O PENINHA E A RURITÂNEA
O PENINHA E A RURITÂNEA
O Peninha acordou agitado e para piorar deu-lhe para ouvir a 5ª sinfonia de Beethoven. Um esplendor: os sons da orquestra entravam-lhe pelas entranhas a dentro.
Estes últimos tempos não tinham sido de feição para a sua vida. Um emprego chato, rotineiro, mal pago e com colegas invejosos, mesquinhos e intriguistas na Repartição.
A Adélia, a chefe de secção, era zarolha e coxa e reflectia no seu carácter o azedume das suas deficiências. Odiava Peninha por ele ser alto, bem lançado, com farta cabeleira aloirada, olhos verdes, mãos finas e dedos compridos com unhas lindas e bem tratadas. Vestia sempre correctamente e raramente se salientava no ambiente do trabalho. Chegava a horas, cumpria o seu dever e saía no fim do dia, desejando uma boa tarde para todos.
O Peninha nunca revelara o furacão que lhe ia na alma, de revolta pela falta de horizontes que no seu país – a Ruritânea – os políticos traçavam para si e para os seus concidadãos.
Acresce que sendo governados por uma ditadura de esquerda, a Junta revolucionária abolira todos os traços de religiosidade e era-se preso por praticar alguma religião, fosse ela qual fosse.
Ora Peninha, tendo nascido numa família de crenças religiosas cristãs, andava desde pequeno em conversações com o seu Deus para ver se O encontrava, fisicamente, vá..assim tu cá tu lá!
Não lhe serviam as teorias todas dos livros sagrados, nem dos rituais litúrgicos por mais bonitos que fossem. Quando era miúdo acompanhava o pai à catedral e acendia uma vela e punha-a no altar do seu ícone preferido, um Deus de barbas num fundo ricamente decorado com desenhos a ouro fino, com a corte celeste no fundo.
Nem as vozes bem moldadas em uníssono do coro ortodoxo, que subiam ao céu e ecoavam na nave do templo, o faziam desistir de, como dizia, encontrar-se frente a frente com o seu Deus.
Depois tudo fora proibido, e vivia num país sem Deus e sem moral, cinzento, planificado e lúgubre.
No emprego, pertenciam todos ao partido e vigiavam-se uns aos outros e não hesitavam em delatar ao comité central, quando suspeitassem que alguém pudesse estar a praticar algum desvio ideológico.
Peninha, reunia-se todas as 5ª feiras à noite num celeiro, fora da cidade, com um grupo de amigos para falarem de religião. Era um risco tremendo pois, se descoberto, implicaria a prisão e a perda do emprego, que apesar de miserável, sempre lhe dava para sobreviver.
Ora nessa noite Peninha resolvera não ir e ficar em casa, pois, excepcionalmente, a televisão estatal passava um filme de que ele sempre gostara. Tratava-se da produção grandiosa e histórica dos “Dez Mandamentos”. Peninha sempre admirara a figura de Moisés e teve um pressentimento de que talvez fosse a oportunidade, tal como o profeta na montanha sagrada, de se encontrar finalmente com Deus.
Peninha, era espirita e ouvia vozes e contactava com as almas, mas nunca conseguira ir para além de familiares ou de pessoas que lhe indicavam, quando acompanhado nas sessões.
Comprara uma pizza e uma bebida parecida com a coca-cola, pois na Ruritânea não deixavam entrar produtos do imperialismo, e sentara-se comodamente no sofá, à espera da hora do início do filme.
O seu apartamento não era no centro da cidade, pois as rendas eram mais caras, e nos subúrbios sempre se encontravam algumas oportunidades.
Herdara dos pais alguns móveis, mas nada de especial, por isso tinha muitos quartos fechados sem mobília, com as paredes escorrendo humidade. Vivia entre o quarto de cama e a sala com um pequeno televisor a preto e branco e um aparelho de hi-fi aonde ouvia a música de que tanto gostava.
Passara para a 9ª sinfonia e o coro ia começar a cantar, quando ouviu um barulho como se fosse alguém que tivesse entrado de mansinho.
Ficou de sentidos alerta, pôs o som mais baixo e esperou.
- Aqui estou. Sei que procuras por mim.
Peninha, olhando à sua volta, nada nem ninguém encontrou.
A voz continuava a fazer-se ouvir dentro da sua cabeça:
- Nada temas, e fala comigo.
- Quem és tu? – perguntou.
- Sou o teu Deus, que vem ao teu encontro.
E Peninha, de contente, respondeu:
- Há tanto tempo que Te procuro. Aonde tens estado?
E nesse momento, invadiu-o uma sensação de grande conforto e de alegria.
Na manhã seguinte, quando acordou e se levantou, Peninha era outro homem, tinha finalmente acreditado plenamente.
Quando saiu do psiquiatra, olhou para a prescrição do médico: internamento forçado no hospício-prisão para dementes. Motivo: distorção mental e visões perigosas para o regime.