O nascimento de um cérebro

O nascimento de um cérebro

Na obra de Dehaene (2020) (D) sobre como aprendemos (melhor que as máquinas), vamos trabalhar o fenômeno do nascimento de um cérebro. Cita Bachelard: “A criança é nascida com um cérebro inacabado e não, como o postulado da velha pedagogia afirmava, com um cérebro desocupado”. Franklin: “Gênio sem educação é como prata na mina” (D:69). O fato de que bebês exibam de imediato conhecimento sofisticado de objetos, números, gente e língua refuta a hipótese de que seus cérebros seriam tabula rasa, esponjas que absorvem o que o ambiente impõe. Uma predição simples emerge: se pudéssemos dissecar o cérebro de um recém-nascido, observaríamos, no nascimento e mesmo antes, estruturas neuronais bem organizadas correspondendo a cada um dos domínios maiores de conhecimento. Esta ideia já há muito contestada. Há cerca de 20 anos atrás, o cérebro infante era incógnito. Imagem cerebral estava sendo inventada, predominando o empirismo, a ideia de que cérebro nasce vazio, influenciado apenas pelo ambiente. Chegando ressonâncias mais agudas (MRI) foi possível visualizar a organização inicial do cérebro e descobrir que virtualmente todos os circuitos do cérebro adulto já estão presentes no recém nascido. 



I. O CÉREBRO INFANTE É BEM ORGANIZADO



A esposa, Ghislaine Dehaene-Lambertz, D e o colega Hertz-Panier, foram os primeiros a usar MRI funcional em bebês de dois meses (Dehaene-Lambertz et alii, 2006; 2002). Aproveitaram muito as experiências anteriores de pediatras; 15 anos de experiência clínica convenceu que MRI não prejudica, podendo ser aplicado em qualquer idade, também em prematuros. No entanto, os profissionais usaram a tecnologia só para diagnóstico, para detectar lesões, não em bebês normais para ver os circuitos estimulados. Para chegar até aí foi preciso superar muitos óbices, um capacete com menos ruído para proteger o bebê; mantiveram a eles tranquilos embalando no berço para adaptar o equipamento; foi dado apoio afetivo para não estranharem o ambiente, sempre de olho nele durante o exame. Ao fim, os esforços foram bem recompensados, focando linguagem, pois sabia-se que bebês começavam a aprender bem rápido no curso do primeiro ano. Assim foi observado: ouvindo sentenças em sua língua nativa, ativava as mesmas regiões do cérebro adulto. Quando ouvimos sentenças, a primeira região do córtex a se ativar é a área auditiva primordial – o ponto de entrada para toda informação auditiva no cérebro. Esta área dispara no cérebro infante tão logo a sentença começa, indicando está já organizada, contradizendo o empirismo (Elman et alii, 1996. Quartz & Sejnowski, 1997). Sabemos agora que, desde o nascimento, ouvir ativa áreas auditivas, ver ativa áreas visuais e toque ativa áreas táteis, sem terem aprendido isso. Esta subdivisão do córtex em territórios distintos para cada sentido é dada pelos genes; todos os mamíferos possuem e sua origem se perde na arborescência da evolução (Krubitzer, 2007). 



II. VIAS RÁPIDAS DA LINGUAGEM



Atividade flui em todas as áreas cerebrais em ordem específica, porquanto estão conectadas entre si. Nos adultos, estamos iniciando a entender quais rotas neuronais interconectam as regiões da linguagem. Em especial, neurologistas descobriram que um cabo vasto feito de milhões de fibras nervosas, chamado “fascículo arqueado”, conecta as áreas temporais e parietais de áreas do cérebro com áreas frontais, notavelmente a famosa área de Broca. Este feixe de conexões é um arcador da evolução da linguagem. É mais vasto no hemisfério esquerdo, que, em 96% dos destros, é devotado à linguagem. Sua assimetria é específica aos humanos e não se observa em outros primatas, ne mesmo nos primos mais próximos, os chimpanzés. Esta característica anatômica não é resultado da aprendizagem: está lá desde o início. Quando examinamos as conexões do cérebro infantil, descobrimos que não só o fascículo arqueado, mas todos os feixes maiores de fibra que conectam áreas corticais e subcorticais estão no lugar no nascimento (Dehaene-Lambertz & Spelke, 2015. Dubois et alii, 2015). Estas “vias rápidas do cérebro” são construídas durante o terceiro trimestre de gravidez. Na construção do córtex, cada neurônio excitatório em crescimento envia seu axônio para explorar as regiões à volta, por vezes alguns centímetros distantes, como Colombo do cérebro. Esta exploração é guiada e canalizada por mensagens químicas, moléculas cujas concentrações variam de região a região e que agem como etiquetas espaciais. A cabeça do axônio literalmente fareja a rota química deixada pelo genes e deduz a direção na qual deve avançar. Sem qualquer intervenção de fora, o cérebro se auto-organiza numa rede de conexões cruzadas, muitas das quais são específicas da espécie. A rede pode ser sempre refinada pela aprendizagem – mas o scaffolding inicial é inato desde o útero. 

