O que uma contratação em plena quarentena tem me ensinado sobre estrutura de trabalho

A instalação do Corona vírus na nossa rotina provocou mudanças significativas na operação de trabalho de muitos de nós. Empresas que não tinham cultura ou estrutura para home office foram obrigadas a desenvolver, do dia para a noite, medidas que viabilizassem a operação mesmo com o isolamento social. Empresas que já tinham cultura de home office, precisaram escalar e compreender se seus modelos davam conta da situação quando equipes inteiras estavam em suas casas. Com suas famílias, bichos e, bem, com seus vizinhos.

Eu entrei na quarentena dia 17 de março. Dia 1º de abril, recebi uma mensagem no WhatsApp, a respeito de uma vaga de trabalho. No dia seguinte, fiz uma entrevista por vídeo-chamada. No outro, fiz uma segunda entrevista, quando conheci o Head de UX Design da empresa. Na outra semana, sem ter pisado no escritório, sem ter visto ninguém na bolinha do olho, quem dirá apertado a mão de alguém, eu estava aceitando uma proposta de trabalho.

Ao mesmo tempo que entrevistas remotas e vagas 100% remotas de trabalho já existam no mercado profissional, o quadro de isolamento e a crise de saúde que enfrentamos muda a forma como estamos operando enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Independente da cultura vigente da empresa, de sua tradição e excelência, ou de seu grau de inovação e irreverência de modelo de trabalho, não estamos só falando de profissionais que operam remotamente As empresas, e nós profissionais dentro dela, estamos precisando aprender a lidar com esta vida doméstica-profissional híbrida, com os cães latindo, os motoqueiros estourando escapamento na rua de trás, os caminhões de fruta passando na rua da frente anunciando a chegada do abacaxi docinho, e com a solicitação familiar. É um ritmo de atenção diferente, é um humor diferente, já que temos ao pé do ouvido notícias sobre subnotificação de mortes e a incerteza da data em que estaremos correndo para não perder o ônibus no ponto porque o abençoado pegou dois faróis verdes e está adiantado, só porque você ficou mais três minutinhos na cama.

Com tudo isso em mente, no começo de maio eu encerrei minha primeira semana de trabalho e decidi compartilhar aqui como tem sido minha experiência de ingressar numa equipe que já tinha entrosamento, sem pausas de café e horários de almoço para atenuar a frieza profissional.

  

Qual o melhor horário para eu te ligar hoje?

As entrevistas foram realizadas numa quinta e sexta-feira. Tinham outras duas candidatas e, passado o final de semana, eu teria a resposta. Confesso até que achei que não decidiriam por mim e até pedi para que me dessem uma devolutiva independente do resultado, afinal, estou no começo da carreira e tenho várias lacunas a preencher.

Na medida do possível, os contatos foram feitos da forma mais próxima. Nenhuma notícia ou decisão veio por mensagem, sempre por chamada. E todas as ligações foram agendadas comigo no WhatsApp. Pode parecer besteira, mas este é um tremendo cuidado e respeito.

Em quarentena ou fora de quarentena, independente se é um cargo de início de carreira ou um cargo de confiança, o cuidado de sua contratante em parar um minuto para conversar com você, seja um telefonema ou uma vídeo-chamada, vai dizer bem se há uma cultura de gestão. Aliás, especialmente se você é cuidadoso com quem está começando a carreira ou com quem vai assumir um cargo ao qual a ideia de carreira não é associada. Tratar bem quem a gente vê como igual ou superior é fácil, difícil é se desprender da ideia de que outra pessoa é inferior a você.

Apesar de ter recebido ligações para agendamento de entrevistas antes, eu acho que todas as vagas para as quais eu apliquei antes (de estágio), recebi os aceites e recusas via email. Alguns mais animados e calorosos, outros mais corporativos, mesmo em respostas positivas. Posso estar falhando a memória, mas tenho forte lembrança de olhar ansiosamente a caixa de mensagens aguardando pelas devolutivas. E mesmo as ligações que recebi definitivamente não haviam sido agendadas, e algumas até me pegaram em momentos bastante desprevenidos.

Falo tudo isso, mas também acompanhei processos de contratação e fiquei responsável por filtrar currículos que chegavam para a vaga. E pela devolutiva daqueles que não se enquadravam para a vaga. Sei bem que tem aquelas aplicações que não dá nem vontade de responder, de tanta displicência do aplicante que não compõe sequer uma mensagem se apresentando e só envia um currículo em anexo (com uma formação que não tem nada a ver com a vaga e não tem nenhuma informação extra de contato), ou daqueles que sabem que não se aplicam para a vaga mas contam com a sorte de você ter uma outra vaga na manga para a qual a pessoa é perfeita, ou pessoas que só leram o nome da empresa de onde é a vaga e aplicam mesmo sendo de uma área completamente descolada da sua.

