O direito constitucional à moradia e o acesso à moradia no Brasil
1. Introdução
Em 1992, o Brasil ratificou o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que trazia, em seu artigo 11, o dever dos Estados Parte em “reconhecer o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e moradia suficientes”. O termo “moradia” consta no Decreto 591/1992, como tradução do inglês “housing”, que poderia também ser abrigo ou alojamento[1]. A inclusão na Constituição Federal ocorreu através de Emenda Constitucional, em 2000, como norma constitucional programática, conforme considerado pelos doutrinadores. Segundo NAHUR, estas normas recebem esta denominação porque veiculam programas a serem implementados pelo Estado Social. Embora inserido como direito social na Carta Magna naquele momento, o texto original já previa, como competência comum a todos os entes da federação, “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais” (Art. 23, IX).
2. Política Pública de Acesso à moradia no Brasil
Considerando o acesso à moradia como norma programática, caberia ao Poder Público implementar políticas públicas que buscassem o alcance deste direito ao cidadão. Diversas políticas, formuladas e implementadas por diversos entes da federação, buscam, de uma forma mais eficiente ou não, atingir este objetivo. Neste artigo, nos deteremos em duas políticas públicas de acesso à moradia, que são: financiamento da casa própria e aluguel social, buscando relacionar estas políticas com a literatura de políticas públicas.
A política pública para habitação tem como pano de fundo combater o insistente déficit habitacional no Brasil. O último levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro (2021) demonstra que o déficit de unidades habitacional entre 2016 e 2019 esteve entre 5,66 milhões e 5,88 milhões, representando um aumento de 3,9% em três anos. Neste total, são consideradas habitações precárias, coabitação e ônus excessivo com aluguel urbano. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, foram construídos, em 35 anos, de 1984 a 2019, cerca de 7,8 milhões de apartamentos no Brasil. Ou seja, se o problema do déficit habitacional fosse ser resolvido apenas com construção de novos apartamentos, seriam necessários mais de vinte anos para zerar o déficit.
2.1 Política Pública de Financiamento Habitacional
Segundo Cymbalista e Moreira (2006), a questão da provisão habitacional foi discutida inicialmente no Governo Vargas. Naquele momento, a provisão de moradia era tratada como casa própria. Na mesma época, anos 60, foi criado o FGTS, o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) e o Banco Nacional de Habitação. Com o fim do BNH, em 1985, um levantamento demonstrou que apenas 6% dos imóveis financiados atendiam famílias com renda inferior a três salários-mínimos e apenas 13% do total de recursos beneficiou famílias com renda inferior a cinco salários-mínimos. Após isso, a Caixa Econômica Federal passou a centralizar toda a política habitacional do governo federal. A partir de 2003, diversas iniciativas, como a criação do Ministério das Cidades e a Política Nacional de Habitação, procuraram solucionar o problema habitacional.
Em 2009, como resposta à crise econômica mundial, dentre várias medidas para manter a economia aquecida, foi criado o Programa Minha Casa Minha Vida. Teve o objetivo de criar condições de ampliação do mercado habitacional para famílias com renda de até 10 salários-mínimos. Funcionou com subsídios diretos, de acordo com a renda das famílias, buscava impactar a economia por meio do efeito multiplicador gerado pela construção civil e aumentar o volume de crédito para aquisição e produção de mercadorias, através da redução dos juros para o financiamento, com a criação do Fundo Garantidor da Habitação (Ferreira, 2019). Em 2021, o programa foi reformulado, com algumas alterações de seus critérios, como faixas de renda, por exemplo, e teve o nome alterado para Programa Casa Verde e Amarela. Em 2023, com a volta ao poder do governo que criou o programa inicialmente, o programa voltou a se chamar Minha Casa Minha Vida.
