O vírus que atingiu a nossa sociedade
Incrível como o brasileiro destruiu a seriedade no debate público. O radicalismo, a arrogância e o desprezo pela opinião discordante ganharam força nos últimos anos.
Na escassez de conhecimento, e fartura de preguiça, direciona-se a argumentação para a adjetivação de quem discorda, focando o assunto no mensageiro e não na mensagem.
Atitudes grosseiras como mandar o seu interlocutor calar a boca também são comuns. Mas assim como tudo no mundo, essas atitudes também evoluem, ganham nome bonito, como “lugar de fala”, tese tão absurda quanto autoritária. É tão nonsense que, se levado à risca, apenas as vítimas de crimes poderiam dizer o que ser feito com os criminosos. Ao invés de justiça, teríamos vingança.
Outra estratégia é tentar interpretar e desqualificar o motivo pelo qual alguém defende um ponto de vista: egoísta, individualista, corporativista. Tem aqueles que clamam pela ciência, desde que ela conclua os resultados que sejam convenientes ao que pensam. Trata-se da ciência seletiva.
Atribuições de argumentos que não foram ditos ou escritos em meio a uma conversa também é normal, como recentemente ocorreu comigo em um grupo de egressos da “Luiz de Queiroz”. A conversa era com um daqueles que defendem que a produção pecuária deva ser limitada para evitar emissões de carbono.
Perguntei a essa pessoa que, se o objetivo é de fato salvar o planeta, o que deveria ser feito com os cerca de 400 milhões de ruminantes da fauna africana? A pergunta era justamente para mostrar a hipocrisia dessa linha de proposta, cujo resultado impactaria a economia, o acesso às proteínas pelos mais pobres, a geração de empregos, divisas, investimentos, etc.
Mas ao invés de explicar a incoerência, me acusou de propor a eliminação da fauna africana numa retórica desonesta, acompanhada de ironia e um senso patético de superioridade.
Convenientemente se esqueceu de que eu nunca propus isso, pelo contrário. Na minha opinião, acreditar que a flatulência de ruminantes altera o clima global é proporcional a acreditar que a terra seja plana. E afirmo isso com base em ciência.
O mesmo ocorre agora com a crise desencadeada pelo COVID-19. A sociedade precisa encontrar soluções multidisciplinares, em conjunto. Para algumas questões não precisa ser especialista, basta conhecimento, disposição e uma pequena dose de bom senso.
Governos estaduais e municipais, cercados de especialistas, decidiram pela quarentena, desde que a logística fosse garantida. Mas se esqueceram de alguns detalhes que os caminhoneiros, sem diploma algum, foram os primeiros a apontar. O transporte pararia por falta de restaurantes nas estradas, cujo funcionamento foi estrangulado por regras estaduais e municipais, visto que funcionários, transporte e condições de funcionamento dependem de algumas atividades nos municípios onde o estabelecimento se situa. É apenas um exemplo para mostrar o quão complexa é a questão.
Na mesma linha, o que dizer de pessoas diplomadas, alguns com pós doutorado, colocando frases de efeito em suas redes sociais minimizando o debate a um mero “números vs vidas” com o único e exclusivo objetivo de desqualificar quem está procurando encontrar e sugerir soluções.
Que arrogância é essa? Foi para isso que estudou, para se apequenar quando a sociedade precisa de sua cabeça? Não adianta dar uma de avestruz. A verdade nos alcança e, nesse caso, a crise vem junto.
Em artigo escrito essa semana no “Brazil Journal”, Daniel Goldberg citou um estudo recente publicado na Lancet Global Health. As conclusões estimam 2 mortes adultas adicionais por 100.000 habitantes para cada 1% de desemprego.
Nesse caso, as estimativas mais conservadoras para os impactos econômicos no Brasil - um aumento na taxa de desemprego dos atuais 12% para 20% - poderia somar entre 31 a 33 mil mortes no país, apenas pelo efeito econômico.