Mas no meio disso tudo existem as pessoas que tem ligação com a vaga, com a área e com a atuação, mas deram o azar de terem como concorrente alguéns com currículo ou portfólio que chame mais atenção. E essas pessoas merecem uma devolutiva mais generosa do que somente um email falando que elas não se aplicam para a vaga aberta. Mesmo que ainda por email.

Agendar uma ligação é sinal de respeito ao seu tempo. Mesmo que a candidata indique que ela tenha o tempo todo nas mãos, as vezes a própria contratante não tem, e propor um horário para a conversa é reconhecer que o tempo e a atenção de ambas é igualmente importante na negociação. E por fim, o agendamento permite que ambas as pessoas respirem e foquem, ao invés de ter uma conversa apressada e às vezes até desconcertada, pela falta de privacidade na ocasião em que recebeu o telefonema.

Claro, existem ressalvas. Ligações não são um meio de comunicação universal, visto que existe toda uma população que se comunica por meios visuais e/ou escritos ao invés de sonoros. O importante não é a ferramenta em si, mas criar um espaço de comunicação em tempo real aonde ambas as partes possam se preparar para a comunicação e dar toda a sua atenção àquele momento.

 

Vídeo-chamadas

Na semana anterior ao meu desligamento, brinquei com alguns amigos que atenderia por Julius dentre os dias 20 e 24, pois tinha "dois empregos". Dia 24 foi meu último dia, mas nessa semana, assim que acabava meu expediente de trabalho, por dois dias, realizei um total de oito reuniões de onboarding. Não comecei o trabalho de fato, mas já fui tendo os primeiros contatos com a empresa para onde estava indo.

Eu fui de uma instituição de aproximadamente 7.000 vidas para uma empresa de em torno de 50, uma mudança de estrutura bastante drástica. Com toda a sua estrutura, áreas, projetos, protocolos a apresentar, o meu onboarding nessa instituição enorme durou um dia e meio.

Onboardings são cansativos no geral. Não por uma questão de estrutura, mas porque é muita informação para assimilar. Seja ele curto ou longo, o onboarding é uma iniciativa para te contextualizar e isso inclui falar de cultura, de regulamentos, burocracias e das operações (que sozinhas já são complexas o suficiente). São conteúdos de climas muito distintos, densos, sem muito tempo de pausa.

Mesmo com coffee breaks ou dinâmicas de engajamento, as pausas são subestimadas. E isso vale para o onboarding local e remoto. Num auditório, recebendo um tanto de informação que é essencial (ou que você ainda não consegue identificar se é essencial), a sala não é desenhada para que você possa se retirar para ir ao banheiro sem provocar uma interferência ao restante. Qualquer coisa que dure mais de duas horas merece um passe livre para usar o banheiro ou pausas breves para se hidratar.

No caso das reuniões por vídeo-chamada, se você vai agendar mais de uma reunião em cadência, calcule uns 10 minutinhos entre as reuniões para se preparar entre elas. E eu nem estou falando de onboarding especificamente, estou falando sobre rotina na quarentena. Ex-colegas de trabalho, novos colegas, amigos que trabalham nas mais diversas áreas têm comentado sobre esses dias que são engolidos por reuniões em sequência e acabam acometidos por alguns dos seguinte casos:

  • esquecem de almoçar;
  • ficam sem beber água e passam mal ao fim do dia;
  • sorrateiramente somem na reunião para conseguir ir ao banheiro;
  • aproveitam que estão sem câmera para preparar um lanchinho enquanto ouve o restante na reunião pelo celular;
  • tiveram a reunião interrompida por algum familiar solicitando alguma coisa;
  • tiveram algum desentendimento com a família pois ficou o dia inteiro mergulhado no computador e não realizou alguma responsabilidade doméstica (quando todos em casa tem a mesma necessidade de cumprir com seus horários de trabalho e dependem da colaboração coletiva para a subsistência e boa convivência geral);
  • precisaram sair da reunião por conta de alguma emergência doméstica;
  • esquecem absolutamente tudo que foi definido porque não tiveram tempo de assimilar, botar no papel, ajustar a agenda, e as vezes até pior: não conseguir repassar a deliberação para sua equipe, pois imediatamente estavam tratando de outro assunto em outra reunião.

Eu entendo que ainda haja uma cultura de que quando vamos trabalhar, é para estarmos em constante e ininterrupta produtividade durante as oito horas de trabalho. Felizmente, essa cultura está sendo questionada e sendo substituída por uma cultura mais humana, que compreende que temos necessidades biológicas e que a qualidade do trabalho também depende de uma boa convivência entre os pares. E como falei anteriormente, em quarentena temos um tempo diferente, nessa equação precisamos colocar também a boa convivência com a nossa casa.

