O que nos separa? Ou o contrário: o que define a formação de um coletivo
Há não muitos anos, éramos acostumados, eu e você, a utilizar o termo "homem" para designar toda a humanidade de modo universal. Já o termo "mulher" aparecia apenas quando era preciso demarcar uma distinção de sexo. Assim, o "homem" era a espécie humana e a "mulher" era o diferente do homem, mas que ao mesmo tempo faz parte da mesma espécie dos "homens".
Atualmente, referir-se a toda humanidade apenas pelo termo "homem" soa, no mínimo, estranho -- e não apenas pela demarcação de sexo: toda tentativa de designar algo de maneira universal, mantendo o "outro" como algo à parte dentro do todo, merece contestação.
Apenas essa breve polêmica é o suficiente para exemplificar o grande problema de fundo de toda comunicação humana: como alguém pode fazer parte de um todo sem diluir-se completamente?
O espanhol Vicente Romano costumava definir a comunicação humana como o processo e o resultado das relações e trocas de informações entre pessoas de modo a facilitar a atividade social e a produzir uma existência com qualidade de vida. Em outras palavras, nós nos comunicamos porque precisamos cooperar para viver melhor.
Para produzir esse senso de cooperação, é preciso partir de alguma noção de coletivo: um grupo de pessoas que se una pelos mesmos interesses e objetivos e se comprometa em seguir por certas direções conjuntamente.
De fato, o coletivo é o cálice dourado de toda comunicação -- é justamente essa união que buscamos em nossas famílias, em nosso trabalho ou por qualquer outro ambiente no qual perambulamos.
Mas não é estranha a sensação de que simplesmente não sejamos capazes de alcançar o tal do coletivo. Em nossas vivências ou naquilo que absorvemos dos noticíarios, a intenção pela cooperação parece se distanciar das nossas atitudes concretas e cotidianas.
Afinal, não somos capazes de chegar a uma afirmação que finalmente nos una a todos? Não podemos superar aquilo que nos separa uns dos outros?
Poderíamos nos apegar a ingênua solução de que exista um denominador comum e estável que nos aproxime. Porém, gostaria de argumentar o contrário: saber o que nos separa é tão mais importante do que encontrar artificialmente este tal denominador comum -- isto é, se levamos realmente a sério a busca pelo coletivo.
A reunião do coletivo
Podemos começar a entender a questão por retomar o problema "homens" e "mulheres". Sabemos, ainda que intuitivamente, que se referir à associação de toda a humanidade por "homem" gera um desconforto: de um lado, omitimos a "mulher" dentro de um todo genérico chamado "homem"; e, por outro, e talvez mais grave, usamos o termo "mulher" para destinguir especificamente pessoas do sexo feminino, enquanto "homem" pode designar pessoas em geral.
Parece apenas uma questão de linguagem -- e confie em mim, nunca é "apenas" uma questão de linguagem --, mas com essa operação criamos uma dupla armadilha: o termo "mulher" nunca é totalmente integrado, permanecendo algo estranho dentro do que é universal; mas também o termo "homem" vira alguma coisa sem personalidade e, portanto, sem responsabilidade.
Ora, dentre as muitas coisas que nos distinguem, sermos alguns de nós homens e outros mulheres é, sem dúvida, uma das principais. Mas a tentativa de subordinar uma a outra dentro de uma terceira categoria genérica gera novos problemas: pede-se que a "mulher" se anule diante do "homem", que a engloba, e que o "homem" se desobrigue diante da "mulher", cuja vivência deixa de ser reconhecida.
A solução poderia, então, buscar afirmar qualidade primeiras, que estariam dadas à priori, e que unam a todos os diferentes a partir de um novo termo. Por exemplo, antes de sermos homens e mulheres, somos pessoas, e isto mereceria ser afirmado como em um esforço de universalização.
Uma vez estabelecidas essas qualidades primárias, pode-se relativizar as qualidades secundárias: nossas diferentes experiências com o mundo, nossos psiquismos, nossos comportamentos... enfim, nossas especificidades.
É deste modo que tentamos construir, já há séculos, esse sentido de coletivo: como algo dado de antemão e que nos une desde sempre. Assim, diminui-se ou retira-se a importância daquilo que nos distingue, que nos separa, como elementos secundários e, portanto, desprezíveis. Mas isto gera um novo problema...
Aquele que diz ser a favor de "direitos das pessoas", e não de direitos das mulheres, por exemplo, busca criar uma noção de universalidade absolutamente artificial. Ao fazê-lo, este alguém reduz a diversidade de experiências que temos entre nós e basicamente diz ao outro -- neste caso, à "mulher" -- que o seu campo de vivências é menos importante em vista do que se imagina ser uma vivência comum.
Todo projeto de coletivo que começa por essa pretensa universalidade tende a dar errado. Não porque seja mau em essência, mas porque é mal concebido.
Um coletivo não é uma unidade concluída, mas é resultado do procedimento de coletar pouco a pouco as pessoas, com seus diferentes interesses, para compor uma câmara aonde caibam todas as vivências distintas. Isto é, a comunicação, mesmo no dia a dia, não busca suprimir o que nos separa uns dos outros, mas busca, isto sim, compreender o que nos separa uns dos outros.
Não há nada na composição do mundo comum que seja dado logo de início. O que é o mesmo que dizer que não exista algo que nos una a priori! Há apenas aquilo que nos separa. Diante disso, não podemos simplesmente anular o que nos distingue, mas devemos somar tudo que nos diferencia.
