O TAO DA SAÚDE - 2017

O TAO DA SAÚDE - 2017

Nas últimas décadas, o aprofundamento da crise no segmento saúde tem ensejado, quase de forma compulsória, a necessidade de um repensar de suas práticas. Os cenários de crise vivenciados no país, com previsíveis reflexos nas organizações de saúde, têm tirado o sono de muitos gestores e, de modo muito particular, em função de suas características e da finalidade precípua de suas atividades, suas consequências têm ultrapassado os muros institucionais, reverberando seus efeitos na sociedade - tal condição se vê materializada na perversa falta e/ou baixa qualidade de assistência em saúde oferecida à população e no alto custo dos serviços e procedimentos a ela disponibilizados.

           Entretanto, o que se tem observado, enquanto propostas de mudança, é adoção de linhas diretivas paliativas, ou seja, movimentos contidos e pouco assertivos, recorrentemente direcionados para as consequências do problema e não suas causas - as mudanças implementadas, enquanto fundamento de modelagem, têm sido lastreadas no discurso da existência de sucateamento nas redes de saúde, falta de RH, necessidades de ampliação das redes (através da construção de novas unidades) e falta de recursos para investimentos. Essas linhas de argumentação, apesar de em alguma medida serem verdadeiras, tão somente tratam da “ponta do iceberg”, ou seja, as consequências do problema e não suas causas.

Então vejamos: a gênese desses equívocos estratégicos (inconscientemente realizados, como prefiro acreditar) tem como ponto de convergência dilemas ensejados pelo enclausuramento de perspectivas próprias da cultura prevalecente no segmento, que avessa à intervenções externas, resiste em ter seus processos oxigenados através da revisão de suas práticas. Melhor explicando: os limites de aceitação, pelas corporações da saúde, para interferência em seus processos, se veem circunscritos ao que, retoricamente, é por elas reconhecido como a razão dos problemas vivenciados no segmento e, por consequência, os pontos a serem enfrentados para sua solução, ou seja, a construção de novas unidades, renovação tecnológica de equipamentos, contratação de mais RH, ampliação de verbas para o segmento... E isso pode ser explicado, na medida em que tais mudanças, de modo objetivo (porém não verbalizado), não trazem em si potencial para impactar “zonas de conforto” há muito sedimentadas em suas práticas - qualquer interferência que represente, ainda que por hipótese, uma potencial ameaça ao status quo adquirido é de pronto rejeitada. No geral, não é levado em conta pelos profissionais do segmento, por exemplo, a relação custo x benefício resultante dessas ações e/ou neles existe uma percepção mais crítica de que os recursos públicos são finitos e, por conseguinte, precisam ser utilizados, em benefício de todos, com parcimônia e preocupação em relação a sua eficácia.

Portanto, os insucessos até agora havidos nas mudanças levadas a efeito no segmento saúde, têm como “pecado original” o fato de haverem sido elas definidas, enquanto base decisional, a partir das consequências do problema, desconsiderando suas reais causas. E mais... existe a agravar essa míope percepção, o fato dessas decisões não serem realizadas com base na perspectiva da necessidade dos usuários, e sim, como recorrentemente acontece, na perspectiva dos interesses e expectativas dos profissionais de saúde.

Para melhor entendimento dessa assertiva, por exemplo, podemos fazer uma rápida reflexão sobre os cenários operacionais onde os processos assistenciais das unidades de atenção primária são cotidianamente vivenciados: a uma preliminar avaliação, é dado a constatação de que elas têm, no período da manhã, uma excessiva concentração de demanda (por vezes superando sua capacidade de atendimento), porém à tarde essa demanda é reduzida, e à noite as unidades permanecem fechadas...; quando aprofundada essa superficial verificação, é possível se identificar a razão dessa realidade, ou seja, os profissionais de saúde, no geral, preferem trabalhar pela manhã, destinando os horários da tarde e noite para desenvolvimento de atividades privadas, havendo, por essa razão, uma maior concentração de oferta de serviços nos horários da manhã - tal concentração de oferta e demanda, nesse turno, favorece a falsa ideia da incapacidade física das unidades no atendimento da demanda a ela afluente. Em paralelo a essa situação, surge outra distorção a ser também considerada, agora no pertinente a carga horária (CH) de dedicação de grande parte dos principais players do segmento saúde; eles, teoricamente têm previsão legal para cumprimento de uma CH de 24 h semanais; entretanto, por razões culturais do segmento, essa CH viu-se reduzida para 20 h e, na prática, a CH prevalecente, quando cumprida, é de 16 horas semanais - esse dado de realidade tende a gerar, no inconsciente coletivo, a falsa percepção de falta de RH. Avançando proposições para reflexão, podemos também observar nos discursos da necessidade de criação de novas unidades para ampliação de opções de atendimento, outro grande equívoco, na medida em que, se ampliado os ciclos de atendimento das atuais unidades primárias para além do convencional manhã / tarde, com praticamente o mesmo efetivo de RH, a partir de então distribuído de forma mais efetiva e focado nas necessidades dos usuários, as demandas desse nível de atenção em saúde tenderiam a ser melhor atendidas, o que sobremaneira aliviaria o atual fluxo de procura para atendimentos básicos nas unidades de atenção secundária, terciária e, mesmo, atendimentos básicos nas unidades de alta complexidade.