A vantagem de ter feito o onboarding uma semana antes de começar a trabalhar foi ter tido tempo para assimilar as pessoas, os projetos, os nomes. A quantidade de reuniões permitiu que falasse especificamente sobre cada assunto, cada projeto, e conhecer o maior número de pessoas possível, o que mais uma vez cobriu a distância que o isolamento impôs a nós. Mesmo com LinkedIn, currículo, landing page, portfólio, canal no youtube, e uma vez que não trabalhei anteriormente com ninguém ali, nós ainda tínhamos uma visão turva um do outro, e a cada reunião, pudemos trazer mais nitidez no reconhecimento. Falamos sobre trabalho, é claro, mas também nos apresentamos, contamos de nossas histórias e trocamos afinidades. De meus colegas imediatos aos sócios fundadores, pude conhecer um pouco mais as pessoas que estão construindo a empresa da qual agora faço parte. Ninguém ali se colocou como importante demais para dispor uma hora de seu dia falando comigo e me receber na empresa.

Me contaram sobre a história da empresa, seus projetos, sua estrutura e suas ambições. Aqueles que usaram de apoio visual, me enviaram depois suas apresentações, com vídeos, links e outros materiais associados que pude navegar e ir conhecendo mais a respeito de tudo que estava acontecendo. E isso foi ótimo. Essa abertura ao escopo, inclusive com projetos que não digam respeito diretamente ao meu, deram credibilidade ao discurso que estava sendo me falado. Ter interface com o estratégico e com as lideranças ajuda a te lembrar qual o propósito do que você está fazendo e qual a aplicabilidade real do projeto que está desenvolvendo. Sem o convívio do escritório, é fácil se perder do escopo e ter dificuldade de vislumbrar o impacto real se a liderança não mostrar as peças conectadas.

Acredito piamente que o isolamento doméstico não pode resultar em blindagem das discussões e construção do projeto para com qualquer parte da equipe; sem o alinhamento geral é muito fácil você se sentir perdida ou alijada. Em projetos de grande escopo, é comum ter mais de uma equipe envolvida, cuidando de segmentos separados e reportando para alguém que faz essa ponte. Mas sem o mínimo de abertura e conexão entre todas as pessoas e todas as equipes, quem está na ponta fica sujeito a sentir-se desacreditado, perdido e até questionar o seu papel naquele lugar. E muitas vezes, ainda mais se você está na base da cadeia alimentar (com uma área que funcione de forma tão segmentada assim), você não está em condições de cobrar a liderança de te incluir mais ou, se até arrisca, não é raro que sua solicitação seja ignorada.

Um dos assuntos que mais surgiu entre amigos e vida profissional foi a dificuldade em ver propósito no que estava fazendo, diante do quadro epidêmico. Até já me deparei com alguns artigos de opinião sobre a perda do propósito e a perspectiva profissional, mas confesso que ainda não li. Mais uma vez, o humor que o cenário político e pandêmico nos traz interfere na nossa atuação profissional, e cabe mais a nossa organização de trabalho a contemplar e lidar com esse revés do que a nós somente como indivíduos.

 

Estamos muito felizes com a sua chegada

E justamente pela fragilidade do humor coletivo e saturação mental, a receptividade e calor humano valem ouro.

Entrar numa empresa nova, numa equipe nova, envolvem quebrar o gelo. Você está num campo minado, não sabe se as pessoas a sua volta tem os mesmos valores e vivência que você (apesar de a gente sempre assumir um pouco disso), não sabe aquela revirada de olhos quando alguém comenta algo que o Bolsonaro falou vai ser bem vinda, não sabe nem se você pode falar que prefere tomar Skol no boteco do que um drink assinatura no G&T, porque você não sabe nem se seus colegas bebem ou se tem alguma restrição religiosa, de saúde, política ou moral. Até o seu vegetarianismo precisa ser mencionado delicadamente dependendo da pessoa com quem você está falando.

Você é o estranho no ninho, as pessoas se conhecem, tem suas intimidades, algumas até já trabalharam juntas antes em outro lugar. Qualquer coisa torta que seria engraçada entre amigos pode ser bastante constrangedora, porque o gelo ainda não quebrou. E esse gelo não se quebra com onboarding, mas com almoços, leves descontrações durante o dia a dia, o cafézinho, as famosas conversas de bebedouro. Mas não tem nada disso durante a quarentena.

No dia em que oficialmente aceitei a proposta, meu LinkedIn tinha oito solicitações de contato de meus novos colegas e uma mensagem de meu futuro (e agora atual) coordenador, dizendo que estava muito feliz. Com os onboardings, vieram novos votos de boas vindas, conversas sinceras, expectativas e também novas solicitações. Além de toda a estrutura de trabalho, fui sendo recebida tanto espontaneamente pelas pessoas, quanto de forma estruturada pela empresa como um todo, que, por um lado ou por outro, ajudaram a cobrir essa distância do isolamento e me fazendo ser parte da equipe.

