O desafio relacional…
Desde há décadas que incluímos na conceptualização da enfermagem, no seu discurso e nas suas práticas, a relação de ajuda, encarando o cliente numa dimensão holística, como parceiro de cuidados e da equipa de saúde. Esta centralidade desenvolveu-se com o paradigma da integração, para ser definitivamente assumida no paradigma da transformação, evoluindo do “fazer com” para o “ser com”.
Na verdade, basta analisar as bases filosóficas dos modelos conceptuais para identificarmos a integração do conceito de uma forma evolutiva. A dimensão relacional da profissão ganhou por esta via uma importância incontornável, tornando-se um sustentáculo da identidade profissional da enfermagem, um dos seus ícones e um instrumento fundamental de afirmação de uma profissão de ajuda. Como resposta à incorporação explícita desta dimensão, desenvolveu-se um corpo de conhecimentos próprios, inspirados noutras disciplinas científicas, desenvolvidos entre outros por Hélène Lazure[1] e por Jacques Chalifour[2].
A visibilidade desta competência, para os leigos, confunde-se facilmente com competência social, não revelando o efeito de iceberg que a permite evidenciar. Mesmo para os próprios enfermeiros, não parece muitas vezes clara, sobretudo ao nível da sua operacionalização.
Como instrumento transversal de trabalho e factor de sucesso profissional em todas as suas dimensões, a competência relacional eficaz e eficiente, deve no meu entender, emergir fluida, da interiorização dos seus princípios científicos e do questionamento interno e externo das vivências, resultante do processo reflexivo. Por outro lado esta expressão, exige a compreensão de princípios expressos por filósofos como Kierkegaard, Kant ou mesmo Nietzsche, acerca da natureza inalcançável da realidade dos factos, considerando que apenas temos acesso às suas manifestações transformadas pela nossa subjectividade. Esta reflexão desperta-nos para a probabilidade de imensas “verdades” acerca do mesmo facto, sendo que a mais importante é a do cliente. Para nos “despirmos” da nossa “verdade” e analisarmos numa perspectiva empática a “verdade” do outro, a disponibilidade mental é uma condição necessária. Face à complexidade do desempenho, dos ritmos de trabalho e de vida actualmente praticados e exigidos, será esta disponibilidade um recurso infinito?
Não é certamente com os clientes fáceis, para os quais a competência social é muitas suficiente para transmitir uma ilusão de eficácia/eficiência, que se pode avaliar a competência relacional de um enfermeiro. É com os chamados clientes difíceis, onde não será expectável uma taxa de sucesso de 100%, mas também não o será de 5% ou 10%, que ela se pode avaliar.
A observação da realidade e alguma reflexão sobre esta temática, levam-me a acreditar que existem alguns fenómenos que exigirão cada vez mais dos enfermeiros em termos relacionais. Enuncio-os seguidamente de forma aleatória, mais como preocupações, do que propriamente como certezas fundamentadas.
O trabalho dos profissionais de saúde como objecto de significação social
Num ambiente desenfreadamente concorrencial, os media procuram o interesse humano, a conflituosidade, a consequência e o drama individual dos acontecimentos, numa lógica de proximidade e de identificação com os seus públicos, “empacotando” esses acontecimentos de acordo com os estereótipos sociais, relevando-os em si e não as suas causas. Este fenómeno invade-nos o quotidiano, de acordo com a filosofia mais ou menos sensacionalista do media em causa. Nesta lógica, o trabalho dos profissionais de saúde não foge à regra, constituindo um alvo com todos os ingredientes necessários ao interesse dos editores e à produção de uma boa notícia. Alguns episódios conhecidos de menos boas práticas fundamentam decididamente uma certa imagem negativa deste trabalho e destes profissionais, que se vai enraizando, e que muitas vezes justifica convenientemente outros aspectos, as causas dos acontecimentos.
As representações sociais à volta das expectativas no “milagre médico”
As capacidades infinitas da tecnologia e da ciência médica constituem hoje uma crença comum, criando muitas vezes expectativas demasiado elevadas nas pessoas afectadas por problemas de saúde e nos seus próximos. O conceito curativo clássico dos serviços de saúde, constitui a representação dominante. A evolução do conhecimento médico e o progresso tecnológico sustentam esta crença.
Se pensarmos um pouco no fenómeno anterior, encontramos referências mediáticas a sucessos que se situam por um lado, na ingratidão probabilística dos insucessos e por outro em processos experimentais destinados a alimentar a esperança das situações mais difíceis, mas que ainda não representam métodos comprovados. Esta visão distorcida fomenta um certo espírito místico, ou mesmo divino, das capacidades da Medicina, criando expectativas muitas vezes irrealistas, no conhecimento e na técnica, e nos seus executantes humanos, sujeitos ao erro e a limites. A visão realista da capacidade normal disponível e utilizável pelos clientes, não é claramente acessível ao comum dos cidadãos. No passa palavra, a necessidade de tranquilizar o cliente a submeter a algum procedimento, traduz-se compreensivelmente pela expressão do lado optimista da probabilística estatística do insucesso, enfatizando a taxa de sucesso.