Não é surpresa. Há 20 anos, muitos pesquisadores consideravam extremamente improvável que o cérebro fosse algo diverso de uma massa desorganizada de conexões aleatórias (Quartz & Sejnowski, 1997). Não se podia imaginar que nosso DNA, que contém apenas número limitado de genes, poderia hospedar modelo detalhado de circuitos altamente especializados que embasa visão, linguagem e habilidades motoras. Mas isto é raciocínio falho. Nosso genoma contém todos os detalhes do corpo: sabe como fazer um coração com 4 câmaras; rotineiramente constrói dois olhos, 24 vértebras, o ouvido interno e seus canais perpendiculares, dez dedos e suas falanges, tudo com extrema reprodutibilidade...; então por que nosso cérebro com sub-regiões internas múltiplas? Avanços recentes na imagem biológica revelaram como, já nos primeiros dois meses de gravidez, quando os dedos da mão ainda são apenas brotos, já estão invadidos de três nervos, o radial, o mediano, o ulnal, cada uma objetivando pontos finais específicos (Belle et alii, 2017). A mesma mecânica de alta precisão poderia existir no cérebro: assim como o broto da mão se bifurca em cinco dedos, o córtex se subdivide em várias regiões altamente especializadas separadas por fronteiras agudas (Amunts et alii, 2010. Amunts & Zilles, 2015 Brodmann, 1909). Em 28 semanas da gestação, o cérebro começa a se desdobrar e os principais sulcos que caracterizam o cérebro humano aparecem. Em fetos de 24 semanas, todas as dobras maiores do córtex estão bem formadas, e a assimetria característica do região temporal, que abriga as áreas da linguagem, podem já ser vistas (Dubois et alii, 2009. Leroy et alii, 2015). 



III. AUTO-ORGANIZAÇÃO DO CÓRTEX



Na gravidez, enquanto as conexões corticais se desenvolvem, assim também as dobras correspondentes corticais. No segundo trimestre, o córtex é inicialmente mole; então, um primeiro conjunto de cumes emerge, reminiscente do cérebro símio; e finalmente, começamos a ver as dobras secundárias e terciárias do cérebro humano – dobras sobre dobras sobre dobras. Sua epigênese gradualmente se torna mais em ais dependente da atividade do sistema nervoso. Dependendo do feedback que o cérebro recebe dos sentidos, alguns circuitos se estabilizam, enquanto outros, desnecessários, degeneram. Assim, do dobramento do córtex motor termina sendo levemente diferente em canhotos e destros. De modo bem interessante, canhotos que foram forçados a escrever com a mão direita enquanto crianças mostram um tipo de compromisso: a forma do córtex motor é típica do canhoto, mas seu tamanho exibe assimetria esquerda-direita de um pessoa destra (Sun et alii, 2012). Dobras corticais no cérebro do feto deve sua formação espontânea ao processo de auto-organização bioquímica que depende dos genes e do ambiente químico das células, exigindo extremamente pouca informação genética e nenhuma aprendizagem (Lefevre & Mangin, 2010). Auto-organização é dinâmica ubíqua no desenvolvimento cerebral: o córtex está cheio de colunas, listras e fronteiras agudas. Segregação espacial parece ser um dos mecanismos pelos quais os genes montam módulos neuronais especializados para processar tipos diversos de informação. O córtex visual é coberto com bandas alternada que processam informação dos olhos esquerdo e direito – são chamados “colunas de dominância ocular” e emergem espontaneamente no cérebro em desenvolvimento, usando a informação surgindo da atividade intrínseca na retina. Mas mecanismos similares de auto-organização podem correr em nível mais alto, não necessariamente para plasmar a superfície do córtex, mas para cobrir o espaço abstrato. Um dos exemplos mais espetaculares é a existência de células grade – neurônios que codificam a localização de um rato pavimentando o espaço com triângulos de grade e hexágonos. Tais células se localizam em região específica do cérebro do rato chamada de “córtex entorrinal” – Edvard e May-Britt Moser receberam o Nobel em 2014 por descobrirem essas propriedades geométricas. Por que usar triângulos ou hexágonos? Desde Descartes, matemáticos e cartógrafos se fiam em dois eixos perpendiculares (coordenadas cartesianas) – por que o rato prefere um conjunto de triângulos e hexágonos? Provavelmente porque os neurônios grade se auto-organizam no desenvolvimento – e na natureza, tal auto-organização frequentemente produz hexágonos, desde a pele da girafa até favos ou colunas vulcânicas. Físicos agora entendem por que foras hexagonais são tão ubíquas: espontaneamente surgem sempre que um sistema começa de um estado “quente” desorganizado e devagar esfria, eventualmente congelando em estruturas estáveis. 



