O Papel da Doença na Montanha Mágica
Montanhas perto de Davos, cenário para A Montanha Mágica de Thomas Mann. Fonte: Wikicommons.

O Papel da Doença na Montanha Mágica

Este é o sexto artigo de uma série que se inicia aqui.

“Um dia, no início do século, um mocinho dentuço, porém simpático, filho bem-criado de uma família tradicional de Pernambuco, veio estudar arquitetura em São Paulo. Sofreu uma hemoptise e teve de deixar os estudos e os sonhos de arquiteto, sob ameaça de morte iminente. Mandado para Suíça, em busca de bom clima e cura, deu-lhe para poeta, seguindo as brincadeiras que aprendera menino, em casa, no Recife e no Rio, com o pai, figura imaginosa e boa. O mau destino fez dele o que quis, mas a morte não veio. E o poeta foi ficando. Dado a alumbramentos em seu quarto pobre de solteirão solitário, inventou um estilo humilde para falar simplesmente de coisas cotidianas, embora sempre visitado por momentos de volúpia ardente e a obsessão constante da morte". Esse menino dentuço é o poeta Manoel Bandeira. Bandeira parece ser nosso Hans Castorp e de fato, chegou a ficar em Clavadel, um dos sanatórios suíços mais famosos. É marcante a conexão que existe entre tuberculose, morte, sexo e arte e nem Bandeira, nem Mann são exceções a essa afirmação.

Cinza das Horas é de 1917

Sou bem-nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração,

Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

Ou, como em Desencanto de 1912.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração. 

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Em Manuel Bandeira, segundo Arrigucci, “a poesia que preenche o espaço da doença perfaz um longo e difícil percurso de familiarização com a ideia de morrer, assumindo nesse processo uma forma humilde de expressão, nascida da elaboração artística de uma experiência acumulada em grande parte sob uma circunstância trágica, transformada em fato cotidiano.” Thomas Mann não teve tuberculose, tifo ou cólera. Para si mesmo, e para outros, sua doença era diversa, tão incurável e estigmatizante quanto a tuberculose. A moléstia de Thomas Mann era congênita e tinha para ele pelo menos profundas implicações sociais no meio burguês no qual nasceu e valorizava tanto e ameaçando-o não com a morte, mas com algo mesmo pior: o não reconhecimento. E qual seria essa doença? A resposta agora parece óbvia: o mestiçamento.

Mann é o autor cuja obra reflete o confronto titânico entre o artista e a sociedade burguesa. Ser artista, na época já era um desvio de comportamento, uma atividade marginal e feminina, mas a esse estigma somava-se ainda a origem mestiça (Mischling) de Mann. Na Alemanha do início do século identidade nacional e “raça” se confundiam. O estrangeiro era racialmente inferior e, mais importante, um fator que poderia introduzir uma degeneração na sociedade burguesa capaz de destruí-la. Os artistas mestiços surgem já no começo da obra de Mann: Hanno Buddenbrook, Tonio Kröger, Gustav Aschenbach. Adrian Leverkühn do Dr. Fausto, apesar de ser “alemão puro” tem sua arte associada à sífilis contraída no contato com uma prostituta húngara (estrangeira) que tem como símbolo a Hetaera Esmeralda, uma borboleta venenosa descoberta, veja só, na Amazônia brasileira.

"O imaginário burguês temia a degeneração dos valores pois não poderia justificar sua dominação pela origem nobre. Ao invés de origem, o burguês passou a valorizar a saúde de sua família, a sexualidade controlada que lhe permitiria muitos descentes e até mesmo a duração de sua vida, que deveria ser longa para provar seu valor. Assim, no final do século XVIII, os valores da nobreza, origem e sangue azul começaram a ser substituídos pelos valores burgueses de saúde, descendência e sexualidade”[2]. Na virada do século, a medicina faz enormes progressos e uma medicalização progressiva da sociedade dá início a uma influência profunda de um certo determinismo biológico nas ciências humanas e na filosofia de forma que “No sistema institucional burguês o poder da medicina sucede o da religião e substitui a questão da morte e do castigo eterno pelo problema da saúde e da doença”[3]. Ou seja, da partilha entre o normal e o patológico que, como sabemos, é também assunto político. Os desvios comportamentais não são mais vistos como infrações morais ou religiosas, mas como aberrações biológicas. Thomas Mann lida com sua identidade (ou anormalidade) artística através da teoria da hereditariedade de sua época. Sua criatividade é herdada de sua mãe brasileira. Ele era um Mischling com uma herança pesada proveniente de um país degenerado e escravocrata o que lhe causava preocupações sociais num contexto de degradação social. Como conciliar a arte com os padrões ético-morais, racistas e auto-referentes da alta burguesia alemã? Incapaz de reprimir o que considerava ser sua ‘natureza artística’, Mann a converte numa ocupação burguesa, de um ethos burguês como em Max Weber, expondo a frivolidade do estilo de vida perdulário e pouco edificante dos burgueses do fin-de-siécle, mas, por outro lado, permanecendo burguês em suas preferências e na sua relação com o trabalho. Daí a importância, por exemplo, de seu casamento e da repressão de sua homossexualidade. É possível dizer que Thomas Mann seria como o braço literário da sociologia weberiana - em especial com Os Buddenbrooks. Ou talvez um Cézanne da literatura ao deixar sua técnica teimar com as severas restrições auto-impostas.

Em seus contos da juventude, o burguês (sempre) era tido como saudável e os personagens inadaptados duelavam com sua marginalidade-patologia, mas depois de escrever As Confissões de um Apolítico durante a Primeira Guerra Mundial parece haver um ponto de inflexão em sua obra. “O volumoso tratado é cheio de ambiguidades e mesmo buscando afirmar a sociedade burguesa alemã terminou por expor também seu autoritarismo. Talvez por isso, a partir de seu romance seguinte, A Montanha Mágica (1924), Mann passa a associar patologia individual e social de forma que o indivíduo rotulado como doente deixa de ser um degenerado para se tornar a denúncia viva dos limites e erros de sua sociedade”[4]. É exatamente isso que representa Hans Castorp. Para ele, ficar doente é ficar inteligente. Conclusão que Settembrini e Naphta condenam, por razões bastante diferentes. O primeiro porque percebe a armadilha da comunidade que se cria em torno da doença bem como suas leviandades, o segundo porque vê na doença não uma elevação espiritual mas uma forma de redenção pelo martírio. Aliás, não abordamos os embates entre Settembrini e Naphta pela alma de Castorp, já que muitas páginas já foram escritas sobre isso. Deixo a recomendação de um post do poeta Antônio Cícero à guisa de Apresentação da Montanha Mágica. A nós, basta saber da atualidade dessas discussões sobrepolarizadas que só poderiam terminar como terminaram.

A evolução de Mann como escritor começa com seus anseios juvenis em se tornar um artista burguês por meio de uma disciplina prussiana salvando-se assim de sua terrível sina de Mischling. Passa pela esperança de um novo alemão na Montanha Mágica e nos escritos políticos durante a Primeira Guerra. Para finalmente, durante sua longa luta contra o nazismo, adotar um ideal ainda mais genérico: a humanidade, onde se desvincula do universo burguês alemão e alcança uma perspectiva progressivamente crítica com relação aos valores da sociedade que o originou[5]. Como ele mesmo diz, “minha arte é um processo de desaburguesamento” (Entbürgerlichnung). Thomas Mann é um escritor canônico da literatura alemã. Sua fé em ver surgir uma outra Alemanha, uma Alemanha não-fascista, como diz a profa Veronika Fuechtner, está intimamente ligada ao surgimento de uma Alemanha mais diversa, assim como é sua própria origem.

Por fim, não poderia deixar de comentar a recepção que a Montanha Mágica teve nos meios médicos. Em 1925, portanto apenas 1 ano após sua publicação, pelo menos uma dúzia de revistas médicas já haviam publicado revisões sobre a obra. O próprio Mann respondeu a alguns ataques na Deutsche Medizinische Wochenschrift, principal órgão da profissão médica da Alemanha. O livro é importante para compreender o processo complexo no qual as definições da doença não apenas a clínico-patológica mas também a social e psicossomática foram negociadas na Alemanha das décadas de 1920 e 1930. Malte Herwig defendeu seu doutorado em Oxford em 2002 com uma tese sobre Thomas Mann: “Cidadãos educados no caminho errado: Ciências naturais na obra de Thomas Mann” tendo recebido o primeiro Prêmio da Sociedade Alemã Thomas Mann em 2004. Ele escreve: “Do debate entre Mann e seus críticos médicos, o enquadramento da definição da doença na imaginação literária surge como uma ferramenta poderosa de diagnóstico cultural e controle social, que competiu com a autoridade da medicina institucionalizada, fato agravado pela ampla popularidade da obra”. Thomas Mann se vestiu de médico, assistiu reuniões e cirurgias, estudou textos técnicos e conversou com vários médicos enquanto estava escrevendo a Montanha Mágica. Dizia que a ‘Kurkritik’ era uma ‘Kulturkritik’, algo como “uma crítica do processo de tratamento é também uma crítica cultural”. E aqui ele se coloca no mesmo patamar dos grandes críticos da medicina como Moliére, Ivan Illich (não o do Tolstoi), Foucault e Canguilhem, ao atacar um ponto sensível da medicina e fazer ver àqueles que a praticam, suas fraquezas e contradições, mesmo sem ser médico. Para mim a medicina, enquanto empreendimento humano abrangente e multifacetado, é uma ótima oportunidade para estudar exatamente o que é o humano. E aqui eu vejo Thomas Mann com seu charuto entre os dedos e seu olhar penetrante balançando a cabeça em sinal de concordância..

Thomas Mann (1875-1955). Foto: Man Ray

[1] Arrigucci, D. Humildade, Paixão e Morte - A poesia de Manuel Bandeira. Cia das Letras. 1990.

[2] Miskolci, R. Thomas Mann, o artista mestiço. Anna Blume. 2003, pg 92.

[3] Idem.

[4] Miskolci, R. Thomas Mann, o artista mestiço. Anna Blume. 2003, pg 143.

[5] Idem pg. 144

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