O gap de conhecimento entre utilizador e profissional
O diferencial de conhecimentos entre os profissionais de saúde e os seus clientes é enorme, por um lado pela complexidade da ciência e da actividade e por outro pela linguagem utilizada. O discurso profissional repleto de códigos, torna difícil o entendimento mesmo para os clientes mais diferenciados, dos seus significados. A deformação profissional e a natureza da actividade, dificultam a descodificação pelos profissionais para uma linguagem acessível e inequívoca para os clientes. Atendendo ainda aos momentos de crise em que determinadas observações, diagnósticos ou propostas terapêuticas são verbalizadas, esta dificuldade aumenta substancialmente, revestindo-se por vezes dum carácter eufemístico. Esta relação é potencialmente geradora de dissonâncias entre a realidade do profissional e a realidade do cliente, originando incompreensão parcial ou total da informação, criando frequentemente equívocos e expectativas desapropriadas, aumentadas pelas crenças no potencial ilimitado da ciência.
O paternalismo
Vivemos nas nossas organizações de saúde a herança secular das culturas profissionais, traduzida na preponderância do estatuto sobre o papel e numa série de relações que se foram consolidando com o passar do tempo. Incluiria aqui uma determinada forma de paternalismo implícito dos profissionais sobre os clientes, aceite dissimuladamente e enraizada no subconsciente. Se reflectirmos um pouco, encontramos no discurso da maioria dos nossos clientes expressões desse paternalismo, traduzidas pelo relato de consultas a profissionais, utilização de diminutivos, etc. Por um lado banimos e condenamos a sua existência nos nossos conteúdos formativos, mas continua reconfortante o facto de os nossos clientes aceitarem sem restrições ou questionamentos, as atitudes terapêuticas que lhe propomos, ou as informações, algumas vezes dogmáticas e despersonalizadas, que lhe fornecemos. Para muitos clientes é também reconfortante a possibilidade de se entregarem confiadamente a um perito que lhe há-de resolver os problemas.
Daqui resulta grosseiramente a crença de que poderemos viver sem preocupações preventivas, sendo permitidos alguns excessos, inerentes a estilos de vida menos saudáveis, sobretudo os que trazem complicações com manifestações lentas e ocultas, porque actualmente “já existem soluções para praticamente todos os problemas… excepto se os serviços ou os profissionais forem incompetentes”. Esta crença, face à incapacidade real de resolução de todos os problemas sem sequelas ou limitações, torna-nos por vezes alvo da frustração dos nossos clientes, sobretudo pela oportunidade, por sermos os profissionais que mais tempo lhes dedica e logo os mais acessíveis.
O empoderamento do cidadão
Numa sociedade democrática faz todo o sentido, que o cidadão seja empoderado, realizando o seu direito à autodeterminação. O exercício da cidadania pressupõe uma série de direitos e deveres, que tornam efectivo um membro da sociedade, como contribuir para o seu desenvolvimento e utilizar os serviços que esta disponibiliza. O poder político veicula a mensagem de empoderamento também um pouco de acordo com os seus interesses do momento, ora sublinhando as virtudes do sistema, ora evidenciando as suas fraquezas, conforme é governo ou oposição. Não tendo este comportamento nada de anormal em democracia, gera expectativas no sistema e atitudes reivindicativas do cidadão contribuinte, que quando não se verificam, nos tornam nos alvos visíveis da insatisfação.
São observáveis comportamentos de utilizadores que não consideraria de reclamação formal, mas reclamativos, sobretudo de atenção aos seus problemas específicos. Numa lógica de prioridades e se considerarmos a manifestação subjectiva dos factos, o problema de cada um dos utilizadores ou dos seus familiares, é sempre o mais importante, o que não coincide necessariamente com a organização ou com o prestador. Podemos observar estes comportamentos relativamente a factos secundários, já que as práticas menos adequadas não são facilmente observáveis para os leigos, de acordo com o expresso anteriormente
De facto, quando perante estes comportamentos se convidam os cidadãos a reclamarem formalmente, poucos são os que o fazem, talvez por receio de represálias. O baixo índice de reclamações expressas é talvez uma fraqueza do sistema. A reclamação é um instrumento legítimo dos cidadãos, desejável como forma de melhoria, não esquecendo que em alguns sectores as reclamações dos clientes são responsáveis por mais de 50% da inovação. Uma reclamação é sempre uma oportunidade para as duas partes: para os prestadores de corrigirem práticas menos adequadas; para os clientes de esclarecerem duvidas.
a pressão da legalidade
À semelhança do que tem acontecido noutros países, como nos EUA, é previsível que os processos legais relativos a desempenhos duvidosos, de organizações e prestadores, venham a crescer, conduzindo a práticas defensivas, já observáveis, aumentando os custos e a pressão.
A prestação de cuidados de saúde é por natureza tensa, onde errar é fácil e as consequências do erro podem ser irreparáveis. Esta tensão intrínseca, potenciada por um clima menos amigável e pelas exigências quantitativas e qualitativas do desempenho, constituem factores de preocupação que deveriam merecer a nossa reflexão.
Recordo que os enfermeiros são a classe profissional mais exposta às agressões físicas e emocionais, conforme tem sido noticiado. Se não existir confiança nas organizações e nos seus profissionais, é necessário um esforço adicional para evidenciar competência geradora de confiança no seu desempenho.
Estaremos realmente preparados para este desafio?
Pede-se à nossa criatividade transformar estas potenciais ameaças em pontos fortes.
Março de 2005
Jorge Gamito
Enfermeiro
[1] Lazure, Hélène – Viver a relação de ajuda. Lusodidacta. Lisboa 1994
[2] Chalifour, Jacques – La relation d’aide en soins infirmieres, une perspective holistique – humaniste. Gaëtan Morin Editeur Ltée. Quebec, 1989
Enfermeira, Cuidados na Comunidade, Equipa de Saúde Escolar (Community health nurse, intervention area - Schools)
7 aMuito bom. 👏👏👏👏