | Kanban | Agilista

2 a

Vejo também outra situação Rodrigo. Aos 49 anos, e com forte experiência como QA, estou buscando o redirecionamento de carreira para agilidade. Porém "esbarro" na falta de experiência na área. Seu texto fou excelente, só gostaria de compartilhar algumas "dores", que creio não serem só minhas.

Aldo Rocha

Tech Manager | IT Manager | Professor

2 a

Excelente cara, isso serve não só para o contexto ágil, mas para todos. Obrigado por abrir meus filtros para esse cenário também.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos