O Ultra liberalismo de Millei
(ANARCOCAPITALISMO COMO PARADOXO NEOFASCISTA)
INTRODUÇÂO
Hegel disse que a “história se repete sempre”. Marx (2006) complementou: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. A frase de Hegel é sempre lembrada quando um evento presente parece curiosamente remeter a similar do passado. Costuma-se aludir ao complemento de Marx quando a reprodução se assemelha à caricatura, em alguns casos até bizarra.
Vivemos um momento histórico de avanço do populismo. Em alguns casos ele parece seguir um caminho à esquerda, como na Venezuela. Na maioria das vezes, porém, o que há são políticos demagogos que, em meio ao processo democrático, inflamam seu público, com discursos situados entre a direita e o fascismo, contra os próprios políticos (lembremos que o processo de ascensão nazista ao poder na Alemanha foi democrático). Por meio de um pretenso desejo por liberdade e uma retórica de ódio travestida de “resistência cívica” em prol do bem comum e dos valores tradicionais, reproduz-se, em trajes contemporâneos, ideário próximo dos forjados pelos próceres totalitários do entre guerras. Ou, pelo mesmo, ofertam um arremedo do mesmo discurso, mais sintonizado com os tempos atuais
Este ensaio pretende verificar se há algo de verdadeiramente novo no horizonte da política. Exploraremos o avanço da extrema direita na Argentina e sua correlação com o caso brasileiro. Daremos particular atenção à ideia do anarcocapitalismo como ideologia redentora, capaz de gerar a prosperidade que a democracia teria fracassado em oferecer.
ANARQUISMO CLÁSSICO
Este autor gostaria de ser anarquista, em certa medida talvez até inveje os anarquistas. Reconhece neles a pureza dos mais nobres propósitos. O anarquismo, no entanto, exige a crença em um ideal de ser humano do qual, desgraçadamente, não compartilhamos. O anarquismo pressupõe um humano que, não mais conspurcado pela exploração capitalista e pela ação opressiva do Estado, surge em toda a sua plenitude gloriosa: bom, generoso, progressista. Entendemos que esta visão é romântica e não crível. Infelizmente utópica, portanto. Utopistas eram os principais pensadores anarquistas do século XIX. Conceberam novas dinâmicas econômica e social, como Proudhon, para quem a sociedade deveria se organizar em regime de igualdade e reciprocidade, por indivíduos que concebessem acordos voluntários entre si (Cf. 2003).
Muitos modelos de anarquismo foram sendo criados, cada qual filho de seu tempo histórico; mutualismo, corporativismo, anarcossindicalismo, etc. Alguns admitem a propriedade desde que sem lucro; outros, nem isso. Todos tem em comum a abolição de qualquer forma de dominação, do Estado, das classes sociais e do capital. O anarquismo, portanto, é uma ideologia visceralmente socialista. Na definição de Corrêa (2012: 87):
Se fundamenta em princípios determinados, cujas bases se definem a partir de uma crítica da dominação e de uma defesa da autogestão; em termos estruturais, o anarquismo defende uma transformação social fundamentada em estratégias, que devem permitir a substituição de um sistema de dominação por um sistema de autogestão.
Trata-se, portanto, de ideologia “libertária”, termo associado aos anarquistas por defenderem intransigentemente a liberdade dos indivíduos. Ao contrário do que pode aparentar, ela se opõe aos conceitos de naturalismo de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e John Locke (1632-1704). Para este último, por exemplo, o estado natural é de “perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas tal como acharem conveniente, nos limites da lei da natureza” (1978). O anarquismo não coaduna com tal concepção por não crer na liberdade como estado natural dos humanos. Pelo contrário, é uma ideologia evolucionista: a liberdade é uma conquista social e, sobretudo, revolucionária. Além disso, prescindiria de governo em qualquer de suas etapas. Neste sentido, difere tanto do marxismo com sua ditadura do proletariado com partido único (Cf. Bottomore, 2001:111) quanto de Locke, para quem o “Governo Civil é a solução para os inconvenientes do estado de natureza, que devem certamente ser grandes quando os homens podem ser juízes em causa própria, pois é fácil imaginar que um homem tão injusto a ponto de lesar o irmão dificilmente será justo para condenar a si mesmo pela mesma ofensa” (1973: 13).