Nesta política pública, a lente da orientação para o contexto, de Lasswell (1951), é importante visualizar as condições de momento da criação do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A Exposição de Motivos Interministerial nº 33, de 24/03/2009 (EM 33/2009), ao apresentar a Medida Provisória que criou o programa, descreveu que o programa se fazia necessário “diante do cenário de crise financeira mundial com o recrudescimento de seus impactos negativos sobre a atividade econômica, renda e nível de emprego do País”. O programa seria, portanto, uma medida de natureza anticíclica concentrado na melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e na manutenção do nível de atividade econômica. O contexto à época era de restrição de crédito, com potencial para gerar danos à economia brasileira. O dispositivo legal também argumenta que o déficit habitacional se concentra no segmento populacional de baixa renda e que há dificuldade para esse público acessar financiamento e outros mecanismos de aquisição de moradia que demandem comprovação de renda. Como se pode concluir, as premissas utilizadas na formulação desta política consideram ver o problema principal - a saber, a crise econômica mundial e seus efeitos – como um todo, assim como defende Lasswell. Isso porque, apenas um programa se propõe a endereçar soluções para diversos problemas – déficit habitacional, geração de empregos na construção civil e manutenção no nível da atividade econômica, dentre outros.
Ao aplicar o modelo de Múltiplos Fluxos de Kingdon, considerando os três fluxos – problemas, soluções e política – é possível concluir foram fundamentais na formulação da política pública do Programa Minha Casa Minha Vida. O problema era dado, conforme já descrito, pelo histórico déficit habitacional que o Brasil enfrentou e ainda enfrenta atualmente. Mas é importante destacar que outros problemas foram acentuados, sendo eles os descritos na Exposição de Motivos já comentada. O PMCMV é uma política pública que procura resolver vários problemas, não apenas o problema do déficit habitacional. A questão política, importante para que estes problemas tivessem lugar na agenda decisional, foi endereçada na Lei 11.977/09, criadora do programa, quando vários entes públicos foram envolvidos – não apenas o governo federal[2]. Portanto, independente da orientação política de cada governante, todos tinham interesse no sucesso do Programa.
Passamos a analisar o PMCMV do ponto de vista do ciclo de políticas públicas. O reconhecimento dos problemas e a formação da agenda, primeiro estágio, está descrito na Exposição de Motivos, conforme mencionado. A formulação da política envolveu diversos órgãos da administração pública federal. A EM 33/2009 foi elaborada pelos Ministérios da Fazenda, Justiça, Planejamento, Meio Ambiente e Cidades. Como um programa que buscou endereçar soluções para vários problemas, a formulação da política pública em conjunto permitiu que o programa tivesse uma melhor visão do todo. Quanto ao último estágio, de avaliação da política pública, a lei não trouxe a previsão de avaliação de efetividade do PMCMV.
2.2 Política Pública de Aluguel Social
Dias e Santos (2021), ao discorrer sobre o histórico do financiamento habitacional no Brasil, concluem que programas, como o PMCMV, não lograram êxito em atender os fins sociais a que se destinavam, argumentando que as camadas sociais majoritariamente contempladas foram as de classe média.
O conceito de aluguel social, ou locação social, é uma política púbica que visa garantir o acesso à habitação, em geral, às camadas de menor poder aquisitivo, por meio de pagamento de taxa ou aluguel, sem que haja a transferência do bem locado ao beneficiário do programa (DIAS e SANTOS, 2021).
Analisando essa política pública quanto à orientação ao contexto, percebemos que ela se aplica perfeitamente ao atendimento ao direito à moradia, previsto constitucionalmente e em Pacto Internacional. As leis que tratam do aluguel social também buscam dar destinação a imóveis vagos e detidos pelo estado.
No processo de formulação de políticas públicas, o aluguel social passa a fazer parte da agenda decisional em um processo político. Ao se ponderar as alternativas e soluções possíveis (policy alternatives, conforme Kingdon), o aluguel social mostra-se mais eficaz em garantir moradia digna à população de baixa renda.
O reconhecimento do problema, considerando-se os estágios do ciclo de políticas públicas, passa por definir qual é o problema. Nesta política do aluguel social, além do problema do déficit habitacional e da dificuldade do financiamento pela população de baixa renda, há ainda o problema dos imóveis vagos e subutilizados, de cerca de 8 milhões de unidades (DIAS e SANTOS, 2021). O estágio de formulação da política e tomada de decisão é um ponto crucial nesta política, pois imóveis vagos precisam de adequação e reforma, além, muitas vezes, estarem localizados em áreas valorizadas pelo setor imobiliário.
