O Coronavírus e as quatro regras de ouro da vigilância sanitária
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O Coronavírus e as quatro regras de ouro da vigilância sanitária

O objetivo desse texto é descrever quatro regras de ouro (não escritas) da vigilância sanitária, que podem auxiliar as empresas a compreender como pensa (e age) a autoridade. Ao final de cada tópico, a conclusão é um insight potencialmente útil, tanto para os departamentos jurídicos internos, como para os dirigentes de empresas preocupados em navegar com segurança nas águas turvas de uma pandemia.

I.           ONDE HÁ RISCO, HÁ VIGILÂNCIA

A toda norma administrativa corresponde uma finalidade pública. Se o órgão público age em desacordo com sua finalidade, viola o direito. Para mais ou para menos. Simples assim, onde não há risco à saúde, não há que se falar em vigilância sanitária. Nas entrelinhas estão as liberdades individuais e a liberdade econômica, pontuadas pelo poder de polícia da autoridade sanitária.

Por um lado, a finalidade da vigilância é entender e manejar os riscos à saúde. Para isso deve adotar todas (e apenas) as medidas necessárias.

Por outro, quando a autoridade extrapola sua competência, pode provocar, ela própria, risco à saúde. Uma interpretação equivocada que impeça o ingresso de um produto ou serviço no mercado impedirá o acesso do público a determinada tecnologia em saúde. Uma norma que permita a distribuição de medicamento sem comprovação de segurança e eficácia pode ser, ela própria, fonte de risco à saúde. Em situações extremas, pode haver risco de dano inverso – super trunfo na manga dos advogados especializados no contencioso sanitário.

Eis o dilema da autoridade sanitária: se agir aquém do risco, não cumprirá a finalidade pública; se agir além, a violará. O dilema é antigo – nas páginas da nossa história está a Revolta da Vacina, cujos mortos, feridos e presos foram atingidos pela varíola, pela ignorância e pela inabilidade de comunicação do poder público. [Vale a leitura de Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes, São Paulo, Cosac Naify, 2010].


II.         A AUTORIDADE SANITÁRIA É SENHORA DE SUA PRÓPRIA COMPETÊNCIA

A legislação é pródiga em normas sanitárias cuja aplicação pode variar conforme o caso concreto. No mérito, quem avalia o risco é quem domina a técnica. E assim deve ser.

É amplo o poder da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para agir quando houver risco à saúde, mesmo se relativo a “outros produtos e serviços” além daqueles expressamente elencados na Lei 9782/99. A Anvisa por diversas vezes exerceu o papel de senhora da própria competência e se destacou na constelação das mais respeitadas agências de vigilância sanitária.

Quando a Anvisa extrapola, o jurisdicionado pede e o Judiciário intervém para restaurar a legalidade. A própria Anvisa, dialeticamente, se fortalece.

Quanto às epidemias em geral, a lei federal vigente é dos anos 1970. Filha do seu tempo, a lei de vigilância epidemiológica dá amplo poder aos órgãos sanitários. Pela Lei 6259/75, a investigação epidemiológica é dever da autoridade. A partir das conclusões dessa investigação, ainda que parciais, “a autoridade sanitária fica obrigada a adotar, prontamente, as medidas indicadas para o controle da doença, no que concerne a indivíduos, grupos populacionais e ambiente”.

As pessoas físicas e jurídicas, públicas ou privadas, abrangidas pelas medidas indicadas pela investigação epidemiológica, ficam sujeitas às medidas de controle determinadas pela autoridade sanitária. Quais medidas de controle?

Podem as autoridades requisitar propriedade privada, internar compulsoriamente, restringir o comércio, dispensar licitação ou permitir produtos sem registro sanitário?

A legislação dos anos 1970 não especifica, tampouco limita, o poder de polícia sanitária. Paradoxalmente, é isso o que a faz tão atual. Entretanto, de 1975 para cá nosso direito mudou, nacional e internacionalmente.