E O QUE É O ANARCOCAPITALISMO, AFINAL?
Assim como os terraplanistas e a cloroquina, os autoproclamados “anarcocapitalistas” brasileiros ganharam maior visibilidade ao pegarem carona na ascensão conservadora capitaneada por Jair Bolsonaro. Adotaram, como uso recorrente nas redes sociais, a abreviação “ancap”, talvez para aliviar o peso do prefixo “anarco”, pouco palatável aos reacionários. O fato é que a grande maioria de seus adeptos entende o conceito apenas superficialmente, sem aprofundar-se em suas bases teóricas. Entende-se como precursor do anarcocapitalismo o belga Gustave de Molinari (1819 – 1912), embora a criação do termo seja atribuído ao economista norte americano Murray Rothbard (1926–1995), que fazia questão de divorciá-lo completamente de qualquer relação com o anarquismo clássico. Depois deles, outros se seguiram e nos Estados Unidos o conceito ganha força. Os adeptos creem que o Estado é obstáculo à liberdade, já que seu monopólio da força leva a um sistema ilegítimo de coerção dos cidadãos.
É interessante observar que o termo “liberalismo” é etimologicamente derivado de “liberdade”, bem como “libertário”, título que, como vimos, os anarquistas tradicionais reivindicam. “Liberalismo” possui concepções distintas no Brasil e nos EUA. Aqui, popularmente, “liberal” é o nome que se dá ao indivíduo aberto às mudanças progressistas (morais, políticas e etc); lá, relaciona-se àqueles mais afeitos ao ideário econômico da direita. Daí, talvez, venha a facilidade de assimilação do termo “libertário” em segmentos conservadores daquele país (inclusive o próprio ex-presidente Donald Trump), e seu uso recorrente no segmento anarcocapitalista para se auto designar.
O conceito de anarcocapitalismo em linhas gerais pode ser definido como filosofia política libertária que defende a soberania do indivíduo por meio do livre mercado e da propriedade privada. Assim como os anarquistas, pretende alcançar seus objetivos pela superação do Estado e, também como os anarquistas, se dividem em correntes, como, por exemplo, os anarcocapitalistas (Cf. Nozick: 1991) por assim dizer “raíz” (como Friedman e Rothbard), que são contra qualquer forma de organização política e a abolição pura e simples do Estado; e os minarquistas (como Nozick e Hayek), que defendem um Estado extremamente reduzido em suas funções, porém ainda a desempenhar função na defesa dos direitos relacionados à segurança, por exemplo (Cf. Morresi: 2002)
Em tese, e sob o risco de excedermos na simplificação, podemos definir resumidamente o anarcocapitalismo como uma vertente à direita do anarquismo; ainda sem Estado, porém com a propriedade privada, lucro, livre mercado e acúmulo de capitais. Ou seja, não haveria necessidade de instituição reguladora (do Estado e de seu aparato), a lei da oferta e da procura bastaria
E ONDE ENTRA A DEMOCRACIA NISSO?
Para Bobbio (Cf. 2017), os partidos se situam mezzo na sociedade civil, mezzo no Estado porque tem a função de intermediar as demandas. Logo, se abolirmos o Estado, os partidos perdem a função, já que opera em ambos os campos. E sem Estado e partidos não há democracia representativa, obviamente.
