“O tal do J” – Dicas para o sucesso da análise de medicamentos para atendimento da USP <232,233>
As técnicas de ICP OES e ICP-MS deram as caras para valer em laboratórios farmacêuticos nos últimos anos – a determinação elementar por técnicas de espectrometria atômica passou a ser obrigatória segundo os protocolos harmonizados da USP 232/233 e ICH Q3D em Janeiro de 2018. Eu trabalho com Espectroscopia Atômica há mais de 10 anos, e testemunhei a chegada da obrigatoriedade da determinação de vários elementos, dentre eles o “Big Four” (As, Cd, Pb e Hg), nos laboratórios farmacêuticos, em virtude da revisão da USP 231. Aquela carinha de “vixe, e agora?” dos analistas da área, em sua maioria acostumados com técnicas de cromatografia em fases líquida e gasosa, era sinal de que algo muito fora do costume estava chegando e, com isso, muitos desafios estavam por vir. Decidi escrever este artigo para compartilhar minha experiência nesta área e mostrar que determinar “o tal do J” e atender a USP 232/233 são muito mais simples do que os protocolos de GC e LC que os analistas de P&D e CQ estão habituados a trabalhar – tomando como base minha rasa experiência nestas duas últimas técnicas.
Um breve resumo do que aconteceu sobre a determinação de impurezas elementares: o Capítulo USP 231, onde Ag, As, Bi, Cd, Cu, Hg, Mo, Pb, Sb e Sn eram determinados através de precipitação com solução de ácido sulfídrico e outros reagentes e sujeitos a interpretação dos analistas (além de insalubre, inexato e pouco robusto); foi substituído pelos Capítulos <232/233> e ICH Q3D, onde Ag, As, Au, Ba, Cd, Co, Cr, Cu, Hg, Ir, Li, Mo, Ni, Os, Pb, Pd, Pt, Rh, Ru, Sb, Se, Sn, Tl e V possuem valores máximos permitidos (VMP, em µg dia-1) a serem atendidos em medicamentos com diferentes vias de administração (oral, parenteral e inalatória; cuja concentração dos elementos muda para cada via de administração). Além disso, o monitoramento de alguns elementos em medicamentos está condicionado ao emprego de elementos na cadeia de produção do produto final (p.e. o uso de Rh como catalisador para síntese do princípio ativo). Desta forma, não significa que todos os laboratórios terão que determinar os 24 elementos da USP – torna-se necessário, então, um racional detalhado para definição dos elementos a serem quantificados no produto final. Adicionalmente, laboratórios fazem o controle das matérias-primas que chegam à Fábrica, como um controle ainda maior da sua cadeia produtiva e avaliação do seu fornecedor (avaliação de risco).
Cada medicamento possui uma dosagem máxima diária (DMD, em g dia-1) que vem descrito na bula do medicamento. O seu médico, que prescreveu o medicamento, sabe esta informação e receita a dosagem apropriada para necessidade. Medicamentos que podem ser comprados sem prescrição médica também possuem DMDs e precisam ser monitorados quanto às impurezas elementares.
Segundo o Capítulo 233 – que fala também sobre a instrumentação analítica a ser empregada e formas de preparo de amostras, os medicamentos podem ser analisados de diferentes formas: diretamente, sem prévio preparo; diluição em meio aquoso, para os medicamentos solúveis em meio aquoso; diluição em meio orgânico, para os medicamentos solúveis em solventes orgânicos; e preparo de soluções indiretas – que envolvem a decomposição de matriz. Quando me refiro à decomposição de matriz, é a mineralização de todos os componentes ali presentes, usando misturas ácidas e digestão assistida por microondas em vaso fechado. A digestão de amostras usando microondas é especialmente importante devido à preservação dos elementos na solução (tais como Os, As e Hg, que podem ser perdidos em altas temperaturas e/ou na presença de certos reagentes) e para evitar contaminação externa nas soluções a serem analisadas.
Todo processo de diluição de amostra envolve, resumidamente, o uso de uma alíquota da amostra (massa ou volume) e um volume final – na maioria dos casos, obtendo-se um fator de diluição (FD) superior a 1 (ou seja, o volume final é maior do que a massa/volume inicial).
Com base nas informações de VMP, DMD e FD, o “J” pode ser calculado pela simples equação abaixo:
J = (VMP) / (DMD*FD); em mg L-1
Notem que cada elemento, para cada medicamento com seu DMD e seu preparo de amostra, vai ter um valor de J. Para fins de continuidade do texto, uma parte da validação da USP 233 pede que seja preparada uma solução de 50% do valor de J.
