O devir das coisas
“Não apagues os meus círculos”, segundo reza a lenda, terão sido as últimas palavras de Arquimedes antes de ser trespassado pela lança de um soldado romano, após a queda da cidade de Siracusa, por volta de 212 A.C. Ainda que não haja nenhuma evidência confiável de que estas tenham sido efetivamente as suas últimas palavras ou sequer que a sua morte tenha ocorrido da maneira descrita, a progressiva mistificação da personagem de Arquimedes por via da sua devoção aos estudos e trabalhos de pesquisa é não apenas um devir das coisas históricas, como também um ícone inspirador pelo seu legado à Humanidade, pela sua determinação, perseverança e naturalmente pela sua férrea curiosidade.
Arquimedes nasceu em Siracusa, atual Sicília, cidade onde viria a morrer e dedicou toda a sua vida ao estudo da Matemática, Física e Astronomia, sendo amplamente conhecidas as suas contribuições para a fundação da Lei da Estática e para o desenvolvimento do pensamento matemático quinhentista que culminou no surgimento de uma nova cultura científica. Porém, Arquimedes não é exemplo único e o nosso dever histórico para com os “pensadores originários” não se deve cingir apenas à sua importância ou legado universal para a Ciência, mas deve ser a base para uma reflexão mais cuidada das nossas sociedades e do que lhes verdadeiramente falta.
Confesso que também a mim me faltou durante muito tempo, diria anos, o interesse e a curiosidade por voltar à Filosofia e creio que só mesmo uma entidade divina poderá explicar como me desembaracei da disciplina no secundário. Contudo, a verdade é que nos últimos dois anos voltei a estudar Filosofia, não como objetivo intelectual, mas na sequência e como consequência das minhas próprias questões individuais, tanto a nível pessoal como a nível profissional. Se algo eu trouxe dos meus oito anos no interior foi a capacidade de parar para me questionar e observar o mundo à minha volta, o que só por si já significa “philosophia” ou o amor pela sabedoria.
Foi durante esse período mais intenso de busca interior, e estudando os grandes filósofos que constatei outro detalhe peculiar comum. Ainda que na Antiguidade Clássica o estudo dos “temas científicos” fosse entendido de forma diversa, Arquimedes, Anaximandro, Heráclito, Platão ou outro qualquer grande filósofo não eram apenas uma única “coisa”, mas antes várias e todas concorriam para o mesmo objetivo comum: produzir conhecimento científico e explicações para determinados fenómenos vivenciados, através da sabedoria prática ou método de observação. Não sendo especializados como hoje se parece amplamente valorizar puderam ser fiéis ao seu método de pesquisa eclético, manter um absoluto e permanente estado de curiosidade perante as evidências à sua volta, mas sobretudo e muito especialmente puderam através deste registo pouco especializado deixar um legado inqualificável e por vezes pouco estimado ou compreendido pela Humanidade e por cada um de nós de modo individual.
Arquimedes era um perfil multidisciplinar sem dúvida alguma; também o era Anaximandro que se dedicou ao estudo da Matemática e da Geografia, mas que se dedicava também à interpretação dos Astros, aliás é Anaximandro que introduz pela primeira vez o conceito da Lei do Karma; também o era Pitágoras, provavelmente um dos matemáticos mais malfadados para os estudantes portugueses, mas também fundador de uma seita espiritual e defensor acérrimo da teoria da imortalidade da alma, pensamento que Platão, também ele matemático e fundador da primeira instituição de educação superior do mundo ocidental, a Academia de Atenas, se viria a apropriar mais tarde.
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Hoje o mundo é diametralmente oposto. A participação cívica e intelectual é um dever praticamente desconhecido para a maioria dos cidadãos, o interesse genuíno e altruísta pelos outros e pelo mundo em nosso redor é tido na maioria dos casos como o resultado de uma personalidade ingénua e o valor das pessoas reside meramente na sua aptidão para serem especializadas ou pela sua capacidade de criação de valor acrescentado, em que o critério de mensurabilidade deve ser um benefício financeiro.
A isso assistimos nas organizações, nas profissões e com os profissionais que abdicam sistematicamente da sua humanidade em prol de uma especialização que os reduz a uma commodity e em que o seu preço é determinado pela lei da oferta e da procura ou por qualquer outra estrutura coletiva que lhes rouba a individualidade e sobretudo a oportunidade para serem mais do que apenas uma “coisa” só.
Pergunto-me que legado ou contribuição individual estamos nós a deixar à Humanidade ou às gerações futuras?
Margarida Diogo Barbosa