O termo aristocracia foi se alterando com o tempo. Para Aristóteles, e Platão, seu mestre, designava o governo dos melhores. Entende-se “melhores” não aqueles distintos por riqueza, família proeminente ou título de nobreza, e sim os que possuem melhor formação moral e intelectual para atender aos interesses da coletividade. Para ele, Os governos viciados são:
a tirania para a realeza, a oligarquia para a aristocracia, a democracia para a polida [república]. A tirania é uma monarquia que não tem outro objeto além do interesse do monarca; a oligarquia só enxerga o interesse dos ricos; a democracia [demagogia] só enxerga o interesse dos pobres. Nenhum desses governos se ocupa de interesse geral. Mas é preciso parar aqui algum tempo mais para dizer qual é o caráter de cada um desses governos – e essa dupla tarefa não está isenta de dificuldade. [...] A tirania, temos dito, é uma monarquia que exerce um poder despótico na sociedade política; a oligarquia torna senhores do governo os que possuem fortuna; a demagogia, ao contrário, dá o poder não aos que adquiriram grandes riquezas, mas aos pobres. Uma primeira dificuldade bem da sua própria definição; poderia acontecer que a maioria, composta de ricos, fosse senhora do Estado; ora, há demagogia quando a multidão manda. Do mesmo modo, poderia acontecer que os pobres, menos numerosos que os ricos, mas fortes, se assenhoreassem do Estado, no entanto, desde que é um pequeno número que manda, se diz que há oligarquia. Pareceria, pois, que as definições desses governos não são justas (Aristóteles, 1998;1275a-1288b, V-§§ 4-5).
O velho e bom Aristóteles não dissocia a democracia da demagogia e a concebe para os pobres. Talvez seja disso que se trata, nisto que reside sua importância na contraposição à tirania ou à ausência de Estado. Com todos os defeitos e distorções que pode ter, a democracia ainda é a única forma de governo que pode estabelecer alguma garantia aos setores mais vulneráveis da sociedade em suas inter-relações.
Nos ocorre a pergunta: como Aristóteles definiria uma sociedade em que o único poder de fato seria o do capital? Certamente não seria aristocracia, já que a medida para “melhor” é o capital, quanto mais alguém acumula melhor se torna. Sairia dali, então, uma oligarquia, ou descambaria rapidamente para uma tirania? Hobbes, que não pode ser classificado de democrata, embora tenha aberto caminho para a moderna democracia representativa, justifica a existência do Estado “porque a vida sem ele seria pior” (Cf. 2002). Conhecesse ele o dito popular talvez proferisse: “ruim com ele, pior sem ele”; fossem contemporâneos talvez concordasse com Winston Churchill sobre a melhor maneira de geri-lo: “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história”.
O fato é que a democracia representativa, com seus vícios e possibilidades de manipulação ainda é o regime que oferece as melhores (ou menos piores, para Churchill) possibilidades de fortalecer o muro que separa a civilização da selvageria. Os ancaps defendem que o advento de uma cidadania, cada vez mais forte e de maior qualidade, só é possível com o ultraliberalismo. Não, não é. É a democracia que consegue isso. O argumento dos ancaps é, no mínimo, falacioso. Basta uma visão panorâmica do planeta na contemporaneidade para verificar isso. Ou, nas palavras de Kymlicka (2006: 119/120):
A história não revela nenhum vínculo invariável entre capitalismo e liberdades civis. Países com capitalismo essencialmente irrestrito às vezes têm registros insatisfatórios de direitos humanos (por exemplo, o macarthismo nos Estados Unidos), ao passo que países com um Estado de bem-estar social desenvolvido às vezes tem excelentes registros na defesa de direitos civis e políticos (por exemplo, a Suécia).
Poderíamos adicionar aos exemplos citados acima, dois outros bastante significativos: a tirania de Pinochet, que implantou o neoliberalismo no Chile e, em contrapartida, o Estado de Bem Estar Social dinamarquês.
Na verdade, nem a correlação entre liberdade e bem estar, defendida pelos “libertários” de direita é possível. Há “sem tetos” a perambular pelas ruas, sem nenhuma qualidade de vida e absolutamente livres. Apenas, uma democracia, entretanto, pode garantir a este mesmo miserável alguma esperança de ascensão social, mesmo que esta esperança também seja miserável. Muitos veriam esta miséria como distorção capitalista, uma injustiça social. Não os ancaps, como Javier Milei, de quem falaremos posteriormente, que denominou a justiça social de “aberração”. Para os ancaps, quem não é um self sed man merece a condição em que está. A Dra Mayra Goulart, da UFRRJ, classifica esta visão da realidade como indício de um certo Darwinismo Social (BBC:2023).
Locke, ao caracterizar o Poder Legislativo, eleito, afirma sobre a democracia:
Se o legislativo ou qualquer parte dele compõe-se de representantes escolhidos pelo povo para esse período, os quais voltam depois para o estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha, este poder de escolher também será exercido pelo povo (1973:101)
A ausência de democracia tende a sedimentar a pirâmide social e impedir qualquer mobilidade. Democracia, antes de mais nada, é o conjunto das normas de relacionamentos. Logo, sem normas, relacionamentos distorcidos. Nas palavras de Noam Chomsky, anarquista e crítico contumaz da democracia moderna, o anarcocapitalismo:
é um sistema doutrinário que, se fosse implementado, levaria a formas de tirania e opressão com alguns paralelos na história humana. Não há a menor possibilidade de que as suas ideias (na minha opinião, horríveis) sejam inventadas (sic) porque elas destruiriam rapidamente qualquer sociedade que cometesse este erro colossal. A ideia de 'contrato livre' entre o potentado e seu súdito faminto é uma piada de mau gosto (DW: 2023)
Chomsky também diz que o livre mercado hoje já é uma fantasia porque “o capitalismo não é mais que um tipo de mercantilismo corporativo, controlado por empresas ajustadas com governos, que sempre intervêm a favor do capital, e que controlam a economia e a sociedade como um todo” (Cf. 2002). Citamos isso somente en passant porque o espaço é curto para contemplarmos profundamente mais este tópico. De qualquer modo, não é à toa que o segmento minaquista ainda entenda que deve haver Estado para a justiça e segurança. Afinal, alguém tem de proteger a propriedade. No estado da natureza, “a medida do direito está na vantagem que for obtida” (Cf. Hobbes: 2002). Sem a democracia e o Estado, e ainda com o capitalismo e as regras de mercado, regrediríamos à lei do (economicamente) mais forte e estaríamos longe, muito longe, da evolução rumo à emancipação humana, como pretendem os anarquistas clássicos.
Até mesmo David Friedman, ancap e filho do lendário economista liberal Milton Friedman, reconhece isso quando escreve que sem instituições a mediar as demandas sociais "ricos (ou poderosos) poderiam cometer crimes impunemente, uma vez que ninguém seria capaz de impor sentenças contra eles” (DW: 2023). Na verdade, o próprio capitalismo se ressentiria da ausência da democracia. Afinal, como se manter sem um Estado que garanta sistema jurídico imparcial e uniforme? E qual regime é mais propício a tal propósito? Se a sociedade civil é o “lugar dos conflitos econômicos, sociais, ideológicos e religiosos que serão mediados ou reprimidos pelo Estado” (Locke: 1973), não apenas classes, movimentos, organizações e etc ficariam à mercê da força do capital, como o próprio capital tenderia a ficar à deriva por mares turbulentos. E desconhecidos, já que nos moldes com que é concebido atualmente, o anarcocapitalismo jamais foi posto em prática, constituindo mais uma das inúmeras utopias sociais. Uma utopia não propriamente humana, mas especificamente capitalista.
JAVIER MILEI
Embora ainda seja muito cedo para avaliarmos o novo presidente eleito da Argentina, Javier Milei, é possível fazer algumas previsões com base em sua plataforma partidária. Ele se diz “filosoficamente um anarcocapitalista, porém, na prática, um minarquista” (Cf. GP: 2023). Foi uma maneira retórica de mitigar o nonsense que seria um anti governo no governo. Vários analistas políticos tendem a convergir para a mesma opinião. Vejamos algumas de suas propostas:
- Eliminar gastos do Estado e diminuir seu tamanho;
- Cortar o gasto com aposentadorias e pensões, visando um "sistema de capitalização privado";
- Privatizar empresas públicas;
- Dolarização da economia;
- Promover uma reforma tributária que "elimine e diminua impostos”;
- Promover uma reforma trabalhista que elimine as indenizações, substituindo-as por um sistema de seguro desemprego.
