O Brasil passa fome: de comida e de direitos
“Quem tem fome tem pressa”. Foi com essa frase que Herbert de Souza, o Betinho, liderou nos anos 1990 uma das maiores campanhas contra a fome da história do Brasil. Agora, quase 30 anos depois, o país volta a viver uma situação triste e dramática neste sentido.
Em 1993, 32 milhões de pessoas passavam fome. Hoje, são 33 milhões, segundo o mais novo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Além disso, quase 60% da população brasileira vive atualmente em algum nível de insegurança alimentar — que pode variar de leve a grave — a depender do grau da restrição.
Como nos alertava Betinho, precisamos agir já para assegurar esse direito básico à população brasileira, mas sem perder de vista as soluções mais estruturantes de médio e longo prazo que podem evitar a repetição do problema.
De imediato, é fundamental apoiar e investir na assistência social direta a quem mais precisa. Famílias que vivem em favelas, periferias ou no interior do país e que estão em situação de desemprego, endividamento ou vivem de pequenos “bicos” diários são as que contam com o suporte de programas governamentais e de projetos de organizações da sociedade civil (que atuam na distribuição de dinheiro, cestas básicas ou refeições prontas). No entanto, muitos membros dessas entidades relataram a redução de doações no último ano e o congelamento dos repasses governamentais.
Vale trazer que o atual governo federal opera um desmonte na política de assistência social e de segurança alimentar, que inclui a desativação de conselhos, como o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), a falta de atualização do CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais) e a extinção de programas importantes, como o internacionalmente reconhecido Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
No curto prazo, é preciso apoiar as organizações que atuam na ponta e conhecem de perto quem e quais são as necessidades de quem passa fome. Doações de alimentos, em dinheiro ou mesmo do tempo para cozinhar e distribuir comida são sempre bem-vindas, mas não podemos perder de vista que a responsabilidade maior é do poder público. Por isso, é imprescindível cobrar dos governantes a retomada de programas e a construção de novas soluções que voltem a nos tirar do Mapa da Fome.
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No médio prazo, é essencial construirmos uma infraestrutura que garanta a produção e a distribuição de comida de qualidade para todo o país. É primordial apoiar fortemente a agricultura familiar — principal responsável pela produção de alimentos no Brasil — com crédito, tecnologia e condições adequadas para o escoamento das safras.
Não podemos esquecer dos riscos que as mudanças climáticas podem trazer para a produção agrícola. Neste sentido, é preciso investir na redução da emissão de gases de efeito estufa, em estratégias de mitigação dos impactos do aquecimento global, além da adoção de medidas emergenciais, como estoques reguladores dos preços dos alimentos.
É impreterível assegurar que todas as famílias consigam ter acesso à alimentos em quantidade e na qualidade que precisam e desejam sem a necessidade de realizar grandes deslocamentos (feitos com frequência por meios poluentes). Para isso, incentivar e promover feiras livres, sacolões e bancos de alimentos nas regiões periféricas das cidades e longe dos grandes centros urbanos é fundamental.
Por fim, a longo prazo, necessitamos de medidas que deem autonomia e promovam — de fato — a segurança alimentar de todas as famílias. O Brasil precisa discutir seriamente um programa de renda básica universal com critérios de acesso e de reajuste periódico dos valores fixados em lei. Ter uma renda mínima deveria ser um direito tão fundamental quanto o acesso à saúde e à educação. Afinal, se falta peixe na sua mesa hoje, talvez você não tenha forças para pescar amanhã.
Leonardo Fontes é sócio da Tr3s Consultoria Social, mestre em Sociologia pela USP e doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ. Atualmente, é pesquisador de pós-doutorado no Cebrap e pesquisador visitante na London School of Economics.