Como falei, eu comecei um emprego novo sem ter colocado um pé no escritório da empresa. Nem precisei ir em algum lugar para assinar um contrato ou abrir uma conta ou deixar um computador. Foi tudo remoto (como deveria ser, pois estamos em quarentena). Recebi o computador de trabalho em casa junto a um kit de boas vindas. Meu colega de projeto ainda veio perguntar se eu precisava de algo a mais para trabalhar de casa, se estava tudo certo com minha estrutura de trabalho.

Ao longo dessa primeira semana tiveram várias reuniões, claro. Mas é de reuniões que se faz a aproximação na quarentena. Você não vai conhecendo só o escopo de trabalho, mas também as pessoas com quem você vai trabalhar. Aquelas sutilezas que você só descobre com a convivência, você vai pegando com as conversas que observa, com as mensagens no Slack e também com a frequência de ritos no calendário (sim! Ritos são muito importantes com o isolamento). A comunicação ativa, que envolve também algumas atividades de descontração estruturas, vai ser a grande responsável por criar esse entrosamento e te encaixar no fluxo da equipe.

Então, sim, vai envolver tirar uns 30 minutos no fim do dia para jogar gartic com seus colegas de trabalho, vai envolver se apresentar cinco vezes no dia para pessoas diferentes contando quem você é, de onde você saiu e por que você veio e mais três curiosidades sobre você. Vai envolver 35 grupos novos no WhatsApp, compartilhar artigos sobre tendências do design para 2020, vai envolver até você cometer uma gafe tirando sarro daquela série que não é nem Living Single e nem Friends, mas que parece Friends, mas que todo mundo naquela chamada parece preferir às anteriores (menos você).

Mas no final, mesmo que seja difícil balancear o que é inócuo, o que pode dificultar o drop the mouse, e o que te ajuda a criar vínculos reais e criar afinidade com as pessoas, esses esforços se fazem válidos agora mais do que em qualquer outro momento. Porque te inclui na rotina social da equipe. Reuniões one-on-one são mil vezes mais fluídas que reuniões com grupos, porque tem um pouco menos do problema de um áudio cortar o outro, mas estas reuniões grandes te providenciam essa oportunidade de enxergar a equipe e como as pessoas agem entre elas.

Com o distanciamento físico, é um pouco mais difícil de pegar o modelo e ritmo de trabalho de um novo colega de trabalho. Mesmo que seja alguém que você já conhecia, mas era de outra equipe antes e agora começou a trabalhar no mesmo projeto que você. A falta de convivência agrega atritos na comunicação e quando há gelo a se quebrar, uma falta de sincronia que se resolveria com os dias no escritório facilmente soa como despeito. E se você acha que alguém não gosta de você, não são reuniões de trabalho que vão te ajudar dispersar essa ideia. É preciso, para o tempo em que estivermos em quarentena, criar uma nova rotina social da equipe. Uma que leve em conta aqueles que moram com a família e precisam de um tempo com eles, que leve em conta aqueles que moram sozinhos e tem enfrentado a quarentena da forma mais isolada possível, e que leve em conta nossos estudos, nossos amigos e todo o grande universo que é nossa vida fora do trabalho.

A quarentena não pode viabilizar essa ideia distópica de que somos apenas força de trabalho. Nossa rotina precisa ir além do acordar, comer, trabalhar, comer, dormir, e repetir o processo. E o primeiro passo é construir uma rotina de trabalho que não se limite a executar o trabalho, uma rotina que inclua essas sutilezas de flexibilidades da vida social no trabalho. E de preferência, uma que seja receptiva, calorosa e compreensiva. 

Obrigada.

Heloisa Gonzaga

Arquiteta | Project Coordination, Design

4 a

É, eu compartilho desse ideal de home office. Minha produtividade aumenta exponencialmente quando posso ficar em casa, até pela questão de equipamentos e infra-estrutura.

Heloisa Gonzaga

Arquiteta | Project Coordination, Design

4 a

Antes de tudo: parabéns! Em segundo:eu tinha escrito um post enorme sobre mas pelo visto, não foi. Vou resumir: achei o relato bem interessante. Você é a primeira pessoa que conheço que foi contratada no meio desse caos mundial e isso me deu esperança. Esperança de que o "novo normal" seja logo adotado (e socialmente aceito). É irônico que barreiras físicas chegaram para que as virtuais deixem de existir. Entrevistas de emprego, conferências e todo o tipo de trabalho que era visto como essencialmente presencial agora pode ser feito na sua casa. 

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