A pergunta de 1 milhão de dólares é: será que o meu ICP OES ou meu ICP-MS consegue quantificar os 50% do J calculado, para cada elemento? Essa pergunta, na verdade, é muito mais barata de responder!
Alguns pontos precisam ser considerados para você conseguir responder a esta dúvida:
a) Qual é o limite de quantificação do equipamento, para o elemento estudado?
b) Qual é o impacto da matriz no limite de quantificação do equipamento? A quantidade de material dissolvido causa aumento deste limite?
c) Seu método instrumental está ajustado para esta análise (p.e. vista axial para elementos de baixa concentração ou uso do possível isótopo de maior abundância, uso de fluxo de He na cela colisão ajustado adequadamente)?
d) Você tem os consumíveis adequados para conseguir aumentar a sensibilidade (p.e. câmara ciclônica singe-pass para ICP OES, filtro do ICP-MS para He não está saturado)?
Para facilitar o entendimento, vamos calcular um exemplo:
Medicamento: Antinflamatório XPTO, comprimido via oral
DMD: 0,1 g dia-1
VMP para Cd, via oral: 5 µg dia-1
Preparo: 0,1 grama com 2 mL de HNO3 e 2 mL de água, digestão assistida com microondas em vaso fechado, volume final levado a 50 mL. O FD é de 500x (50/0,1).
O valor de J para este caso específico é: J = (5)/(0,1*500) = 0,1 mg L-1.
O valor de 50% de J para este caso específico é: 0,1*0.5 = 0,05 mg L-1.
Análise dimensional: J = (µg dia-1)/((g dia-1)x(mL g-1)) = µg mL-1 = mg L-1
Colocando em poucas palavras, o “J” é a concentração do elemento na solução preparada de um determinado medicamento caso este elemento esteja no limite especificado na USP 233.
Resumidamente, a técnica de ICP OES é baseada na emissão de radiação proveniente do decaimento energético de elementos excitados em uma fonte altamente energizada (plasma), e o ICP-MS é essencialmente uma técnica gravimétrica onde medem-se as massas dos analitos que sofrem ionização (Z=+1) em uma fonte também altamente energizada (ICP). Técnicas de espectrometria de massas são, em sua maioria, mais sensíveis do que as baseadas em fenômenos óticos, no universo da Espectrometria Atômica. Claro, antes que os teóricos dêem um salto quântico (com o perdão do trocadilho) ao lerem isso, existem exceções à esta afirmação, porém a diferença básica entre estas duas técnicas para o nosso assunto é esta: sensibilidade. Ah... e é claro, preço.
Figura 1: Sistemas de ICP OES (esquerda) e ICP-MS (direita) Agilent.
Via de regra, sabe-se que ICP OES é o produto mais indicado para análise de medicamentos para via de administração oral, uma vez que os VMPs para via oral são maiores que os limites para parenteral e inalatório. Quanto maior for a dosagem máxima diária e maior for o fator de diluição, menores serão os valores de J, e fica menor a probabilidade de um ICP OES conseguir atender aos limites desejados. Um ICP-MS consegue atender aos limites das três vias de administração mencionadas sem grandes esforços. A escolha do equipamento depende de uma série de fatores, porém os fatores de decisão afunilam para dois critérios: sensibilidade para a aplicação desejada e preço.
Voltando à questão da sensibilidade – como verificar se meu instrumento (OES ou MS) conseguem atender aos 50% do valor de J calculado? Como o objetivo deste artigo é ajudar a todos que precisam lidar com esta análise, eu sugiro o seguinte passo-a-passo (lembrando que estou considerando que os ácidos são adequados para determinação elementar, a vidraria está descontaminada, o sistema de introdução de amostras está limpo, foi usada água ASTM tipo 1, dentre outras importantes recomendações para se trabalhar com ICP OES e MS).
a) Monte o método e prepare as soluções de calibração iniciais, antes mesmo de preparar suas amostras: 0,5J; 1,0 J e 1,5J. Siga as orientações do fabricante do instrumento, como por exemplo um método pré-definido ou condições gerais que já são preenchidas quando um novo método é criado.
b) Execute a leitura dos padrões. Veja se é possível obter linearidade razoável (p.e. R>0.995) e boa repetitividade para os pontos da curva (p.e. <5% de RSD, para triplicatas).
c) Veja se o primeiro ponto – 50% de J – possui quantidade de sinal de ao menos o dobro do obtido para o branco. Isso é importante para garantir que você não esteja trabalhando próximo ao nível de contaminação/ruído do seu método, o que impacta negativamente na robustez.
d) Se deu certo até aqui, prepare sua amostra nos níveis fortificados e verifique se eles estão de acordo com os critérios estabelecidos pela USP 233 (70-150% de recuperação). Provavelmente você terá sucesso nas etapas sucessivas!
