O essencial papel da Tarifa Social no Saneamento

O essencial papel da Tarifa Social no Saneamento

Tive o privilégio de fazer o curso Regulação Tarifária para Saneamento com o professor Rui Cunha Marques, da Universidade de Lisboa. Compartilho breves reflexões derivadas dessa escuta aplicada à minha vivência.

Saneamento é um serviço essencial, pois ninguém vive sem água. Tarifa social é mecanismo necessário para viabilizar a adesão de uma parcela da comunidade a esse serviço.

Sem a tarifa social algumas famílias não terão condições de se manter conectadas de maneira formal, e ficarão à margem do sistema seja por meio de fraudes ou modelos de abastecimento precário, com risco à saúde.

O papel do regulador, poder público por definição, é garantir um sistema sustentável, compreendendo a visão financeira, ambiental e social.

  • Sustentabilidade Financeira: remunerar adequadamente os ativos, garantindo sua perpetuidade do ponto de vista econômico. Precisa investir e ter manutenção (não pode deixar estruturas serem sucateadas). Tem de gerar fluxo financeiro para honrar seus compromissos e fazer investimentos necessários para o nível adequado de serviço a ser prestado.
  • Sustentabilidade Ambiental: estamos falando de recursos naturais, o ciclo da água, do rio ao rio. Prestar serviços garantindo o devido uso dos recursos hídricos. Qualidade e compromisso com o meio ambiente (como eu retiro, como eu devolvo, como eu uso).
  • Sustentabilidade Social: garantir acesso à população (é um serviço essencial) observando capacidade de pagamento e equidade diante do custo vs uso. Nesse ponto vou dedicar uma maior reflexão.

O preço do serviço refletido na forma da tarifa é a peça chave nessa equação de sustentabilidade. A fórmula de precificar o consumo, bem como os incentivos/obrigações contratuais que o envolvem são o cerne da regulação. Trata-se de um jogo infinito, um serviço que precisa durar todo o ciclo de vida de uma cidade, portanto, pressupõe-se, para sempre. Cuidar do preço é garantir as condições adequadas para essa perpetuidade.

A dor e a delícia da tarifa de água

Por trás da tarifa estão escondidas as escolhas da política pública de saneamento. Cabe sempre lembrar que toda escolha envolve alguma renúncia.

Usualmente vemos menções de tarifa ser cara (uma percepção de valor). A vontade escondida nesse sentimento seria o desejo por um preço mais baixo na conta de água. A renúncia por trás dessa eventual escolha seria do nível de serviço.

Dizendo de uma maneira mais direta: escolha o nível de serviço que quer e terá a tarifa necessária para ter esse modelo de negócios sustentável. O que se escolhe como nível de serviço vai desde ter água sem intermitência, ter esgoto tratado até todo o aparato de manutenção e atendimento de um serviço de prestação continuada. Tudo possuí custos e tem reflexos no preço (tarifa).

Por ser um monopólio o preço é definido pelo regulador, com base em premissas contratuais. Daí o papel do regulador em direcionar as escolhas (obrigações, incentivos) e garantir a devida sustentabilidade do contrato (uma combinação de prazo e preço).

No aspecto social a preocupação do regulador deveria envolver a capacidade de pagamento da população. Quanto da renda poderia ser destinado ao valor da conta de água (e esgoto)? Por ser um serviço essencial (à vida) ninguém deveria ser excluído por não ter capacidade de pagar, e entra em cena o papel da tarifa social. Essencial para garantir que o acesso seja possível a todos.

Tarifa social é um subsídio da comunidade (toda a cidade) para as famílias mais carentes na medida que o mecanismo é parte do balanço econômico do contrato. Em um modelo limite, se fosse disponibilizada uma tarifa social (valor mais baixo da conta de água) a todos, dever-se-ia ter uma outorga para a empresa prestadora do serviço (impostos da cidade subsidiariam o serviço). Nesse limite extremo hipotético a escolha se daria entre políticas públicas: financiar o saneamento ao invés de educação, segurança ou outras agendas.

O saneamento pode ser auto financiado. Ser um serviço sustentável nas suas 3 esferas, financeira, ambiental e social. Uma indústria da cidade geradora de empregos e prestando uma atividade de valor para comunidade. Uma empresa que deveria ter uma visão de longo prazo, desenvolver o lucro bom (daí a importância de pensar na reputação, e todo o debate que envolve a ideia do NPS – clique aqui e confira mais).

Para tanto, o contrato e sua regulação são primordiais. Contratos que se adaptam à demanda social e ambiental e reflitam em seu nível de serviço, que sejam indutores de investimento, balanceados economicamente.  Não menos importante, que não excluam ninguém dessa prestação, e nesse sentido, o uso da tarifa social é um mecanismo importante.

Círculo virtuoso ou vicioso: escolhas de comunidade

Cabe entender o círculo vicioso de escolhas contratuais que não viabilizem modelo tarifário inclusivo. Imagine um município que não tenha modelo de tarifa social. Todas as famílias pagam de acordo com sua faixa de consumo. O comprometimento da renda de cada família com a conta de água irá variar de acordo com o consumo bem como com seu nível de rendimento. No limite extremo, o serviço para a família de baixa renda será inacessível, se formará uma barreira para se pagar por essa conta de água ao final do mês.