III. ORIGENS DA INDIVIDUALIDADE



A firmando a existência de uma natureza universalmente humana, um circuito cerebral montado pelos genes e auto-organização, D não quer negar a existência das diferenças individuais. Sempre que focamos, cada cérebro exibe traços únicos – mesmo logo no início. Por exemplo, as dobras corticais, bem como nossas impressões digitais, são montadas antes do nascimento e variam de modos distintivos – mesmo em gêmeos idênticos. Similarmente, a força de densidade de nossas conexões corticais de longa distância, e mesmo suas trajetórias exatas, variam por fator vasto e tornam únicos nossos “conectomas”. Há que reconhecer, contudo, que tais variações cavalgam tema comum. O leiaute do Homo sapiens obedece a um esquema fixo, similar à sucessão de cordas que músicos de jaz memoria, quando aprendem uma canção. É apenas no topo desse gradiente humano-universal que as vagarias de nossos genomas e as estranhezas de nossas gravidezes acrescentem suas improvisações pessoais. Nossa individualidade é real, mas não seria o caso exagerar: cada qual é apenas variação da linha melódica do Homo sapiens. Em todos nós, negros ou brancos, asiáticos ou nativos, em todo lugar no planeta, a arquitetura do cérebro humano é sempre óbvia. Nesse respeito, o córtex de cada humano difere do nosso parente mais próximo, o chimpanzé, tanto quanto toda improvisação em “My Funny Valentine” parte de, digamos “My Romance”. Porque partilhamos a estrutura inicial cerebral, o mesmo conhecimento crucial e os mesmos algoritmos de aprendizagem que nos permitem adquirir talentos adicionais, muitas vezes acabamos partilhando os mesmos conceitos. O mesmo potencial humano está presente em toda pessoa – seja para leitura, ciência ou matemática, e se formos cegos, surdos ou mudos. Como Bacon observou no século XIII, o conhecimento das coisas matemáticas é quase inato em nós... É a ciência mais fácil, um fato que é óbvio em que nenhum cérebro rejeita; porquanto leigos e pessoas que são bem analfabetas sabem como contar e avaliar. O mesmo se diga da linguagem – não há virtualmente nenhuma criança que não tenha o impulso inato  de adquirir a linguagem dos seus arredores, enquanto nenhum chimpanzé, mesmo adotados por famílias humanas no nascimento, nunca balbucia mais que algumas palavras ou compõe alguns míseros sinais. 

Em suma, diferenças individuais são reais – mas são quase sempre em grau, não de tipo. É apenas nos extremos da distribuição normal da organização cerebral que variações neurobiológicas acabam fazendo diferença real cognitiva. Crescentemente, estamos descobrindo que crianças com desordens desenvolvimentais estão nos fins deste distribuição. Seus cérebros parecem ter tomado virada equivocada na rota desenvolvimental que leva da herança genética à migração e circuito da auto-organização durante a gravidez. A demonstração científica é crescentemente sólida no caso da dislexia, desordem desenvolvimental específica que afeta a habilidade de aprender a ler enquanto deixa a inteligência e outras facultadas intatas. Um disléxico implica a chance de 50% entre outros 4 irmãos, indicando um determinismo genético. Pelo menos quatro genes foram agora implicados na dislexia, sendo que a maioria afeta a habilidade dos neurônios d emigrar suas finais localizações no córtex durante a gravidez (Galaburda et alii, 2006). Ressonância magnética também mostra profundas anomalias nas conexões que suportam leitura no hemisfério esquerdo (Darki et alii, 2012. Hoeft et alii, 2011. Niogi & McCandliss, 2006). Crucialmente, anomalias podem ser achadas bem cedo: em crianças com predisposição genética para dislexia, aos seis meses, um déficit em distinguir os fonemas da linguagem falada já separa quem vai desenvolver dislexia (Leppanen et alii, 2002. Lyytinen et alii, 2004). 



CONCLUSÃO



Vejo que D pende para as homogeneidades, mas que para as diversidades, por conta do cognitivismo subjacente. A biodiversidade é apenas variação eventual, não um fenômeno intrínseco tão relevante quanto as estruturas. Estas dominam o cenário. Daí talvez provenha a propensão de acentuar o que há mais em comum do que as autorias. Embora a ideia da aprendizagem como autoria esteja implícita, não se acentua, indicando certo apego positivista. De fato, depende muito de como se vê: podemos dizer que o Homo sapiens sempre é o mesmo desde que surgiu, mas explica pouco por que surgiu e como mudou tanto desde lá. A natureza apenas varia ou também transforma?



REFERÊNCIAS



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