O que somos ou o que aparentamos?

O que somos ou o que aparentamos?

Ter opinião nunca foi tão perigoso quanto agora. Em plena democracia, expressar o pensamento pode ser interpretado como ataque a alguém. Do contrário, tentar manter-se de fora de discussões sobre política, religião, criação de filhos ou ração com ou sem corante para pets, faz de você um total bitolado.

Particularmente, não sei mais como me colocar neste mundo. Outrora, fui uma profissional valorizada justamente por ter opiniões próprias, fortes e não seguir a manada. Hoje, a cada pensamento postado nas redes sociais, estou sujeita ao patrulhamento de colegas e amigos que soltam um “tens que ser razoável”, ou “deixa que cada um faz o que quer” e ainda “não fala nada senão não vais arrumar trabalho”.  

Se você leu o parágrafo anterior, conseguiu ver que um dos conselhos que recebo é justamente o oposto do praticado pelas pessoas. “Deixa que cada um faz o que quer” é algo alardeado para os outros, e condenado quando é para mim. E não acredito que seja comigo o problema. É algo que acontece com qualquer um que tenha uma opinião diferente do seu interlocutor. Seja por falta de coragem ou de personalidade, muitas pessoas condenam no outro aquilo que desejariam ser, ter ou expressar.

É uma tese Freudiana? Não necessariamente. Mas é psicanalítica, com certeza. Tanto quanto a minha opinião, o que vale é o que penso. Porém, a diferença está no outro. Como ele entende aquilo que foi dito e processa tal informação. Ok...Eu estudei comunicação e no jornalismo a premissa é exatamente oposta, onde o que vale é aquilo que o outro entendeu daquilo que foi dito e não essencialmente aquilo que se desejou transmitir. Por isso a importância de se checar informações, de buscar os dois lados de uma mesma moeda e, principalmente, de se deixar de lado a impressão pessoal para se focar no fato apenas. A tal da isenção tão buscada e que vejo como inalcançável.

Já no atendimento psicanalítico, a busca da isenção também existe. O analista precisa buscar o seu distanciamento. Enquanto a transferência pode ser benéfica para a obtenção da cura, deve se originar no paciente e não no analista. Contudo, uma das principais conquistas em análise e separar o que é nosso (no caso, do analisando) daquilo que pertence ao outro. Crenças limitantes, neuroses, traumas, padrões de comportamento que não pertencem ao indivíduo e que a ele é atribuído por sua família, por exemplo.

É aí que entra o dito e o compreendido, visto que na interpretação da palavra pode estar que impregnados fatores de influência que são de quem escuta e não de quem a profere. Cada um é responsável por aquilo que diz, e não por como o outro escuta. Já leram ou escutaram isto? No jornalismo não é assim. O jornalista é totalmente responsável pela forma com que repassa uma informação, pois deve ser compreendida por todos da mesma maneira.

Voltando ao tema central deste texto, as patrulhas ideológicas surgidas no advento da democracia podem ser muito mais aterrorizantes do que as perseguições de governo totalitários. São travestidas de liberdade e chegam recheadas de preconceitos e determinismos.  Gostar do azul passa a ser crime se demonstrado em meio aos vermelhos. Elogiar o vermelho é traição se proferido por um azul entre os seus pares.

A pena para quem não se enquadra num lado ou no outro é ser difamado moralmente. Ser execrado como um leproso. Ameaçado de alcançar o inferno em terra. Há os que deixam de falar com o condenado, outras lhes rogam pragas disfarçadas de conselhos. Passa a ser tão difícil ser você mesmo e manter-se íntegro a sua essência que, para sobreviver, o melhor talvez seja virar ermitão e só expor seus pensamentos numa caverna qualquer, correndo o risco do som ecoar e algum ser da floresta sentir-se ameaçado de extinção.

Se por um lado a análise pessoal nos leva a entender quem somos e aprendermos a viver conosco sem dependermos do olhar do outro, quando vemos o comportamento da sociedade atual, ficamos sem saber se devemos realmente ser o que somos ou aparentar sermos o que querem de nós. Assim, não melindramos analistas de RH que vasculham nossa vida nos Faces e instas, não confrontamos vizinhos descontentes com as regras impostas pela vida coletiva, nem mesmo damos munição para amigos que, ao invés de nos acolherem, são os que primeiro nos atiram pedras. Família? Ah...esta já não nos inclui na lista de cartões virtuais de aniversário porque não votamos nos mesmo candidato à presidência nas últimas eleições.

                                                              Ieda Risco



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