O incidente de desconsideração da personalidade jurídica da Lei nº 13.105/2015 (“Novo CPC”) e as execuções fiscais.
Atualmente, no âmbito das execuções fiscais, tem-se pacífico na jurisprudência que, uma vez não encontrada a pessoa jurídica, reconhece-se sua dissolução irregular por presunção iuris tantum, fato este considerado infração à lei que autoriza a aplicação do artigo 135 do Código Tributário Nacional para fins de responsabilização pessoal do sócio-gerente da sociedade à época da suposta dissolução irregular[1].
Na prática, a presunção da dissolução regular se dá com a simples impossibilidade de citação da pessoa jurídica no endereço indicado pela Fazenda Pública e o deferimento da inclusão do sócio-gerente no polo passivo da execução fiscal decorre de mero requerimento da exequente, sem qualquer possibilidade de contraditório.
Por outro lado, uma vez autorizada a responsabilização pessoal do sócio-gerente por dissolução irregular da sociedade empresária, o Judiciário tem entendido pela impossibilidade da demonstração da inexistência de dissolução irregular ou de qualquer prática de ato que resultasse em infração à lei por meio da exceção de pré-executividade.
Com isso, a defesa do sócio-gerente quanto à sua responsabilidade somente tem lugar em embargos à execução fiscal, o que, porém, exige a garantia prévia da dívida, resultando muitas vezes em constrangimento patrimonial ilegal da pessoa física[2].
Nesse cenário, o sócio-gerente que nunca participou do processo administrativo de imposição tributária, nem foi incluído na Certidão de Dívida Ativa, repentinamente se vê obrigado a responder pelos débitos em execução e a se submeter à constrição de seu patrimônio pessoal, no mais das vezes por meio inclusive de penhoras automáticas em contas bancárias.
Essa situação não se compagina com o Estado Democrático de Direito e viola garantias fundamentais dos indivíduos, mormente aquelas decorrentes do devido processo legal.
No entanto, entrará em vigor a partir do ano que vem a Lei nº 13.105/2015, atualmente apelidado de Novo Código de Processo Civil, com espírito muito mais moderno e comprometido com os direitos e garantias protegidos pela Constituição Federal do que a lei de execuções fiscais, que data dos últimos anos da nossa ditadura militar.
Nosso futuro diploma processual civil, atento aos direitos e garantias individuais encartados na Constituição Federal, tida por muitos como a Constituição Cidadã, inovou o ordenamento jurídico vigente ao instituir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Prevê a Lei nº 13.105/2015, em seus artigos 133 a 137, que para ser deferida a desconsideração da personalidade jurídica deverá ser instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica a pedido da parte ou do Ministério Público, suspendendo-se o processo principal e permitindo ao sócio da pessoa jurídica em questão exercer o devido contraditório.
Vale aqui um parêntese para esclarecer que, em que pese o artigo 135 do Código Tributário Nacional estabelecer a responsabilidade pessoal do sócio-gerente, aparentemente uma espécie de responsabilidade tributária por substituição, o que em tese poderia afastar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, neste particular me filio à parcela da doutrina segundo a qual o referido artigo nada mais é do que hipótese de verdadeira desconsideração da personalidade jurídica ex lege[3].
Reforça essa ideia, no sentido de que realmente se trata de aplicação reduzida da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (ou disregard doctrine), o fato de que os requisitos eleitos pelo legislador para aplicação do artigo 135 do Código Tributário Nacional são os mesmos utilizados pela teoria da despersonalização no Brasil. Nesse sentido, confira-se as disposições do artigo 34 da Lei nº 12.529/2011 (“Lei Antitruste”):
“Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.”
O Superior Tribunal de Justiça também já se pronunciou em algumas situações sobre o tema, no julgamento dos Recursos Especiais nº 436.012 e 787.457, concluindo também que o artigo 135 do Código Tributário Nacional se trata de regra de desconsideração da personalidade jurídica.
Com essa premissa fixada, de que o artigo 135 do Código Tributário Nacional visa alcançar os sócios e diretores da pessoa jurídica executada por meio de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não nos parece existir qualquer antinomia entre os dispositivos legais do Código Tributário Nacional e do “Novo CPC” quanto à sistemática do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Resta-nos assim investigar se o regime previsto no artigo 133 do “Novo CPC” é aplicável ao regime da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais) frente os critérios temporais e da especialidade.
A própria Lei nº 6.830/80, em seu artigo 1º, estabelece a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil à execução judicial para cobrança da Dívida Ativa. Portanto, as normas do Código de Processo Civil são subsidiariamente aplicáveis às execuções fiscais, ou seja, quando tais normas tratem de matéria não regulada especificamente pela Lei nº 6.830/80 e nem seja com ela incompatível.
Analisando-se a Lei nº 6.830/80 não se encontra nenhuma regulamentação a respeito da desconsideração da personalidade jurídica e do redirecionamento da execução em face dos sócios. A Lei é totalmente omissa sobre o tema, em que pese a jurisprudência admitir sem maiores problemas tal medida.
Quanto à incompatibilidade, merece notar que o artigo 134 do “Novo CPC” expressamente se diz ser aplicável às execuções fundadas em título extrajudicial, que é justamente o caso das execuções fiscais, as quais se fundam na Certidão de Dívida Ativa.
Quanto ao aspecto temporal, tratando-se o “Novo CPC” de lei posterior e inexistindo norma especial conflitante, a nosso ver não há impedimentos para a plena aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica às execuções fiscais.
Por fim, tendo em vista as conclusões de que o artigo 135 do Código Tributário Nacional encampa a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, bem como que a Lei nº 6.830/80 claramente possui lacunas a respeito dos procedimentos para a responsabilização dos sócios da pessoa jurídica executada, não só entendemos ser devida a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica às execuções fiscais, como também salutar, na medida em que atende de melhor forma as garantias individuais constitucionais, principalmente o direito ao devido processo legal.
[1] Precedentes: AResp nº 608701; Resp nº 1497599; Resp nº 1217467; AREsp nº 1.497.599; AgRg nº 1.244.276; AREsp nº 1.483.228.
[2] Precedentes: AgRg nº 561854; Resp nº 474105.
[3] Nesse sentido Aldemario Araújo Castro In: TÔRRES, Heleno Taveira e QUEIROZ, Mary Elbe (coord.). Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária, São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 487-491.