Clientes inadimplentes carregam o custo financeiro do sistema, gasta-se mais com gestão de fraude, com fiscalização e combate às “perdas comerciais”. No limite, todo esse gasto é revertido em tarifa (se não no curto prazo, tais questões são precificadas em momentos de renovação contratual) para garantir a sustentabilidade financeira do contrato. O serviço fica “mais caro” para todos, pressiona-se ainda mais a conta familiar. Círculo vicioso que prejudica a todos.

Pensemos em um modelo virtuoso. Tarifas justas e acessíveis promovem acesso a todos, gasta-se menos com gestão de inadimplência, maior eficiência da distribuição (menor nível de fraudes) e perdas comerciais.

Cenários bem simplificados, mas que inspiram o valor do acesso. Valorizam a importância de um bom modelo regulatório da tarifa.

Essa reflexão é muito importante para novos contratos. Momentos de renovação seja com empresas públicas ou privadas. Para gestões de contratos existentes em curso, vale a preocupação e as oportunidades de negociação, reequilíbrios pactuados. Regular envolve modelar a cultura, entender a percepção da sociedade, garantir a sustentabilidade do serviço. Como Rui bem colocou: não deveria existir regulador muito amado, nem muito odiado. Qualquer extremo revela falha de uma posição em torno desse balanço.

Inovações regulatórias: as possibilidades do universo da criatividade aplicada

Diante desse quadro de reflexão sempre gosto de aplicar o “e se” da criatividade. A vantagem da atuação do setor privado em relação ao público tem uma diferença existencial: poder fazer tudo aquilo que não é proibido ao invés de apenas poder fazer o que é permitido.

Mais vale um cliente atendido e com acesso do que uma fraude. Existe toda uma avenida de possibilidades de eliminar barreiras e criar acesso. A tarifa social é essencial, em sua ausência ou limitação excessiva poderia ser foco de atuação discricionária ou uma maior indução.

A ideia de criar modelos pré-pagos bem como visão de consumo diário permitirá modelos mais justos e/ou percebidos com maior justiça pelos clientes. Reduzir desconfiança na relação entre cliente e concessionária. Tecnologias são possíveis e cada vez mais disponíveis. Forma de adoção em linha com sustentabilidade dos contratos o desafio que se impõe.

Dois exemplos de caminhos de romper círculos viciosos. Formas de atuação possíveis para criar maior reputação em torno da prestação do serviço e seu prestador. O Saneamento é um setor que durante anos atuou de modo “afastado” da visão clientes. A transformação é uma jornada longa, que precisa começar em pequenas atitudes e ser reforçada diariamente. Valorizar o serviço é criar confiança nessa relação. Envolve assumir riscos e sacrifícios com o olhar do relacionamento infinito que se tem com a comunidade. 

Elias Haddad

Sócio proprietário da H&A Serviços de Engenharia

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Eder Sá Alves Campos o que é NPS? O clique aqui não esta habilitado

Elias Haddad

Sócio proprietário da H&A Serviços de Engenharia

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Tem muita conversa sobre o tema. Que bom que vc esta dedicando o pensar sobre o assunto. O Vida no Vale já tratava de modelos tarifários diferentes desta grande maioria de tarifa em blocos crescentes. Abraço e feliz ano novo.

Vitor Queiroz

Presidente Conselho HIDROBR

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Boa reflexão Eder Sá Alves Campos! Tarifa social é essencial para universalização. Como você disse o saneamento pode se auto sustentar, mas quais as escalas adequadas de prestação para garantia de geração de receita e acessibilidade, especialmente considerando que grande parte do déficit (alto volume de investimentos necessários) está em áreas de menor renda? Pensar em como a tecnologia pode auxiliar no desenvolvimento e aprimoramento de modelos tarifários que possam ser mais aderentes a capacidade de pagamento é importante na agenda.

Jorge Carneiro

Head de Inovação | Diretor de Novos Negócios | Estratégia e Planejamento | Inteligência Operacional e de Mercado | Ambidestro em Gestão e Inovação | Nexialista | Transformação Digital

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Eder, muito bacana a sua reflexão! Fica aqui minha contribuição com uma pergunta e um comentário. Como combinar a aplicação de equidade por meio da tarifa social com a necessidade de sustentação financeira de um sistema se a garantia da equidade representará em muitos casos a aplicação de tarifa social em no mínimo 50% da base de clientes ativos? Para mim os contratos de concessão deveriam passar por uma revisão tarifária que possa garantir a aplicação da equidade de fato, sem comprometer a sustentabilidade, eliminando alguns vícios paradoxais travestidos de equidade. Ex: minha casa minha vida. Sabemos que este e um dos critérios usados para concessão de tarifa social em muitos lugares. O Cidadão já ganhou uma casa de graça, não vai pagar aluguel! No mínimo teria que pagar uma tarifa de água descente, cuidando com o consumo para não exceder a faixa mínima. Mas não, além da casa ele quer que o serviço de abastecimento e esgotamento também sejam gratuitos. Não há tarifa social que dê jeito!!!!

Kelli Cristina Vitorino Nascimento

Planejamento e Administração Companhia de Saneamento do Paraná - Sanepar

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Que conteúdo rico...troquei as lentes não só com relação a tarifa social mas com a tarifa em sí.

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