O espelho que reflete a realidade
Estou lendo um livro chamado “Falso Espelho”, da Jia Tolentino, lançado pela Todavia no Brasil. É uma coletânea de ensaios que falam sobre as redes sociais/internet e como elas estão moldando nossa percepção das coisas e de nós mesmos. E sim, eu sei, eu sei: esse assunto já tá chato — e olha que eu sequer assistir o tal "Dilema das Redes" —, mas a verdade é que só agora comecei a experienciar (ou perceber, de fato) os efeitos dessa mudança de percepção da realidade. E é engraçado falar disso tendo lido, também, a biografia do Steve Jobs. Nele, a maioria das pessoas entrevistadas falavam sobre o tal “campo de distorção da realidade do Steve Jobs”. Ironia ou não, ele é um dos responsáveis por ampliar esse campo pra todo mundo.
Mas, ok. Guardando a biografia do Steve Jobs na estante e pegando de volta o livro da Jia. Tem um trecho que me marcou muito: é quando ela cita uma teoria do sociólogo Erving Goffman (de 1959, veja bem) chamada "a representação do eu na vida cotidiana". Pra encurtar, ele argumenta que em "toda e qualquer interação humana, uma pessoa deve executar uma espécie de performance e criar uma impressão para o público".
Ele defende que essa encenação é dividida em dois tipos, que é a consciente (como numa entrevista de emprego ou num post no Linkedin) e a inconsciente — aqui vou usar as palavras da Jia —: "como no caso de um homem que passa a impressão correta sobretudo porque é um branco de classe média alta com um MBA" (complemento meu: às vezes, por aqui por essas bandas, nem precisa de um MBA).
E entre ler as linhas do livro e o levantar da cabeça pra pensar, comecei a assistir em flashback todas as situações que acho absurdas e que fui obrigado a viver, entre desenvolvimento de campanhas e discussões com inúmeros chefes, entre reuniões e apresentações com clientes: o que realmente importa nesse espetáculo é a percepção — o que é bem diferente da realidade.
O exemplo mais próximo e simples que trago pra quem vive na realidade de agência de publicidade, como eu, vem em forma de pergunta: quantas vezes nós ouvimos que um trabalho é "urgente" só pra acelerar a entrega e "impressionar" o cliente pela entrega ter sido rápida? Quantas vezes a rapidez foi o fator determinante e não a qualidade da entrega? E pior: quantas vezes a entrega mediana foi validada simplesmente pela encenação inconsciente de pessoas privilegiadas?
Percebo que o que vale não é o que foi discutido, é a impressão que isso vai causar. Uma reunião de 2h, em que todo mundo expõe seus problemas, não é tão importante quanto a foto no stories com uma frase motivacional. Trabalhe enquanto eles dormem. Frase motivacional, por exemplo, é a principal ferramenta de trabalho dos empreendedores de WhatsApp, que amam falar “vamos fazer”, mas nunca fazem. Nunca movem um dedo fora do aplicativo. Mas o pior mesmo é saber que eles acreditam piamente em cada palavrinha de cada frase que eles compartilham — ou, o que é pior ainda: suprem a necessidade do fazer apenas porque leram algo que gostariam de estar praticando e inconscientemente, acreditam que isso é o suficiente.
Mas é óbvio que aqui, seguindo a lógica de Goffman, eu também estou encenando. Afinal, eu poderia postar esse texto em qualquer lugar, inclusive em lugar algum, mas decidi postar aqui, no Linkedin, uma rede social “para o trabalho”. E por quê? Por que criticar o que eu mesmo faço em menor ou maior grau? E a resposta é tão complexa e paradoxal como o questionamento: porque eu quero fazer parte da realidade. E fazer parte da realidade, pra mim, é exibir o que eu realmente acredito, mesmo com receio de ser mal recebido. Porque é óbvio que é mais fácil apagar tudo e encenar mais conscientemente. Porque é óbvio que é mais fácil me esconder atrás de um portfólio bacana, de um cliente legal, cool. Mas eu não tô muito interessado em fazer o que é mais fácil. Eu quero escrever pra afetar o que toca a realidade. Eu quero escrever e criar pra transformar a realidade em algo melhor e não pra mascarar o que não existe. E pra isso, eu acho que precisa de coragem e vulnerabilidade pra arriscar sair do roteiro e improvisar um pouco. É só assim que as mudanças realmente podem acontecer.