O Eito e o Engenho de Leon Hirszman e Graciliano Ramos
Ator Othon Bastos (1933-) como o fazendeiro Paulo Honório

O Eito e o Engenho de Leon Hirszman e Graciliano Ramos

A música, o figurino, a densidade dos personagens, a posição da câmera e o enredo, elementos que compõem a cinematografia do filme São Bernardo, de Leon Hirszman, foram comentados abaixo segundo nossa percepção.

O filme começa com “continuemos” de modo que fica evidente que a versão da história é a de Paulo Honório. O cenário fundamental é a Igreja: Primeiro, um capital, um investimento. Segundo, de onde se contempla uma catervagem de belezas. Terceiro, o local do decisivo diálogo da película.

Existem no filme dois pontos de visada. Primeiro, do personagem escritor que revive e reminiscencia na escritura e leitura do livro que expõe e analisa sua vida de fazendeiro lógico-matemático, mecanismo de relógio. Segundo, o olhar crítico, acusatório, contra a repressão e a exploração, olhares de Leon Hirszman e Graciliano Ramos, que autopsiam o cadáver da tristeza que causa para si e para os outros um explorador egoísta, opressor, imperador e que desconfia de todos.

Paulo Honório não merece música. Madalena recebe o gemido como tema sonoplástico. Em suma, a trilha compõe-se de cantorias melancólicas e lamentações gemidas, ritmos para o trabalho, como se a vida fosse um engenho ou um canto de carro de boi a embalar o passo arrastado e sofrido, massivamente angustiante, tudo um capital, um ferramental, um maquinal descaroçando todos os seres humanos, como se o mundo fosse um grande eito. Na sonoplastia, é crucial o alerta do apito do trem na cena em que o rio separa os personagens principais em diálogo, ligados por estreita passagem. O único pio da coruja que aparece, em aproximadamente 1h25min de filme, enche a cena em que Madalena, vestida de vermelho contrasta com o enquadramento do prédio de cor creme e janelas brancas.

Em momentos decisivos, a interiorização intelectual e emotiva de Madalena exponencia-se pelo vermelho nas vestes, transborda. Excede os domínios de Paulo e irrita-o. Um contínuo sangrar calado. Madalena fala pouco mas irrita muito, tem as emoções contidas, como uma representação do momento político de 1972, em que os dizeres poderiam ser comprometedores. Madalena, mais que no livro de Graciliano Ramos, reside na consciência hermética de Paulo e, embora tenhamos acesso ao seu fluxo de consciência, ou melhor, ao texto que escreveu para suas memórias, não confiamos na narrativa do proprietário de São Bernardo e em seus jogos de poder. Paulo permanece inacessível, comedido em evidenciar-se, parcial em sua narrativa. Podemos pensar que se camufla no ambiente através de cores claras, tons opacos, tudo da terra e, por isso, envolve como planta carnívora a esposa, o que remete à frustração do descontrole sobre a vida e a morte de Madalena, morte representativa de sua fuga do mundo comandado pelo latifundiário.

A terra de si mesmo permaneceu incultivada, assume o protagonista extensivista ao fim da história. A pequena confissão que faz é permeada de imagens da porção mais pobre da população e aqui encontramos a esposa de Marciano e a velha Margarida, como um reconhecimento de sua origem, das impossibilidades, e o fracasso vem à superfície. A tristeza maior talvez seria que Paulo não conseguiu se tornar o capital que ele mesmo gostaria de ser. A confissão de que se elevou mais que seus pares, revela uma superestima frustrada ao fim da história. Assim, Paulo Honório, reifica a escola, a igreja, Madalena, e a si mesmo, ele também seria uma substância a ser explorada, formatada, beneficiada, coada nas malhas finas e afiadas do poder e que contribuiria com seu quinhão no eito do mundo, nas engrenagens das relações sociais.

Em seu grito de fúria, Paulo Honório junta Padilha, Madalena e Dona Gloria. Sendo o foco no casal de fazendeiros, Padilha é eleito a dissonância, que diferente do livro pesa mais que Ribeiro no enredo do filme. Em vez de mostrar como Paulo é mais moderno que Ribeiro, mostra-se que Padilha é de alguma maneira mais interessante que Paulo Honório para Madalena, eis os pêndulos diegéticos.

Paulo marcha! Midas, mede sua propriedade com os passos. A câmera fica parada para não contabilizar mais que o senhor das terras. Agiganta-se na tela em dois momentos: quando compra a propriedade de Padilha e quando discursa sobre o que propiciam os oito metros elevados do chão reles. A câmera se movimenta em dois momentos únicos e precisos: passeando com dona Gloria, quando Madalena ainda dispunha de liberdade e quando sectariza cada um dos convivas no jantar central do filme conforme a opinião política. Assim, há elementos da narrativa que se movem: Paulo e a câmera, mas somente quando o primeiro permite.

Concluímos que o filme São Bernardo é formatado por e para Paulo Honório, todos o servem, nada lhe escapa, senhor das terras, do livro, do filme, da história, mas escravo de sua ambição.

São Bernardo, de Leon Hirszman, é um dos poucos filmes na história de todo o cinema mundial em que o filme é tão bom ou melhor que a obra escrita que o inspira, tamanha é a dificuldade já conhecida em nos livrarmos das sombras e amarras de uma obra de arte genial fruto da ação e força do espírito humano em sua potência máxima.

Um viva para Leon Hirszman e Graciliano Ramos!

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos