O HELICÓPTERO MONOTURBINA É MENOS SEGURO?
A resposta para essa pergunta é até simples. Graças ao avanço da tecnologia, a diferença entre os helicópteros biturbina e monoturbina está mais na elevação da complexidade operacional e nos custos diretos de manutenção do que na segurança de voo, que é pouca percebida nos dois tipos de motorização.
O motor aeronáutico é um dos componentes que mais evoluiu na aviação, tanto em termos de performance, como na confiabilidade operacional.
Mas para suportar uma resposta adequada à pergunta acima é necessário rever um pouco a história da aviação comercial, que acumula todos os anos milhões de horas de voo com ganhos contínuos e expressivos nas suas taxas de segurança.
Lembro-me bem quando iniciei minha trajetória na aviação e ingressei na Varig, no início dos anos 70, a legislação do DAC (hoje ANAC) não permitia voos comerciais na Amazônia com aviões bimotores, e os passageiros que voavam na rota para Manaus, também se sentiam muito mais seguros ao voar em aviões multimotores. Naquela época a Varig operava a rota Manaus com os seus Boeings 727 (trimotor) ou também com os Electras (L188 - quadrimotor), que voavam para Manaus via Santarém.
Nos voos internacionais, os quadrimotores Boeing 707 e seus similares dominavam as rotas transoceânicas. Posteriormente, chegaram os trimotores liderados pelo McDonnell Douglas DC-10 e o quadrimotor Boeing 747 que, gradativamente, substituíram o Boeing 707 e seus similares que caminhavam para a aposentadoria.
Nos anos 80 chegaram os “wide-body” bimotores, fabricados pela Boeing e Airbus que até hoje dominam o mercado da aviação comercial. No início esses aviões bimotores não podiam fazer as rotas transoceânicas e foram mais concentrados nas rotas domésticas ou nas rotas internacionais de pequeno alcance. Mas, posteriormente, graças à evolução da confiabilidade dos motores e o advento do ETOPS (1) passaram a fazer também as rotas transoceânicas.
(1) Nota: A certificação ETOPS (Extended Twin Operations – Extended Operations) refere-se uma série de exigências e controles redundantes para uma operação de longo alcance, de forma que uma aeronave bimotora possa voar com um dos motores inoperativos até o alcance de um aeroporto mais próximo. Inicialmente esse intervalo do voo monomotor era de 60 minutos, mas com a evolução da confiabilidade dos motores e novos aviões projetados, a certificação ETOPS também evoluiu e hoje esses intervalos já estão acima de 300 minutos de voo, de tal forma que os modernos bimotores comerciais já cobrem todo o globo terrestre.
Além da crescente evolução e confiabilidade dos motores, o fator econômico foi determinante nesse processo de transição de multimotores para bimotores, pois existe uma redução expressiva no custo de operação das aeronaves com a redução da quantidade de motores, visto que os custos de manutenção dos motores aeronáuticos são bastante elevados. Isso pode ser notado hoje com a quantidade de empresas aéreas que estão parando os seus multimotores (Boeing 747, A340, A380, etc.) e passando a operar somente os bimotores. A tendência é que a aviação comercial passe a operar somente aviões bimotores.
Os motores aeronáuticos de combustão interna dividem-se em dois grupos: os motores de ciclo alternativo (motores a pistão) e os motores de ciclo contínuo (os motores a turbina). Os motores a turbina se dividem basicamente em 3 categorias: jato, turboélice e turboeixo.
Existe um terceiro grupo de motores em desenvolvimento, os motores elétricos, que logo chegará na aviação com foco nos motores turboélice e turboeixo. Mas esse é um assunto para um próximo artigo.
Dentre essas duas famílias de motores de combustão interna, os motores a turbina foram os que mais evoluíram devido a própria característica do motor que tem maior durabilidade e melhor desempenho. Os investimentos efetuados pelos fabricantes na contínua evolução nos seus desenhos e o aprimoramento do motor turbofan (evolução do motor a jato) resultaram em ganhos expressivos no fator potência e na redução do consumo de combustível, em adição à expressiva elevação nos níveis confiabilidade, gerando grandes ganhos para a aviação comercial.
A chegada de novas tecnologias, tanto na eletrônica de controle como no desenvolvimento em novas ligas de materiais mais resistentes, impulsionou ainda mais o desenvolvimento dos motores a turbinas, que também se beneficiaram com a evolução dos óleos lubrificantes que introduziram os óleos sintéticos de baixa carbonização.
A evolução na eletrônica de controle também contribuiu muito para uma operação mais precisa e sistemas de monitoramento muito mais eficazes, elevando a confiabilidade e a performance dos motores, fazendo com que os intervalos de manutenção pudessem ser estendidos. Hoje, os grandes motores da aviação comercial são monitorados continuamente e praticamente não têm mais definidos os intervalos de manutenção ou tem a primeira abertura para a inspeção da seção quente na faixa de 18.000 horas de voo.
Os motores turboeixo ou turboélice também evoluíram da mesma forma e o índice de confiabilidade é tão alto que hoje não se mede mais a taxa de IFSD (2) numa base de 100.000 horas de voo e sim numa base de milhão de horas de voo.
(2) Nota: IFSD (In-Flight Shut Down) - refere-se ao desligamento não intencional do motor (uncommanded) em pleno voo, devido apagamento (flameout), falha interna ou influência externa.
A aeronave turboélice monomotora Cessna Caravan é um bom exemplo para demonstrar que os monomotores de hoje são muito confiáveis. Operando com os motores PT6A fabricados pela Pratt & Whiney Canadá, o Caravan apresenta uma performance invejável na aviação geral e na regional de pequeno porte. Desde a sua fabricação já acumulou mais de 20.000.000 de horas de voo, e apresenta índices altíssimos de segurança de voo, com taxas de IFSD por milhão de horas de voo próxima do zero.
Falando mais especificamente dos motores turboeixo que equipam os helicópteros, podemos também afirmar que os ganhos foram imensos, pois conforme comentado abaixo, a possibilidade de um evento IFSD por milhão de horas de voo também está próxima do zero.
Como exemplo cito o helicóptero AS350B3e, fabricado pela Airbus Helicopters, que opera nos 5 continentes, engajados nas mais diversas e desafiadoras missões. O AS350B3e está equipado com um motor Safran Arriel 2D que tem um controle triplo, composto pela unidade FADEC (Full Authority Digital Engine Control) de canal duplo e um terceiro canal de backup, independente e automático, para a operação do motor sem preocupações.
A performance dos motores Safran Arriel 2D é invejável, conforme demonstrado pelos seus índices de IFSD (anexo), pois num volume total de mais de 1.400.000 horas de voo nos últimos 5 anos, em operações das mais diversificadas pelo mundo, não teve nenhum caso de IFSD. Então, podemos inferir que estatisticamente a possibilidade de uma falha dessa natureza, por 100.000 horas de voo, é próxima do zero e, tendo como base um milhão de horas de voo, o índice também se aproxima do zero.
Corroborando com os índices acima também posso citar como exemplo a Helisul Táxi Aereo, maior operadora de helicópteros monoturbina do Brasil e que opera mais de 40 helicópteros, incluindo o modelo AS350B3e, nas regiões mais remotas do Brasil ou que demandem grande performance. Nos últimos 5 anos em que pesquisei, a Helisul também apresenta índices invejáveis, pois, tendo voado mais de 100.000 horas com seus monomotores, não teve nenhum caso de IFSD, ou seja, o seu índice de falhas de motores, com perda parcial ou total de potência, foi simplesmente zero.
Assim, na minha opinião, a principal diferença entre os helicópteros biturbina e monoturbina está mais na elevação da complexidade operacional e nos custos diretos de manutenção, que são muito mais expressivos nos bimotores, pois a diferença no quesito segurança de voo é pouco percebida.
Consequentemente, pode-se afirmar que os dois tipos de motorização nos helicópteros permitem uma operação muito segura.
Naturalmente, apesar da alta confiabilidade desenvolvida nos motores aeronáuticos, resultantes de anos de investimentos em tecnologia, é essencial o rigoroso cumprimento dos programas de manutenção previstos pelos fabricantes, desde as rotinas básicas como as trocas dos lubrificantes e filtros a cada intervalo de horas de voo, até as manutenções mais profundas em conformidade com os intervalos de tempo definidos pelos fabricantes dos motores. A expertise dos pilotos envolvidos na operação, a qualidade do combustível utilizado, assim como a utilização de filtros especiais nas entradas de ar dos motores quando operando em ambientes mais agressivos, também contribuem expressivamente para a elevação da segurança de voo.
Assim, antes de se questionar o fator segurança de voo de um helicóptero monomotor em comparação com um helicóptero bimotor, o mais correto seria se questionar os padrões de manutenção e de operação praticados pelo operador do helicóptero, pois, certamente, esse é o fator que fará a diferença em complemento aos rigorosos sistemas de controles implementados pelos fabricantes dos motores.
Grande abraço e voe com segurança.
Irineu Bueno
Sócio e Diretor Financeiro na DaniLu Digital
2 aIrineu, fiz uma simples busca no Google para entender mais sobre a diferença entre helicópteros mono ou bimotores, e caí nesta verdadeira aula! Parabéns pelo artigo. Eu, como entusiasta da aviação, aprendi muito!
Diretor na EFAI - Escola de Pilotagem Ltda
3 aGostei, Irineu! Parabéns pelo artigo! Se o assunto é confiabilidade, estamos na mesma frequência. Se, por outro lado e como você mesmo menciona, vamos entrar em outra área que envolve treinamento dos pilotos, se vamos aceitar combustível de origem duvidosa, Manutenção “mais ou menos” e não vamos cuidar o ar que o motor “respira”, saímos do campo da confiabilidade e passamos para o da Segurança de Voo. Neste caso, podemos vir a ter problemas independente do número de motores.
Airline Transport Pilot Helicopter, AW139, H155, B429, AS365N3, SK76, B412, ICAO, PBN, INVH, Ferry Flight
3 aSr. Irineu, existem duas óticas, e eu quero ressaltar uma delas, em especial a segunda. A primeira é a de quem está assentado confortavelmente em uma cadeira de escritório em frente ao seu laptop fazendo cálculos para chegar a conclusão de que a probabilidade de flame-out em motores modernos é "próxima de zero". A segunda é a de quem está cruzando a serra, por exemplo nas proximidades de Caraguatatuba-SP, a 8.000Ft e à noite ou dentro de uma densa camada que não se sabe a qual altura está do solo, pedindo a DEUS para que seu único motor não esteja dentro das "próximo de zero" chances de apagamento, caso contrário fatalmente irá virar estatística. Como o sr mesmo disse, ainda precisam ser contabilizados fatores como manutenção adequada, qualidade do combustivel, dentre outras, que sabemos que muitas das vezes não são as melhores práticas as adotadas pelos operadores. Portanto, como profissional entre o painel e a cadeira, voando helicópteros multimotores desde 2007, prefiro acreditar no bom e velho ditado quem diz "quem tem dois, tem um. Quem tem um, não tem nenhum". Grande abraço!
Via Táxi Aéreo
3 aExcelente texto... obrigado por compartilhar.
Helicopter Senior Technician H160 & H125
3 aExcelente artigo Irineu, Parabéns!