Agora vem a parte legal – e se não der certo? O que eu faço?
a) Mantenha a calma. É sério – isso ajuda muito. Tome um café e/ou uma água e retorne ao laboratório.
b) Investigue toda a parte externa do instrumento, verifique se não há mangueiras mal encaixadas, vazamentos, gás acabando, etc.
c) Investigue seu método – tente aumentar o tempo de leitura para ICP OES (sugestão – 10-15 segundos), aumente o tempo de integração do pico para o elemento no ICP-MS (1-5 segundos), experimente um comprimento de onda alternativo para ICP OES; verifique se a quantidade de He (ou outro gás) que está sendo usado na cela de colisão/reação no método não está alta demais (e cuidado ao mexer neste parâmetro – ao diminuir você ganha sensibilidade para seu analito, porém pode haver maior contribuição de espécies interferentes no sinal do seu analito). O sistema de introdução de amostras está adequado (está passando nos testes de performance)?
d) Aumento do tempo de captação e estabilização operam milagres – tente aumentar entre 5 a 10 segundos a captação de amostra e a estabilização da introdução do aerossol no plasma para verificar se há melhores parâmetros de desempenho.
e) Alguns comprimentos de onda precisam que a ótica esteja purgada – está habilitado no método?
f) Padrões estão OK? Dentro da validade? Faz tempo que estão prontos? Estão em meio ácido adequado? Estão matrizados de acordo com o preparo das amostras?
g) Qual tipo de vidraria você usou? Níveis ppb em balões volumétricos de vidro tendem a serem menos estáveis. Tente preparar em balão volumétrico de plástico ou tubos falcon para teste. Mercúrio é exceção – em níveis ppb, o indicado é vidro.
h) Investigue se é possível reduzir o FD (já que o VMP e DMD não podem ser alterados). Isso fará com que o J seja maior, aumentando a quantidade de sinal que o equipamento fornece. Reprepare os pontos da curva e proceda com a leitura novamente.
i) Verifique se o preparo da sua amostra está adequado – ou seja, se os ácidos empregados estão corretos para a digestão da matriz.
j) Verifique o procedimento de digestão – pode ser que não tenha sido suficiente para digerir completamente sua amostra.
k) Verifique se não há sólidos suspensos que podem ter entupido seu nebulizador. Se houver e for adequado (p.e. sílica precipitada), filtre com filtro de 0,45 µm.
l) Problemas com ósmio – este elemento, na presença de HNO3, forma OsO4, que é volátil. Ao nebulizar uma amostra com alta concentração de HNO3, além do Os dissolvido, o OsO4 chega ao plasma e, consequentemente, haverá resultados superestimados, tanto em ICP OES quando em ICP-MS. Para evitar isso, estude uma forma de reduzir a quantidade de HNO3 no preparo ou aliquotar uma porção da solução digerida para uma outra solução contendo HCl (1-5%). Isso acarretará em mais um fator de diluição, como novo valor de J para o Os.
Vale lembrar que existem ainda outras possibilidades de mitigação de problemas relacionados com a determinação dos elementos da USP 232/233. Quem quiser compartilhar sua experiência com algum problema e conseguiu resolver, por favor deixe nos comentários!
Seguem abaixo algumas publicações que podem auxiliar no entendimento da USP <232,233> e na escolha do instrumento ideal para sua análise.
Muito obrigado pela leitura deste artigo e fiquem atentos para novas publicações!
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Agilent Technologies Brasil e Agilent Technologies Inc.
Coordenador de Desenvolvimento Analítico
4 aElson Rodrigues Gonçalves Guilherme Ferreira
Química | Supervisora | Analista | Investidora 🐊
4 aHenrique Traesel
Química | Supervisora | Analista | Investidora 🐊
4 aRoni V. Leandro Tavares Letícia Pacheco Thamy Aruanne
Química Industrial • LinkedIn Top Voice • Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) • Biotecnologia • Ciências da Vida • Desenvolvimento Analítico • Controle de Qualidade • Sustentabilidade • ESG • Mercado de Carbono
4 aCarlos Eduardo Rodrigues Costa
Pesquisador Químico, Responsável Técnico - PUCRS
4 aMuito bom. Parabéns pelo trabalho.