O ser como valor social

O ser como valor social

Outro dia participei de uma conversa no mínimo curiosa para alguém da minha geração. Um tio meu tentava convencer o filho que tem 17 anos sobre ganhar um carro. Isso mesmo, o menino vai fazer 18 anos e não vê importância nenhuma em ter uma caranga.

Me senti em um filme de ficção cientifica. Sabe aquele momento que nos remete a um futuro que parece distante mas que quando nos damos conta, já é a realidade? Enquanto eu tentava seguir a lógica dos argumentos do meu primo, fui transportada para alguns bons anos antes.

Eu, uma criança nos anos 90. Meu irmão mais velho com 18 anos, topete e calça santrope; dirigindo com orgulho seu primeiro carro, o grande sonho de quem chegava nesta idade. Lembrei de como ele se sentia incrível em poder contar para as gatinhas que tinha um carro só SEU.

Qualquer pessoa que foi jovem nas décadas de 80 ou 90, sonhou diariamente sobre o dia em que completaria 18 anos para ter o SEU carro. Ter o seu PRÓPRIO carro e dirigi-lo: sinônimo de status, de liberdade e de conquista. Assim também era "o sonho da casa própria", uma frase que virou até jargão, um dos maiores símbolos de segurança e sucesso daquela época.

Se pensarmos no contexto das décadas passadas, esta era a base do mundo em termos econômico social, o ter era um VALOR social. Ser dono de algo, possuir bens contia em si um significado muito poderoso de quem você era. Certamente ainda esta mentalidade está ativa e não acredito que ela vá se extinguir nunca.

Mas parece que a realidade nos mostra que estamos em transformação sobre o que é importante. A nova geração traz também uma outra perspectiva de valores e isso eu pude constatar quando voltei da minha lembrança de infância para a conversa do meu tio com o seu filho, que ainda argumentava de forma clara o porque do seu desinteresse pela compra do carro.

Ter para esta geração não é o mais importante. O que torna a vida relevante é experimentar, viver novas situações, compartilhar momentos; é a experiência por si só. Este é o valor social, SER! Tudo o que é consumido, o que se faz e como se vive hoje em dia tem valor porque esta baseado em vivenciar algo que te faz SER você. Essa nova geração enxerga diferente a forma de se relacionar com os objetos, pessoas e situações. Ou seja, o sinônimo de liberdade, sucesso e independência é fazer da vida o que se quiser, é usufruir de bens e serviços, transitar por estradas diversas, é alugar, trocar, usar por uma tarde, mas não necessariamente ter. Os parâmetros são outros e os VALORES também.

Existe uma construção com base em novos alicerces, o que me faz ser positiva e pensar que estamos evoluindo em termos de mentalidade e automaticamente, mais profundos como sociedade - mesmo que haja um pensamento comum que as novas gerações se desinteressam pelas coisas mais facilmente ou que estabelecem relações líquidas - eu enxergo algo além!

Nos últimos anos temos visto uma proliferação de novos negócios nesta direção, que seriam impensáveis tempos atrás. Eu adoro o exemplo das salas de coworking, onde nitidamente o MEU espaço físico não tem mais tanta relevante e ele pode ser utilizado COMPARTILHADO para otimizar recursos. O sucesso dos sites de venda de produtos usados é outro fenômeno, como o Mercado Livre ou o Enjoei, prova viva que tudo pode ser reutilizado e se não ME serve mais, pode servir para ALGUÉM. Ou EU uso ou ALGUÉM reaproveita". O que é meu não precisa ser usado apenas por mim e descartado.

Ao final da conversa, meu tio já cansado de argumentar ficou quieto diante da ideia que meu primo teve com os olhos brilhantes para solucionar a compra do carro: "pai, e se eu e meus 2 melhores amigos comprássemos um carro juntos? Já pensou que legal, poderíamos dividir a responsabilidade de cuidar do carro, ninguém teria a obrigação de dirigir sempre porque poderíamos fazer rodízio de motoristas e, além disso, poderemos ter a chance de experimentar trocar/alugar/vender caso enjoarmos do veículo, o que você acha?".

Meu tio, em silêncio, encerrou a discussão.

Eu, fiquei com vergonha. Sou da geração do ter e confesso que para mim estes novos parâmetros do ser, fazem muito sentido! Como não pensamos isso antes?

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