No plano nacional, a constituição parte da premissa de que deve haver, sim, uma rigorosa vigilância em saúde. Epidemia é uma das raras hipóteses em que a constituição permite a remoção de grupos indígenas de suas terras, ad referendum do Congresso Nacional. E compete ao SUS executar as ações e serviços de vigilância sanitária e epidemiológica.À luz da Constituição, a Lei 6259/75 ainda é instrumento hábil ao enfrentamento de epidemias.

No plano internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou o Novo Regulamento Sanitário Internacinal (RSI) em 2005. Desde então, ainda que sob algumas críticas, a OMS tem enriquecido sua experiência a cada nova ameaça de pandemia. O RSI já vinha sendo aplicado no Brasil desde o advento da gripe suína. O episódio mais recente do RSI é o novo coronavírus (COVID-19).

Em 30/1/2020, a OMS decretou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) relacionada ao COVID-19. Em 6/2, o Ministério da Saúde prontamente decretou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), como prevê a legislação brasileira, a reboque do alerta dado em Genebra.

Ao argumento de que o Brasil demandasse uma lei específica para resgatar os brasileiros de Wuhan, o Congresso Nacional rapidamente aprovou a lei do coronavírus. A Lei 13979, de 6/2/2020, especifica medidas de poder polícia sanitária, mas (curiosamente) não menciona a lei de vigilância epidemiológica.

A lei do coronavírus permite a adoção pelo poder público de medidas extraordinárias. Restrições à liberdade individual, como o isolamento, a quarentena e a restrição à entrada e saída do país. Igualmente, a realização compulsória de exames, a vacinação ou a imposição de tratamento médico específico. Medidas que podem interferir na liberdade religiosa, como a exumação, a necropsia, a cremação e o manejo de cadáver. Medidas de alto impacto aos negócios, como a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, com posterior indenização. Igualmente, dispensa licitação para aquisição de bens e serviços necessários ao enfrentamento do COVID-19. Entre as medidas mais polêmicas está a autorização excepcional e temporária para a importar produto sem registro sanitário, mediante ato do Ministério da Saúde e desde que registrado por autoridade sanitária estrangeira.

A lei do coronavírus é exemplificativa. Outras medidas podem ser adotadas. Como dito, a vigilância sanitária é senhora da própria competência.

A corroborar isso, desde os anos 1940 o Código Penal genericamente criminaliza o descumprimento de medida sanitária destinada a combater doença contagiosa. Duas décadas antes, a gripe espanhola (um tipo de H1N1) apavorara nossos bisavós.

Trocando em miúdos, a autoridade tem o poder de decidir quais serão as medidas de controle, desde que respeite o conhecimento científico vigente, as garantias constitucionais e, claro, as leis vigentes para o enfrentamento de epidemias.

O Ministério Público parece atento ao desafio de proteger a sociedade brasileira de potenciais exageros. Em 27/2, publicou a Nota Técnica Conjunta nº 1/CES/CNMP/1ºCCR, recomendando, entre outras medidas, a “atuação coordenada, com o protagonismo das unidades e ramos do Ministério Público, para o acompanhamento das ações realizadas pela Vigilância em Saúde, em todos os níveis”, e “acompanhamento sistemático das medidas e orientações do Centro de Operações em Emergências de Saúde Pública para o COVID-19 para a resposta eficiente no combate aos riscos de epidemia em território nacional”.

Pode parecer politicamente correto o discurso de que “contra a peste, vale tudo”, mas atenção: a aplicação da lei do coronavírus deve respeitar a constituição. Por ora, a constituição está sendo respeitada, notadamente com a aprovação de calamidade pública pela Câmara dos Deputados. Além disso, já existe robusta tessitura de atos normativos infra-legais que regulamentam a lei 13979/20.


III.      CADA ELO DA CADEIA DE DISTRIBUIÇÃO DE PRODUTOS OU SERVIÇOS É A VIGILÂNCIA SANITÁRIA DAQUELE QUE O ANTECEDE E DAQUELE QUE O SUCEDE.

Quem é regulado pela Anvisa, bem o sabe: é infração sanitária comprar medicamento de – ou vendê-lo a – quem não tiver licença, autorização, registro ou prescrição. Cada empresa deve vigiar as licenças dos seus parceiros de negócio e mesmo dos consumidores, com relação aos controles da prescrição médica. Eis mais uma regra de ouro da vigilância sanitária: cada um de nós é a vigilância do outro.