Nada diferente do que o neoliberalismo vem pregando e em muitos casos aplicando desde os governos Reagan (EUA) e Thatcher (Reino Unido). Sua única inovação é a promessa de supressão do Banco Central, medida sem paralelo no mundo. Talvez seja um dos pontos em que de fato seu programa de governo mais se aproxima do ideário anarcocapitalista. Analistas observam que se for efetivada a dolarização da economia e o fim do BC, o Estado argentino perderia sua autonomia econômica.
Outro ponto “libertário” é permitir a venda de órgãos humanos “é um mercado a mais. Minha primeira propriedade é o meu corpo. Por que não vou dispor do meu corpo?". Tais palavras remetem tanto a Locke, para quem “cada um tem a propriedade de si mesmo, de seu próprio corpo” (1978), quanto à radicalização dos princípios básicos de propriedade individual preconizados pelos ancaps; afinal, de fato, nada mais meu que meu corpo.
Do ponto de vista do processo civilizatório planetário, se for implementado, será o que de mais espantoso a Argentina apresentou ao mundo desde Diego Maradona. Não há necessidade de aprofundar muito a questão para entendermos que ela aponta para a desigualdade social de um país subdesenvolvido: o fluxo dos órgãos humanos irá da base da pirâmide social até o topo, numa rota invariável de mão única. É um exemplo de como funcionariam as leis de mercado quando totalmente desreguladas. A venda de órgãos é tão disparatada e inumana que o Irã é o único país a permiti-la e mesmo assim apenas para cidadãos, para a venda do rim, com um limite de pagamento (US$ 4.600 por órgão) e sob a regulação de uma instituição governamental (Cf. Terra: 2023).
Bem como fazia seu correlato brasileiro, Jair Bolsonaro, Milei diz que as relações com os Estados Unidos e Israel serão privilegiadas caso chegue ao governo. Romperia com a China porque nesse país "o povo não é livre, não pode fazer o que quer e quando faz, é morto. Não faço trato com comunistas" (UOL: 2023). A despeito de prevalecer na China uma economia de mercado, Milei insiste na velha contraposição entre comunismo e capitalismo, démodé desde a queda do Muro de Berlim e rediviva pelo neofascismo, carente de pérfidos e emblemáticos arqui-inimigos.
Nosso palpite é que Milei sabe que na China há um comunismo de fachada para uma autocracia de partido único. O velho “nós contra eles”, contudo, que já deu certo aqui para Bolsonaro e nos EUA para Trump, segue a ser estratégia eficaz de sedução das massas ignaras. E, claro, nem tudo o que prometeu em palanque para consumo interno Milei pretende cumprir à risca, tanto é que antes mesmo de assumir já iniciou tratativas de aproximação com China e com Lula, -a quem também acusou de comunista (Cf. O Tempo: 2023). Para degustação das massas, o que ele deve tentar efetivar mesmo (mais uma vez como Bolsonaro) são as pautas de costumes (UOL: 2023), como por exemplo:
- Proibição do aborto;
- Fim da educação sexual em todos os níveis de ensino;
- Construção de penitenciárias de gestão público-privado;
- Redução da maioridade penal;
- Desregulamentação do mercado legal de armas de fogo;
Mais uma vez, nada de novo no front: repressão sexual, oposição ao aborto e um sistema penal que foca os galhos e não a raiz do problema. Milei repete os temas dos conservadores do mundo todo, inclusive com seus negacionismos irracionais (“aquecimento global é uma mentira”, declarou). E há as armas, claro. Sempre elas.
