O cerne da hipocrisia
Antes do início desta crônica, quero propor algumas questões que devem passar pela cabeça dos brasileiros. Por que quando alguém erra uma conversão no trânsito eu posso xingá-la de dentro do meu carro, mas quando eu cometo o mesmo delito, há sempre autojustificativas convincentes a meu favor? Por que a traição conjugal é um ato detestável quando praticado pelo meu(minha) parceiro(a), mas “justificado” se cometido por mim? Por que fulano frequenta cultos e prega lições de ética em redes sociais mas é um sujeito mal caráter no âmbito fiscal e sonega impostos? Por que beltrano criticava o fanatismo político que assolava o país há alguns anos atrás mas hoje o pratica sem escrúpulos e é incapaz de assumir que o faz?
Podemos definir hipocrisia como sendo a ação de um indivíduo em julgar uma atitude cuja execução não traz a mesma consequência para o próprio sujeito que a condena em outro contexto. Uma pessoa hipócrita é falsa, dissimulada. Há uma explicação científica para as incoerências praticadas pelas pessoas. Neste sentido, devo salientar que todos nós somos vulneráveis a hipocrisia praticando-a em algum nível, e a resposta a este fenômeno está no cérebro.
Uma brilhante analogia feita pelo psicólogo Jonathan Haidt exemplifica a questão da hipocrisia. Nosso cérebro seria movido por um elefante desgovernado sobre o qual há uma pessoa (nosso eu consciente) que o controla ou pelo menos tenta controlá-lo. A analogia é brilhante pois compreendemos que ninguém consegue de fato segurar um elefante se ele decide tomar um caminho. Basicamente, esta etapa da analogia corresponde as nossas emoções inundando inconscientemente nosso cérebro e determinando nosso comportamento como um feroz e desenfreado tsunami. É essa intuição emocional que a grosso modo vai ditar inicialmente nosso comportamento.
Assim, podemos entender porque julgamos tanto. Diante de uma situação numa rede social por exemplo, inconscientemente temos um palpite, uma intuição emocional, que rapidamente preenche nosso julgamento. Desta forma, deflagramos uma opinião imediata para aquele assunto, pois é atraente a ideia de acreditarmos no nosso próprio julgamento, já que nosso repertório de autocrítica é escasso. Após um tempo, percebemos, às vezes, que sobre o elefante há uma pessoa racional preocupada com os estragos que as decisões mal tomadas podem provocar e, de maneira consciente, reverte a situação. Se a pessoa for racional e exercitar o que chamamos de inteligência emocional, ela espera o tsunami emocional passar antes de opinar naquele assunto, prevenindo a ação de ter que voltar atrás de uma eventual hipocrisia. Contudo, na maioria das vezes, a pessoa sobre o elefante torna-se um advogado criminalista que fará de tudo para proteger aquele animal desembestado, pois simplesmente nosso cérebro não suporta viver em conflito. Neste último caso, nosso advogado vai ter a difícil tarefa de rearranjar a “cena do crime” para que torne verossímil minha opinião/atitude emocional primitiva. É esta tarefa suja e sorrateira que parece inacreditável aos olhos externos mas faz todo sentido dentro do contexto de quem a executou.
É fácil entender como mudamos de opinião quando temos que tomar uma decisão emocional. Numa hipotética situação em que você avista um trem, e logo à sua frente uma bifurcação na linha, você precisa escolher qual a rota o trem deve seguir. Se você não fizer nada, o trem continuará na rota original onde há cinco pessoas amarradas no trilho que morrerão quando o trem passar por elas. Todavia, na rota alternativa, há apenas uma pessoa amarrada no trilho. Cabe a você puxar uma alavanca para alterar a rota. O que você faria? A maioria das pessoas afirmam que puxariam a alavanca para evitar mais mortes. Numa segunda situação, você está sobre uma ponte junto com uma pessoa, e vocês estão a salvos. Abaixo de vocês, o mesmo trem segue seu caminho, só que agora numa rota única onde ainda há cinco pessoas amarradas ao trilho. Desta vez, você precisa escolher entre empurrar a pessoa que está sobre a ponte contigo, ou deixar o trem matar as cinco pessoas amarradas. No caso de empurrar a pessoa, o trem teria tempo de parar antes de matar as outras cinco. Neste caso, sua decisão mudaria? A maioria das pessoas afirmam não querer empurrar a pessoa da ponte, pois adiciona-se nesta decisão um ônus emocional. Seria sua ação contundente que culminaria com o assassinato de uma pessoa, ao invés de deixar o trem seguir o fatídico propósito de matar cinco pessoas, cujos óbitos não lhe seriam creditados. Por fim, facilmente eu mudaria sua opinião se dissesse que na segunda hipótese as cinco pessoas amarradas são seus pais, irmãos e avós. Se você não apresentar psicopatias certamente escolherá salvar sua família. Estes exemplos nos mostram como as emoções governam nossas decisões, e portanto, nossos comentários e julgamentos. Por isso temos a capacidade de sermos hipócritas sem nos importarmos muito com isso.
O mesmo vale para o preconceito. Toda vez que alguém dispara uma narrativa machista, homofóbica ou racista, é o elefante devastando o caminho da razão. O sujeito preconceituoso tem sempre “lógicas” que corroboram seu discurso, porém é notável sua habilidade em selecionar informações, ignorar fatos e editar conceitos conflitantes para afirmar sua ideia controversa. Eis o advogado tentando justificar as ações do elefante, e como somos nós que legislamos de acordo com nossa jurisprudência nunca estaremos errados.
Se entendermos a base neurológica da hipocrisia, é possível tentar evitá-la. Basta tomarmos decisões racionais e sem viés emocional, ideológico ou religioso, contudo, essa tarefa quase sempre é dificultada numa população desinformada e que discute os mais variáveis temas através de memes em redes sociais. Um aspecto positivo que gosto de enxergar na pandemia que vivemos é que a ciência, tão criticada ultimamente, parece estar derrubando paradigmas enviesados e provando quase que instantaneamente a importância da informação responsável.
Prof. Dr. Diego Cardozo Mascarenhas