Esse diagnóstico, se estiver correto, é assustadoramente libertário: implica que tudo na formação de um coletivo deve ser discutido. Não há assunto interditado. Em um coletivo, as diferenças só poderão ser compreendidas e solucionadas na direção do que Romano chamou de cooperação se todos os diferentes forem capazes de falar e de expressar suas vivências -- e isto é o que realmente importa.
Comunicar-se, então, se torna o trabalho estimulante de colecionar pessoas e vivências. E podemos entender isto na prática, como nas empresas em que trabalhamos. É ingênuo demais imaginar que uma qualidade dada à priori, como o fato de que um grupo de pessoas trabalha na mesma empresa, seja o suficiente para que se dê um coletivo ali. Este grupo apenas passa a cooperar não quando algo externo -- a empresa, ou o chefe -- o subordina, mas quando há espaço para que construam suas diferenças e compreendam como elas se relacionam entre si.
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No exemplo que acabei de citar, o que é a tal da "empresa" se torna alguma coisa mais visível enquanto resultado das discussões que a produzem. Uma empresa nunca, jamais, é uma coisa em si: é uma representação articulada por um conjunto de pessoas.
Já no caso da diferença entre "homem" e "mulher", não se trata, portanto, de encontrar formas mirabolantes de evitar os termos, mas de tornar a maneira como representamos homens e mulheres mais visível e compreensível. Isto é, saber que homens e mulheres não são coisas em si mesmas, mas são o resultado das discussões que produzem estas noções.
A era das controvérsias
Mas um gosto amargo permanece na boca: parecemos viver em uma época de multiplicação das controvérsias. Sabemos disso muito na prática, pois qualquer post em uma rede social é uma potencial fonte de polêmicas. E o pior: não há ambiente para que sejam compreendidas estas polêmicas e, assim, elas vão se acumulando como que em montanhas e montanhas de lixo.
O acúmulo de controvérsias parece ser um indício importante da nossa comunicação bloqueada. Elas demonstram uma imensa dificuldade em articular um mundo comum que compreenda as nossas diferenças. Isto e, a dificuldade de tornar visíveis e compreensíveis as representações que utilizamos para designar o mundo a nossa volta.
Em outras palavras, quando qualquer um de nós se fecha em suas convicções, tem-se uma confusão que não reconhece na própria convicção uma representação, mas sim uma verdade. Seria o mesmo que imaginar alguém que defendesse que a associação dos humanos seja mesmo designada apenas por "homens", porque de fato crê que o termo resume a experiência humana, e todo o resto seria "mimimi".
Ambientes de comunicação aonde há "verdades" demais não estão abertos para a soma daquilo que nos diferencia, mas deseja a subordinação de tudo que lhe for diferente. Isto não quer dizer que todas as convicções devam desaparecer, mas sim que elas não devam ser terminadas em si mesmas: em um coletivo, convicções são frutos de uma discussão.
A tentação diante das controvérsias, no entanto, é para ceder ao contrário da discussão: a interdição. Há diferentes formas de interditar uma conversa, algumas mais óbvias e violentas do que outras. Uma forma muito sútil, porém, é o de dar a si mesmo o que Bruno Latour chama de "palavra indiscutível".
A "palavra indiscutível" é aquela que defende o direito de falar só por falar. Isto é, não interessa se o que tenho a dizer é repugnante, preconceituoso ou violento: esta é a minha opinião e qualquer que ousar colocá-la em discussão comete o crime de ferir minha liberdade de poder falar. E tem mais: eu também não me interesso pela maneira como a sua fala poderia transformar a minha, por isso a ignoro.
Quando alguém assume esta triste postura, a de recusar a discussão completamente, torna a comunicação -- ou ao menos essa comunicação que visa a cooperação -- absolutamente impraticável.
Alcançando a cooperação
Qual seria a saída para o dilema? É preciso retomar alguns pontos do argumento antes chegarmos lá:
1) há muito o que nos separa, mas anular cada uma dessas coisas não parece ser o caminho para a construção do coletivo;
2) neste coletivo, é importante que a comunicação conceba ambiente aonde todos os diferentes possam falar;
3) mas não há algo como o direito de falar só por falar, porque toda fala é discutível;
4) é a discussão, e não algo dado desde o princípio, que coleta trabalhosamente pessoas e modos de se viver conjuntamente.
Com estes quatro pontos, já temos um tipo de passo a passo. Mas, como todo passo a passo, ele é inútil sem que se afirme um fundamento importante. E o fundamento da minha compreensão é este: a comunicação é uma ação.
Tudo que tentei argumentar neste sofrível texto aponta para uma recomendação: a comunicação precisa circular entre as fronteiras, de lá para cá, não para dissolver tudo que nos torna diferentes uns dos outros, mas para que as diferenças sejam incorporadas, discutidas e, com muito esforço, compreendidas.
Isto quer dizer que comunicar não se trata apenas de passar mensagens de uma pessoa à outra. Mas é uma atitude com o outro, com o quem construimos um ambiente integrador das diferenças.
O caminho para a cooperação, portanto, requer que nos empenhemos em certas atitudes que visem o coletivo. Mais do que isso: que reconheçam todos, nós e os outros, somos atores de uma série de transformações que acabam afetando a todos dentro desse mesmo ambiente.
Perseguir o sonho de uma unidade, então, é uma grande besteira. O que pretendemos é perseguir o sonho de uma câmara aonde se dê a diversidade de ações e se expresse a diversidade de vozes visando transformar nossas vidas para melhor.