O autor deste ensaio foi professor universitário e se surpreendeu quando, num debate em sala de aula, certo grupo de alunos neopentecostais defendeu a liberação da venda de armamentos. O discurso era mais ou mesmo o seguinte: “não usamos em nenhuma hipótese, mas defendemos a liberdade de quem quiser usar como direito inalienável”. Isso se deu pouco antes da campanha que levou Bolsonaro à presidência e, apesar de discordarmos, consideramos até um tanto sofisticada a argumentação utilizada, tendo em vista sua origem. Hoje entendemos que o fenômeno “libertário” para certas práticas individuais reacionárias já vinha sendo engendrado como um ovo de serpente em determinados segmentos aos quais somos alheios. Neles, o discurso do “direito a ter arma”, se sobrepôs aos malefícios evidentes advindos da disseminação de seu uso, numa deturpação flagrante do pacifismo cristão. Por outro lado, aparentemente, o líder que arma seu povo assume uma postura de destemor e de associação inequívoca a ele: “estamos do mesmo lado, do bem, do certo, do justo; então nada há a temer se é o meu aliado quem está armado”. É outra ideia rasa, que parece funcionar. Aparece, de modo mais elaborado, inclusive, entre as garantias conferidas ao Príncipe, na obra de Maquiavel: armar o povo como forma de manter sua crença e de se assegurar contra os poderosos (Cf. 2018).
Tanto na Argentina quanto no Brasil, a mesma tentativa de angariar o apoio deste “nicho de mercado” cristão: "meus aliados são Estados Unidos e Israel, e tem mais: vou mudar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. Quando o Uno (como se refere a Deus) ordenou a Moisés para quebrar as primeiras tábuas da lei, a primeira palavra que pronunciou foi Jerusalém, onde o rei Davi estabeleceu a capital. Portanto, é preciso levar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém", afirmou Milei (Uol: 2023). Sabe ele que os neopentecostais, conservadores por excelência, guardam uma empatia ilógica pelos judeus de Israel, talvez em virtude de uma interpretação enviesada do Velho Testamento em detrimento do Novo.
Milei não se sente parte do sistema político: "para mim, o Estado é um inimigo e os políticos são os que vivem do Estado". Trata-se de um discurso bem sedutor para uma nação que tem visto seu poder aquisitivo evaporar nos governos anteriores, mais identificados aos setores da esquerda peronista. “O Mickey Mouse é a aspiração do político argentino porque é uma ratazana nojenta que todo mundo ama" (UOL: 2023), com frases de efeito anti política como esta, o eleitor médio não atentou para o fato de que quem demonizava os políticos era um deputado em campanha para presidente. Outro que demonizou a política foi Bolsonaro que nunca teve outro emprego após dar baixa no exército que não fosse o de parlamentar.
O sociólogo Gilberto Freire tinha uma teoria para explicar a diferença do português no Brasil, com relação a Portugal: a mudança ocorreria na infância pelas relações afetivas entre as crianças brancas com as amas de leite, no Brasil Colônia. A linguagem infantil amoleceu ao contato da criança com a ama negra. Fez ela com as palavras o mesmo que com a comida: desossou-as, tirou-lhes as espinhas, as durezas, só deixando para a boca da criança as sílabas moles. Restaram as palavras sem “rr” nem “ss”, as sílabas finais moles; as palavras que só faltam desmanchar-se na boca (Cf. 1993).
Citamos Freyre para fazer uma analogia. O que a ama de leite teria feito com as palavras, parece ser o que os Bolsonaros e Mileis da Terra fazem com a política: desossam, facilitam seu discurso ao máximo, para que o eleitor, cuja única preocupação além de seu umbigo é futebol e telenovela possa assimilar de modo fácil e maniqueísta a realidade. Assim, conseguem mobilizar os que possuem feroz preguiça de pensar. O discurso simplista de Bolsonaro e Milei (como são os enredos de telenovela e a lógica do futebol) parece querer dizer: “não precisa pensar muito mais que isso. Eu penso por você”. Assim, foram amamentadas fatias amplas, ignorantes e conservadoras da população com um discurso binário, simples como macarrão instantâneo, facilmente digerível e absolutamente desprovido de substância.