Um dado de realidade para reflexão: o atendimento primário em saúde é fundamental para o equilíbrio de qualquer sistema de saúde... Daí, quando pensamos em soluções para esse segmento de atenção em saúde, surge como sugestão validada pela OMS (Conferência de Atenção Básica de Saúde - Deliberações de Alma-Ata, em 1978), a possibilidade de utilização, para preenchimento de previsíveis ociosidades na capacidade instalada das unidades do sistema - sejam elas resultantes da ampliação de turnos de atendimento sejam consequentes da não completude de RH por profissionais de saúde convencionais -, a inclusão nos processos assistenciais dessas unidades de profissionais das áreas de Terapias Integrativas e Complementares; a atuação desses profissionais - reconhecida pelo SUS, desde 2006 -, poderia ampliar, qualificando, o potencial de atendimento hoje realizado nessas unidades; Terapias como a acupuntura, fitoterapia, reiki, massoterapia, shiatsu, etc., que por essência trabalham com ações diretas de promoção e proteção da saúde, poderiam também reverberar importantes conceitos de prevenção em saúde através de trabalhos realizados por grupos de pacientes, ampliando, ainda mais, a abrangência das ações no nível primeiro de atenção à saúde da população.

Avançando um pouco mais as iniciais propostas de reflexão, agora no pertinente aos discursos da constante necessidade da incorporação de novas tecnologias aos sistemas de saúde, é dado que se veja estimulada uma melhor e mais crítica avaliação sobre sua real necessidade, ao que certamente iremos nos deparar com a seguinte questão: a quem mais interessa esse discurso? A resposta é simples: essa premência por novas tecnologias, certamente, mais atende às necessidades das indústrias de equipamentos e farmacêuticas do que propriamente aos pacientes; tangencialmente, essas novas tecnologias também trazem facilidades aos profissionais de saúde, que já recebem laudos indicativos de diagnóstico, condição que, equivocadamente, lhes fortalece a falsa ideia da desnecessidade de realização de exames físicos e uma mais próxima ausculta do paciente, passando eles, após avaliarem os laudos dos exames solicitados, a apenas ter como missão a prescrição dos medicamentos necessários. Tal realidade, entretanto, não tem trazido ao sistema maior agilidade, ampliado o número de atendimentos e/ou gerado maior qualidade de resultados, ao contrário, o que poderia ser resolvido em uma sessão, agora demanda, pelo menos, a realização de pelo menos 03 atendimentos - dois com o profissional requisitante e um com o responsável pelo exame solicitado.

A correção das não-conformidades até aqui pontuadas, dentre outras cujo espaço não nos permite adentrar, certamente já ofereceriam solução para uma grande parte das situações que hoje alimentam os cenários de crise vivenciados no segmento saúde. Por mais importante, essas opções de solução, não necessariamente demandariam investimentos em tecnologia (através da aquisição de novos equipamentos), ampliações das redes de atendimento (por meio da construção de novas unidades), contratação de RH, etc. São medidas simples que, através da reorganização dos sistemas, poderiam ser realizadas sem grandes impactos orçamentários - apesar da  imprescindível necessidade de prévia discussão, intragrupo, dos profissionais de saúde quanto aos objetivos a serem alcançados, visando a minimização de resistência corporativas.

Dentre as opções de solução indicadas, reforçamos ser a ampliação dos horários de atendimento e o foco prioritário das organizações públicas de saúde na atenção primária de assistência com as de maior impacto ao sistema e mais rápido resultado. Essas opções, em muito, já seriam capazes de agregar maior potencial de qualidade e capacidade de absorção da demanda, o que por desdobramento de resultado, ensejariam a diminuição da equivocada busca dos pacientes por atendimento nas unidades intermediárias e de emergência das redes... Essas unidades, sim, demandariam uma atualização em suas práticas de gestão, as quais poderiam ser repassadas, através de Contratos de Gestão, a entidades privadas para gerir, com a necessária agilidade e transparência, suas ações. Nesse movimento de oxigenação dos processos de gestão, é preciso que seja entendido que as contratações de RH, manutenção predial e de equipamento, e modernização tecnológica das referidas unidades, dentre outras vertentes operacionais, fazem parte do escopo de obrigações das entidades contratadas, o que permitiria às organizações públicas contratantes dedicarem-se, com exclusividade, ao atendimento primário de saúde e, no concernente às demais níveis de atenção, elas apenas exerceriam o papel fiscalizador, no acompanhamento do fiel cumprimento das metas e objetivos contratuais - inclusive, tal opção ensejaria que houvesse um melhor planejamento dos orçamentos e investimentos públicos necessários ao atendimento de sua finalidade precípua.

Como diz antigo pensamento chinês: o Tao está no simples, e o simples está sempre por detrás do complexo...


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Carvalho Filho Antonio Teixeira

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos