O Peninha, o Américo, o Ivo e o que mais se verá

O Peninha, o Américo, o Ivo e o que mais se verá

- Andas com problemas em casa? – perguntou o Peninha, entre realmente interessado e cusco ao mesmo tempo.

- Sim, ando cheio de problemas. – respondeu o Américo, rapaz sensato e bondoso, marceneiro de profissão e sem muitos rendimentos. O negócio, com a crise, começara a baixar, e ele levava para casa muito pouco dinheiro.

A Aldina, mulher de carnes rijas e voz forte, era conhecida como mandando irrestritamente nele. Na casa de cantoneiros, ali para Fornos, onde eles moravam, tinha-lhe ficado por herança do pai, o Xana de Albergaria, e como era à beira da estrada, quase nunca ninguém parava. Sentiam-se muito sozinhos.

Tinham uma courela nas traseiras que lhes dava para sobreviver, pois a terra era boa e lá plantavam couves para a sopa, tomates, feijão-verde, umas batatas e algum alecrim. Havia duas árvores de frutos, uma com pêros de bravo esmôlfo, e outra de pêras. 

Por dentro a casa era modesta e quanto a aquecimento, bem andavam a juntar para ver se compravam um fogão a gás, mas nem para as bilhas tinham dinheiro. Era ainda uma lareira das que fumam bem que aquecia, nas noites de frio de rachar, a casa toda que estava virada para a cozinha.

Não tinham filhos, mas ambos tinham aceitado bem a infertilidade dela.

O Américo era moço surpreendentemente atraente e fino de aspecto: olhos azuis, cabelo alourado, carnadura clara, mãos bem cuidadas com dedos finos e unhas sempre aparadas e cuidadas, tinha uma barba fina que lhe moldava o queixo, e um sorriso alegre com a boca escancarada.

Magro e escorreito, tinha um corpo que marcava os passos com elegância: parecia um modelo.

Foi um espanto quando os banhos para o casamento foram publicados e afixados na porta da igreja. A Aldina, era o dobro do tamanho dele, grosseira, com mau feitio e com uma voz de homem, mandona e arrevesada.

O Américo era filho de um pai que tinha morrido no Ultramar, um tenente miliciano de Lisboa que se amancebara com uma polaca de passagem e de que nascera um filho.

A mãe seguira a sua vida e partira e Américo tinha ficado na aldeia entregue aos pais de Aldina, que o tinham acolhido e o trataram sempre como um verdadeiro filho.

De modo que tinha crescido ao lado de Aldina, e foi natural que sem eira nem beira nem tostão na algibeira, quando morreram os seus protectores, Aldina o tenha guardado consigo e por uma questão de decência e para evitar as más-línguas, tivesse casado com ele.

Amor não havia entre ambos e era com sacrifício, que Américo se punha nela a cada semana, pois dizia-lhe, “pelo menos temos que fingir que somos marido e mulher”.

Cá para fora, para o povoado, a imagem era a de um casal igual a tantos outros, em que tudo se adivinha mas nada se sabe. Passavam despercebidos. 

Peninha, uma das vezes que fora a Fornos, encontrou o Américo no café e meteram conversa e falaram um pouco de tudo.

Com a frequência das visitas de Peninha, pois andava a negociar com a Câmara o lançamento de um monumento a um poeta famoso da terra, foi-se tornando íntimo de Américo e brotou uma sã amizade que se foi cultivando ao longo dos tempos.

Ora, num verão de muito calor, Peninha trouxe finalmente a Fornos um seu amigo poeta, de seu nome Ivo, que queria apresentar na autarquia para que fosse ele, na festa da inauguração do monumento, a ler os versos do homenageado.

Era um rapaz da idade de Américo, ruivo, com uns olhos melancólicos, um corpo enxuto e um pouco curvado, com uma voz efeminada e como que desinteressado da vida.

Conheceram-se e como ele ia ficar por uns meses em Fornos, até à conclusão do monumento, Ivo passou a ser a companhia de Américo.

Ia ter à marcenaria e passavam horas à conversa sobre a natureza, Américo contava-lhe histórias pueris da vida do campo, pois não tinha cultura e eram estes os seus interesses. 

As larvas nos pêros, os remédios para as evitar, as folhas de couve bem ricas que davam sopas suculentas, as pêras rijas mas saborosas, e Ivo ia tomando notas, em silêncio.

Um dia perguntou-lhe se conhecia a terra da mãe, a Polónia, e como Arménio dissesse que não, prometeu-lhe no dia seguinte levar um Atlas para lhe mostrar.

Estava quente e o sol brilhava em todo o seu esplendor. Américo propôs-lhe irem até ao rio, pois sempre seria mais fresco e de caminho comiam uns figos de capa rôta, que eram de estalo.