A governança nesta política envolve diversos atores. Além dos entes governamentais e da classe política, que precisa aprovar a utilização de imóveis para o programa de aluguel social, há ainda a pressão de construtoras para utilização de imóveis para desapropriação e construção de imóveis para financiamento. Dias e Santos (2021) sugerem que esta política deve ser conduzida por organizações sociais.
3. Conclusão
Analisando as duas políticas públicas e, considerando que o direito à moradia não consiste necessariamente em um direito à casa própria, o aluguel social é o que está em consonância com o sentido genuíno deste direito, que é o de assegurar às pessoas uma habitação digna, adequada e segura. Desse modo, o aluguel social, longe de desvirtuar o direito à moradia, é uma medida que visa salvaguardá-lo (DIAS e SANTOS, 2021).
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O foco principal nos programas de fomento ao financiamento habitacional pode ser explicado pelo fato de haver, no Brasil, uma cultura de extrema valorização da propriedade privada. Carvalho (2010) destaca que este é um dos motivos pelos quais a política de habitação social brasileira priorizou a concessão da casa própria. Baltrus e Mourad, citado por Dias e Santos (2021), destacam que a propriedade privada de terras e imóveis “é tida como uma recompensa, uma vitória pessoal para os trabalhadores, ainda que o acesso à moradia signifique morar na periferia, longe das áreas centrais e das oportunidades, ou em habitações precárias.
Portanto, o direito constitucional à moradia pode ser alcançado de diversas formas. Mas o aluguel social, ou programa equivalente, parece estar mais alinhando a esse direito do que o fomento ao financiamento habitacional, que segue a lógica capitalista.
4. Referências
BRASIL. Exposição de Motivos º 33/2009 MF/MJ/MP/MMA/MCidades. Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Exm/EMI-33-MF-MJ-MP-MMA-Mcidades-09-Mpv-459.htm. Acesso em 05.ago.2022
BRASIL. Lei nº 11.977 de 07 de julho de 2009. Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Lei/L11977compilado.htm. Acesso em 05.ago.2022
CAPELLA, Ana Claudia N. (2006). Perspectivas teóricas sobre o processo de formulação de políticas públicas. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, ed. 62, 2006, p. 25-52
CARVALHO, Sonia Nahas de. Cidades e políticas de habitação. In: BAENINGER, Rosana (Org.). População e Cidades: subsídios para o planejamento e para as políticas sociais. Campinas: Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp; Brasília: UNFPA, 2010, pp. 137-151.
CYMBALISTA, Renato; MOREIRA, Tomás. Política Habitacional no Brasil: a história e os atores de uma narrativa incompleta. Participação Popular nas Políticas Públicas, p. 31, 2006.
DOS SANTOS DIAS, Daniella Maria; DOS SANTOS, Juliana Coelho. Um estudo acerca do aluguel social como instrumento de acesso ao direito à moradia digna diante do déficit de habitação no Brasil. Revista de Direito da Cidade, v. 13, n. 3, p. 1631-1659, 2021.
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[1] Na tradução do “International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights” para o francês foi utilizado o termo “logement”, que é mais próximo de alojamento em português, ao invés de “domicilie” ou “maison”, que poderiam exprimir maior sentido de permanência ou propriedade.
[2] A lei prevê, por exemplo, que estados e municípios devem doar terrenos para empreendimentos residenciais e realizar desoneração tributária
Antonio Maciel, CFP® é mestrando em Governança e Desenvolvimento (ENAP) e este texto foi escrito durante a disciplina de Análise de Políticas Públicas, em 2022. Possui a certificação CFP® e todas as certificações da ANBIMA. É contador e especialista em Planejamento Tributário (UFC) e em Mercado de Capitais (FGV/NYU). Atua há 16 anos no mercado financeiro. As opiniões aqui expressas não representam necessariamente as opiniões das instituições às quais é vinculado.