Também não é possível de aprofundar aqui, porém, cabe lembrar que Le Bon, em 1895, já definia esta “horda” (ou gado, no epíteto injurioso atualmente utilizado aqui) em “Psicologia das Multidões” (Cf. 2013). É de Le Bon o conceito de “mente coletiva”, pelo qual designava os partícipes de uma espécie de transe coletivo em que prevalecem obediência cega ao líder e a necessidade de ilusões em detrimento da realidade. Em seu Livro “Ruptura” (2018), Castells afirma que rupturas, geram decepção no cidadão; vem, então, as críticas e se pensa em achar um substituto para o líder. A crise causada pela operação lava-jato no Brasil (com o consequente impeachment de Dilma) e a hiperinflação argentina são exemplos de bons trampolins para os populistas de direita, que vendem falácias rasas como soluções para temas complexos.
Já, Schumpeter (2017) culpa não apenas os demagogos como aponta um problema estrutural da própria democracia que, segundo ele deve ser entendida como método e não como um fim em si. Para ele o cidadão médio, como eleitor é mau juiz. O cidadão típico “em assuntos políticos, tenderá a ceder a preconceitos e impulsos extra-racionais ou irracionais”. Ou seja, qualquer semelhança com aqueles que rezam para pneus em estradas ou apontam os celulares para os céus na esperança de intervenção extra terrestre (Correio Braziliense: 2022) não é coincidência. Numa democracia é possível que plutocratas e genocidas tenham apoio popular porque a complexidade da política é barreira para o eleitor discernir:
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Na verdade, para o cidadão comum que matuta sobre os negócios nacionais, não há campo algum para tal vontade e tarefa alguma na qual tal desejo possa desenvolver-se. Ele é membro de uma comissão não-operacional, a comissão de toda a nação, e é por isso que dedica menos esforço disciplinado num problema político do que num jogo de bridge. Desse modo, o cidadão típico cai para um nível mais baixo de desempenho mental assim que entra no campo político. Argumenta e analisa de maneira que prontamente reconheceria como infantil, se fosse na esfera de seus interesses reais. Mais uma vez se torna primitivo. Seu pensamento se torna associativo e afetivo (2017).
Já, para Bresser (2020), o problema não é a democracia em si, mas suas crises cíclicas: “apenas países em crise podem eleger pessoas como Trump e Bolsonaro, pois estão vivendo, não necessariamente uma crise política e sim uma crise econômica e social”. O autor defende que a forma neoliberal assumida pelo capitalismo desde os anos 1980, fracassou e não melhorou o padrão de vida, muito menos forneceu qualquer segurança adicional aos seus cidadãos.
E aqui se dá um paradoxo: quanto mais o neoliberalismo aprofunda uma crise mais apresenta o aprofundamento da mesma receita para saná-la. Enfraquece-se ainda mais a política e o Estado, abrindo caminho para a chegada ao poder de autocratas absolutamente descompromissado do projeto democrático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais do que estabelecer o anarcocapitalismo (Milei) ou implantar uma ditadura “redentora” da moral (Bolsonaro), o objetivo desta nova extrema direita parece ser o de emparedar, derrubar e suplantar a democracia em proveito dos grupos de interesse que representam.
Assim, aproximam-se perigosamente, em discurso e métodos, ao fascismo. Javier Milei se distingue de Bolsonaro porque é economista e parece ter alguma ideia do que dz. No entanto, se diferencia dos teóricos sérios do ancap pelo discurso sensacionalista. Na realidade, é apenas mais um arauto do Estado mínimo. Na Argentina de Milei o anarcocapitalismo se tornou uma aberração folclórica (porém, nem por isso inofensiva) da política. O anarcocapitalismo utópico nada mais seria que a ditadura de uma classe sobre a outra.
Na prática, entretanto, se o Congresso, instituições e movimentos sociais argentinos permitirem, o que haverá é mais das mesmas reformas neoliberais que tanto tormento trouxeram ao mundo, em especial à América latina. E diante das promessas de Milei, isso seria um mal menor.