Lá se puseram ao caminho e Ivo desde que conhecera o Américo, mudara de aspecto, os olhos sorriam-lhe, a cara ficara mais rosada, o corpo endireitara e comentou isso com o amigo. 

Américo ficou contente e revelou-lhe que se não fosse ele, já tinha fugido de casa, pois a mulher tratava-o mal e era bruta com ele, ademais o negócio andava mau, pelo que ele tinha pouco dinheiro e ela estava sempre a queixar-se.

Chegando às margens, num sítio protegido aonde, segundo o Américo, costumava tomar banho longe da vista de intrusos, sentaram-se numa pedra ao lado um do outro.

Américo estava excitado por ir ver finalmente em mapa, a terra da sua mãe e achava o Ivo, um amigo verdadeiro.

Ivo tirou com vagar da sua mochila um iPad, e pô-lo sobre os joelhos.

Américo olhava com surpresa para aquele “atlas” que pela descrição na véspera, sempre julgou ser em papel.

- Isso é um Atlas? – perguntou.

- Não, é um iPad. Já te explico o que é e vais ficar maravilhado com o que vais ver.

Entretanto, Peninha voltara sem ser esperado e instalara-se na pensão Morabitinos aonde o Ivo estava hospedado. Perguntou por ele na recepção e disseram-lhe que o Américo o tinha vindo buscar para irem para o rio.

Pôs-se a caminho.

Ivo, carregou no botão de “power”, o ecrã iluminou-se e apareceram uma série de aplicações que compunham os programas favoritos de Ivo.

Este, passou um dedo rápido num dos ícones, e apareceram uma série de fotografias, com uma nitidez e colorido, que parecia que as pessoas saíam da tela. 

Américo estava deslumbrado e fazia perguntas, umas atrás das outras. Ivo respondia com interesse e bonomia.

Nisto, chega Peninha que os encontra debruçados sobre qualquer coisa que não vislumbrava àquela distância. 

- Rapazes, acabei de chegar. – disse. 

Os dois apanharam um enorme susto e levantaram-se de chofre.

Explicou-lhes que vinha buscar Ivo de volta à capital, pois o trabalho preparatório com a autarquia estava completo.

Américo ficou verdadeiramente cabisbaixo, o que não passou despercebido aos dois.

- Ó pá – disse Ivo para o Américo – e se fugisses de casa e viesses connosco para Lisboa? Isso é que era.

O Peninha também insistia e Américo, convencido, combinou logo ali a estratégia. Iria a casa buscar os seus poucos pertences, num momento em que Aldina estivesse atrás, na courela.

Pelas sete da tarde, chegou Américo todo afogueado com um saco de pano e as botas atadas nos cordões ao pescoço.

Peninha tinha vindo de tapete voador e partiram sem mais delongas.

Américo estava encantado ao sobrevoar as várias terras e povoações a caminho de Lisboa. 

O tapete, demorou cerca de uma hora e meia e desceu numa rua do Bairro Alto, aonde morava a Severa.

Fizeram-se as apresentações e Peninha deixou uma bolsa de moedas de oiro, que serviria para pagar o alojamento de Américo para os próximos meses.

A Severa olhava gulosa o moço novinho e apetecível, pois o Marialva já era velho e barrigudo e obrigava-a a tocar guitarra e a cantar todas as noites e bebia muito do pichel da adega.

Foi levá-lo até ao quarto e ajudou-o a despir o casaco de cabedal e perguntou-lhe se queria que lhe preparasse um banho quente na tina de cobre.

Estava o nosso Américo deleitado com o sabão que fazia espuma dentro da tina com água quente, sob os olhares excitados da Severa que olhava para a sua nudez. quando se ouvem de súbito, os cascos dos cavalos, e irrompe pela estalagem o marquês de Marialva que pede logo de beber.

Aflita, a Severa, enxuga Américo, não sem lhe tocar nas partes baixas e mete-o dentro de um armário do Ikea que tinha acabado de comprar, por instruções do Peninha.

Sentem-se as botas pesadas do Marialva a subir as escadas e a entrar no quarto: viu as roupas do Américo no chão e perguntou zangado à amante:

- Tens cá homem dentro de casa? 

- É um hóspede que acabou de chegar, meu Marquês!

E puxando-o com ternura para a cama, começou a dedilhar a guitarra e pôs-se a cantar um fado do Camané.

Embalado pela música, pelo calor do banho e pela excitação de ter conhecido a Severa, Américo adormeceu e deixou-se escorregar pelas paredes lisas abaixo do armário, e as portas escancararam-se e viu-se nú de pernas abertas no chão.

Telefonaram para o telemóvel da Marquesa a avisá-la do sítio aonde o Marialva estava, e com o rabo entre as pernas, voltou para casa e o Américo e a Severa viveram felizes para sempre.

Muito mentirosa é a História que nos contam dos Amores da Severa e do Marquês de Marialva!

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