O príncipe encantado na modernidade
As histórias populares, contos, mitos e atualmente filmes são parte dos aprendizados do mundo que colocamos para dentro ao formar nossa psiquê. E durante muitas gerações as mulheres foram influenciadas por contos de fadas onde a princesa sempre indefesa era resgatada dos perigos por um príncipe encantado.
Ele era elegante, bonito, cavalheiro, apaixonado, e estas características passaram a ser o ideal de parceiro romântico para as mulheres. Mas em nossa modernidade, e depois da influência que a Psicanálise de Freud teve sobre a Arte, este príncipe recebeu um novo acabamento.
Enquanto psicóloga clínica tenho atendido diversos casos que expressam as fantasias modernas de amor, muitas com o requinte de maldade sadopsicopática dos antiheróis modernos, mas no final, na moral da história, o que não fica claro é até que ponto este personagem é um príncipe e, em que ponto é fera selvagem ou quando chega a ser um sapo?
A BELA E A FERA DA MODERNIDADE
Há um novo conto de fadas no mercado fazendo a cabeça das mulheres. “Cinquenta Tons de Cinza” está para as mulheres assim como “A Bela e a Fera” está para as meninas.
Falando resumidamente, “Cinquenta Tons” é um romance erótico que conta a história da estudante Anastasia que conhece um rico e poderoso empresário Christian Grey a quem precisa entrevistar. Uma conexão além da profissional se forma e Christian e Anastasia passam a viver uma história que envolve amor, mas principalmente o sexo sadomasoquista. O livro fez tanto sucesso que virou filme e tem lotado cinemas no mundo inteiro.
Além disso, o romance de Anastasia e Christian passou a ser uma referência para muitas mulheres, pois o Christian além de manter algumas características do príncipe encantado tradicional (bonito, elegante, charmoso), é também poderoso, bem-sucedido tanto profissionalmente quanto financeiramente, e aparentemente faz sexo incrivelmente bem (para quem gosta do fetiche sadomasoquista, claro).
Algumas pessoas dizem que Christian é o príncipe encantado perfeito justamente por essa mistura de valores tradicionais e modernos. Mas seria Christian considerado um príncipe mesmo?
O PRÍNCIPE QUE VIROU SAPO
Quando olhamos para a vida de Christian, vemos que suas preferências e seus comportamentos são frutos uma vida de um homem que sofreu bastante. Como adulto, ele ainda tinha pesadelos com o suicídio da sua mãe, que era prostituta e usuária de drogas. Se na infância ele conviveu com o agressivo cafetão da mãe, na adolescência ele sofria episódios de violência. Quando Anastasia e Christian começam a se relacionar, Christian se estabelece como o dominador e afirma que o relacionamento entre os dois será exclusivamente sexual e não romântico.
Se por um lado o fetiche sexual do sadomasoquismo requer um dominador e um submisso, por outro a dominação no caso de Anastasia e Christian se estende para além das quatro paredes do quarto, configurando um relacionamento abusivo. Ao longo da história há cenas em que ele a persegue, a intimida, insiste em um isolamento social, utiliza álcool para diminuir a capacidade de consentimento de Anastasia. Alguns pesquisadores afirmam que Anastasia também apresenta características de típicas de vítimas de relacionamentos abusivos como estresse, saber que está constantemente sob ameaça e problemas de identidade.
A verdade é que quanto mais paramos para pensar, Christian Grey é um homem controlador, fragilizado e cheio de traumas de infância e adolescência. O comportamento agressivo e dominador de Christian remonta de uma fase de quando ele sofria abusos e não tinha como se defender e agora ele passa a ser o dominador. É seguro dizer que a história de Christian e Anastasia no mínimo beira a violência física e psicológica contra a mulher.
Histórias de relacionamentos abusivos como o de Christian e Anastasia são mais comuns do que imaginamos e independe de classe social. Em 2011 um escândalo invadiu o clima de casamento entre o príncipe de Mônaco Albert e Charlene Wittstock.
Vários jornais reportaram que a moça estava infeliz com o jeito mulherengo de Albert e que ela tentou fugir, mas seu passaporte havia sido confiscado e ela teria sido impedida de sair do palácio. Qualquer semelhança com “A Bela e a Fera” não é mera coincidência. O casamento foi rapidamente abafado, mas o alarme da época e a demora da princesa em desmentir tudo deixou o todo mundo com uma pulga atrás da orelha.
A princesa Diana também não teve uma história de princesa da Disney: seu marido manteve um relacionamento extraconjugal e ela ainda sofria com a animosidade da sua sogra, a atual rainha da Inglaterra.
A VIDA REAL EM CINQUENTA TONS DE CINZA
O fato é que existem muitos “Christians” por aí e comportamentos como ligações constantes e controladoras, exigências que a mulher faça apenas o que ele quer, perseguições, mas nada disso deve ser confundido com demonstração de afeto, mas sim de que este homem não está pronto para um relacionamento saudável, seja ele romântico ou só sexual.
Pensar nossos atos inconscientes durante o relacionamento é buscar por origens da nossa personalidade, seja você a submissa e carente Anastasia ou o controlador e traumatizado Christian.
Encerro essa reflexão por aqui, colocando-me a disposição para Aconselhamento e Orientação Psicológica Online através de videoconferência. Conheça meu consultório online e horários aqui.
Fátima de Freitas Pessoa
Psicóloga de orientação psicanalista. Sou especialista em transtornos alimentares e foco na Psicologia dos relacionamentos (CRP 05/43142)