São de notificação compulsória às autoridades sanitárias os casos suspeitos ou confirmados de doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena: pela Lei 6259/75, é dever de todo cidadão comunicar à autoridade sanitária local a ocorrência de fato, comprovado ou presumível, de caso de doença transmissível. Esse dever é exacerbado (e fiscalizado mais amiúde) com relação a profissionais de saúde, instituições de saúde e instituições de ensino.

É curioso notar que, há mais de quarenta anos, nossa legislação sanitária contém normas de governança relacionadas a epidemias. Por exemplo, quando responsabiliza, de modo particular, o médico no exercício profissional, o dirigente hospitalar e o dirigente de estabelecimento de ensino. A responsabilização pela notificação compulsória é pessoal.

A lei do coronavírus reitera essa regra: “toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de: i) possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus; ii) circulação em áreas consideradas como regiões de contaminações pelo coronavírus” (art. 5º, Lei 13979/20). As pessoas e as empresas deverão cumprir as medidas determinadas pelas autoridades, sob pena de responsabilização pessoal.

As empresas potencialmente afetadas devem avaliar se suas regras de governança endereçam as responsabilidades previstas na legislação sanitária - tanto do ponto de vista institucional como pessoal (dos dirigentes e responsáveis técnicos). Isso pode ser fundamental para o gerenciamento de crise decorrente do COVID-19.


IV. A SAÚDE PÚBLICA É O EXERCÍCIO DE UM PODER

Ao estudar a história da medicina social, o sociólogo francês Michel Foucault concluiu que a saúde pública é o exercício de um poder pelo Estado. De fato, as regras de ouro mencionadas até agora sugerem que o poder da autoridade sanitária é abrangente (embora não seja absoluto).

Além dos aspectos enfrentados acima, é importante refletir que a gestão do risco sanitário depende da gestão da informação em saúde. Como fica, então, a proteção de dados pessoais em tempos de epidemia?

Muito antes das atuais discussões sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – que entrará em vigor em agosto), a lei da vigilância epidemiológica de 1975 já determinava (e ainda determina) a proteção dos dados do paciente de doença de notificação compulsória: “a notificação compulsória de casos de doenças tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido”.

Excepcionalmente, a identificação de tal paciente fora do âmbito médico sanitário, só é permitida “em caso de grande risco à comunidade a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio do paciente ou do seu responsável legal”.

A proteção de dados do paciente é importante, pois a notificação compulsória de doença deve conter “indicação precisa que permita à autoridade sanitária identificar a pessoa portadora da doença e o local ou locais onde possa ser encontrada”, conforme o decreto que regulamenta a lei de vigilância epidemiológica. Ou seja, um vazamento de dados de vigilância epidemiológica exporia a identidade e endereço dos pacientes.

A legislação responsabiliza não apenas as instituições. Nossa legislação também prevê a responsabilização pessoal dos agentes públicos, quando diz que “todos os encarregados das ações de vigilância epidemiológica manterão sigilo quanto à identificação pública do portador de doença notificada” (Decreto 78231/76).

A recente lei do coronavírus parece prestigiar o poder do Estado em obter e compartilhar dados pessoais e só en passant menciona o dever do sigilo.

Recentemente, a Anvisa foi questionada por suposto vazamento de dados de pacientes autorizados a importar produtos de cannabis para seu tratamento individual.

Portanto, a proteção dos dados pessoais será um ponto de atenção para as empresas fornecedoras de serviço ao SUS durante o enfrentamento do coronavírus.


Certamente essas quatro regras de ouro não esgotam o tema. Cada empresa será impactada de um modo pelo COVID-19 e pelas medidas adotadas pelas autoridades sanitárias. Diante de tanta incerteza, uma interpretação ponderada do direito pode fazer bem à saúde, à continuidade dos negócios e à preservação dos empregos.



Nota: O presente texto tem apenas a finalidade de contribuir para o debate de nossa sociedade em torno da epidemia de coronavírus e não deve ser lido como aconselhamento jurídico.

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