Talvez não esteja nos livros a melhor exemplificação dos resultados a que o anarcocapitalismo pode levar. O filme Robocop (1987) faz uma alegoria de como seria um aprofundamento sem freios do ideário neoliberal. O enredo se passa num futuro em que as corporações privatizaram quase tudo, inclusive o departamento de polícia da cidade de Detroit. Isso não impediu o aumento exponencial da criminalidade e da corrupção, além de impulsionar a miséria e a segregação de bairros inteiros.
Na sequência, lançada em 1990, a corporação se torna a principal credora da prefeitura e decide controlar de vez toda a Detroit, substituindo o voto popular por ações vendidas na bolsa de valores e implantando um programa para torná-la economicamente sustentável, enquanto a degradação social segue em ritmo acelerado a cada intervenção privada. Certo, trata-se de mais uma ficção hollywoodiana escapista. É possível, contudo, observar numa projeção em que o futuro, longe de qualquer utopia, se apresenta distópico e assustadoramente plausível, uma verossimilhança bastante realista. Se o futuro aludido pelos filmes da franquia Robocop existisse, nele preponderaria o anarcocapitalismo. Alguns autores contemporâneos talvez apenas alterassem o nome para “neo-feudalismo”.
Hoje muitos analistas políticos duvidam que Milei conseguirá colocar em prática tudo o que disse. Pelas contradições do próprio discurso e pela resistência do parlamento. O perigo, todavia, está no estragos que pode instaurar no Estado Democrático de Direito que o gerou. Enquanto escrevemos este ensaio, recebemos a informação de que Milei promete reprimir e cortar qualquer benefício de quem aderir a onda de protestos contra suas primeiras medidas: privatização, flexibilização dos direitos trabalhista, destruição de cadeias completas de produção e etc; ações que, na prática, ignoram a divisão de poderes.
Não cremos em disrupturas inéditas. O perigo é sempre o velho fantasma do retrocesso ao autoritarismo fascista e seu habitual cortejo de horrores, que muitos julgavam ultrapassado, mas que hoje vemos tão perigosamente inserido no processo democrático. Até quando as instituições democráticas aguentarão as investidas contra elas? Após a derrocada das ditaduras latino americanas houve processo de fortalecimento gradativo dessas instituições, o que talvez tenha feito os democratas baixarem a guarda cedo demais.
Melhor seria termos lembrado do alerta do italiano Humberto Eco: “o fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis”.
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PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria. Tomo I. São Paulo: Ícone, 2003
ROBOCOP. Direção: Paul Verhoeven. Produção: Arne Schmidt. Intérpretes: Peter Weller; Nancy Allen; Daniel O’Herlihy; Ronny Cox; Kurtwood Smith; Miguel Ferrer. Roteiro: Edward Neumeier e Michael Miner. Estados Unidos: Metro-Goldwyn-Mayer; Orion Pictures, 1987. (102 min), son., color.
ROBOCOP 2. Direção: Irvin Kershner. Produção: Jon Davison. Intérpretes: Peter Weller; Nancy Allen; Thomas Rosales Jr.; Tom Noonan; Mario Machado. Roteiro: Frank Miller e Wallon Green. Estados Unidos: Metro-Goldwyn-Mayer; Live Entertainment; Orion Pictures, 1990. (117 min), son., color.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. SciELO- Editora UNESP, 2017. (Parte IV – Socialismo e Democracia)
OUTRAS FONTES:
Podcast Inteligência Limitada – You Tube, 2023 – Entrevista com Paulo Kogos
BBC News, 2023 - Mayra Goulart
DW, 2023 – Noam Chomsky
Disciplina “Teoria Política, Estado e Sociedade”, do curso “GESTÃO de Políticas Públicas”, ministrada pelo Professor Cláudio Couto, na FGV em novembro de 2023. Informação verbal da aula de número 7 e slides das aulas 2, 3, 4, 5 e 8.
TERRA, 2023 - Doação de órgãos
GP, 2003 - Milei - 2023
UOL, 2023 – Milei
O Tempo, 2023 – Milei
Correio Braziliense, 2022 – Manifestantes bolsonaristas