O espelho dos desejos
Aquele bendito espelho que você se encara todas as vezes nas quais deseja mudar o rumo da sua vida ou apenas olhar nos olhos de quem você foi há poucos instantes, ou por toda a vida, é a terapia com a qual é mais autêntico. Tudo funciona como uma prece.
Você está ali naquele ambiente tão conhecido e tantas vezes visitado, embora o eu de milissegundos atrás já tenha se arrependido de confessar o inconfessável, esvaindo a prece.
Inerte, o espelho te ouve, mantém-se impassível sem emitir qualquer veredicto, ainda que seja especialista na arte da escutatória, de confabular quando se tem horas de choro que não cabem mais no travesseiro.
E não há sequer uma caixinha de lenços estendida para guardá-las, sequer um braço no qual apoiar as lamúrias.
O divã freudiano passa a ser o seu local favorito para guardar todas as dores da infância, as frustrações da idade do sucesso. Aquela idade que Hollywood insiste em dizer que é plenitude, certeza e maturidade.
E logo para você que encarou a vida sempre dos bastidores, personagem coadjuvante da própria história. Enquanto o bendito espelho é o reflexo de todas as suas verdades inauditas, das vergonhas inconfessáveis.
O bendito espelho, sutilmente, expõe as marcas do tempo, as cicatrizes que você esconde sob o véu da resiliência, do “é melhor estar bem”, da paciência, de ser luz onde há tantas trevas.
A maquiagem tem prazo limitado. Um dia você a abandona, afinal, a dor também já venceu há tanto tempo que não vale a pena sobrecarregar o HD dos traumas. É era da renovação.
À porta, a mudança é tão sedutora quanto a vida que já se moldou ao seu jeito, como o travesseiro, a rotina, a cama, que se adaptou tão bem ao seu jeito de mergulhar nos braços de Morfeu.
E você se vê de novo diante do espelho com a mesma ladainha, ouvindo as mesmas palavras que dançam uma música sem fim em seus pensamentos.
Quem dera o seu bendito espelho fosse o Ojesed de Dumbledore e pudesse mergulhar em outra narrativa, em um momento diferente do atual, no qual as certezas seriam tão aconchegantes quanto o instante que se vive no agora.
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E ali a estrada, na verdade, permanecerá inalterada, uma vez que o que precisa mudar é a forma de ser, de se ver e de encarar com mais generosidade a figura diante do espelho, enquanto espera pelo fim da epifania.
A epifania se esvai, te deixa ali com o convite da mudança nas mãos, embora consciente de que você irá escolher a mesma roupa de viver, o mesmo caminho e a mesma receita de ser e fazer. Tanto que ela sabe: seu corpo está acostumado com os ingredientes que ficam ali na prateleira da vida.
Enquanto o espelho bendito apenas assiste, já que é, de fato, o figurinista na sua trajetória, mas torce para que você abra a porta e vá para o endereço impresso no convite das incertezas que te abrem para ser o protagonista da sua história.
Este texto faz parte de um projeto maior: o amor à palavra. Foi ela quem me salvou de uma infância introspectiva e silenciosa. Até ser uma jovem falante e ouvinte na mesma proporção, sempre embalada a café e companhia. Gostou do texto? Você tem permissão para compartilhar, enviar a um amigo, comentar e dizer se quem escreve está no caminho.
Tenho, como autora, na palavra: minha ferramenta e meu ar. Escrevo da mesma forma que respiro e vivo, profissionalmente, há mais 15 anos. Formada em Letras por amor à língua, o qual me aproximou do universo da comunicação e do Marketing. Amante da boa escrita, do saber, da leitura e da pesquisa.
Autora publicada em blogs: próprio e alheios, poeta premiada em antologia poética, prefaciadora em livro de poesia e de ficção; redatora de textos alheios e próprios; contista que capta o cotidiano e as minúcias despercebidas; revisora de textos técnicos, acadêmicos, líricos, poéticos, de periódicos, editoriais, livros, sites, blogs...