São mortes que não serão identificadas com a causa, mas serão igualmente trágicas, vidas perdidas. O articulista ainda ressalta que os impactos em países pobres tendem a ser maiores.
E isso é o que dá para mensurar de acordo com estudos conduzidos por pesquisadores. Ainda podemos somar aqui no Brasil outras questões, como a qualidade do saneamento básico e a aglomeração nas favelas, bairros pobres e algumas regiões. Até violência e suicídios engordarão as estatísticas de vidas perdidas.
E qual é o efeito da quarentena e isolamento nas regiões mais pobres? Na falta de dinheiro e infraestrutura, essas pessoas vão com mais frequência às compras, aumentando o fluxo de gente nas regiões mais pobres, mesmo em situação de quarentena.
É desumano pensar em alternativas que os bairros e regiões de classes médias e ricas sejam isolados dos pobres, sendo que lá o vírus encontrará terreno fértil para circular. Justamente entre os mais vulneráveis, famintos, sem saneamento adequado, cujas vidas somam históricos de tragédias e dificuldades.
Alguém realmente acredita que simplesmente cortar o transporte público irá frear o fluxo das pessoas? Ou apenas deixaremos de vê-los circulando nas regiões mais ricas, onde residem os que acham que estão fazendo algum sacrifício?
Que tipo de sociedade produz gente que se recusa a pensar nessas questões e ainda publica frases bonitinhas: “nem que eu tenha que viver de pão e água”; “quem da sua família pode morrer pela economia?” Lindo escrever isso, de pijamas, geladeira cheia, Netflix ligada. Difícil é ter empatia, se colocar no lugar de quem já está vivendo essa situação de verdade.
É mais fácil julgar, chamar de desumano, quem está tentando encontrar uma solução, sendo que a desumanidade está em si mesmo, incapaz de pensar no próximo. Para uma família pobre, o estoque é a comida do dia, no máximo de dois dias.
Para a classe média, comida para 10 dias nem é considerado estocagem. Basta pesquisar sobre hábitos e frequência de compra em supermercados de acordo com as classes sociais.
O que essa hipocrisia toda tem a ver com o problema? É só um desabafo ou tem algum propósito?
Políticos e imprensa estão se norteando por redes sociais. Na verdade, estão usando as redes mais do que deviam. Quando a sociedade formadora de opinião resolve reduzir a questão para um mero “números vs vidas”, o debate público se apequena, se banaliza.
A pressão sobre os políticos se dissipa e eles ficam à vontade, como papagaios repetindo frases de efeito como “nosso objetivo é proteger vidas”, etc., etc., etc. E como elas serão protegidas, pequeno hipócrita?
Nessa brincadeira, perdemos uma semana, no mínimo. Custarão vidas, enquanto se discute isolamento vertical ou horizontal num debate insano focado nas próximas eleições.
Pode ser que nenhuma dessas alternativas nos sirvam. Quem conhece nossa produção, logística, cultura, hábitos, etc, tem que se envolver na decisão. Nada melhor que um debate honesto, escutando especialistas, escutando a sociedade. Previsão de comportamento social diante do desespero nas próximas semanas é imprescindível nesse momento.
Pelo pouco que se sabe do vírus, ele pode ser mais sério e mais devastador do que se conhece. Temos realmente que ter tempo para enfrentá-lo com mais conhecimento médico, científico e com oferta de infraestrutura hospitalar.
Do ponto de vista de disseminação, ninguém com pouco mais de dois neurônios questiona que o isolamento seja o melhor caminho. Aos demagogos, por favor, fique em silêncio antes de colocar esse argumento numa discussão. Chega a ser idiota.
A ciência ainda não está em consenso sobre a imunização da sociedade, como ocorre com outros vírus, daí reside a preocupação com relação à eficácia das diferentes estratégias de quarentena e isolamento. Essa resposta precisa ser dada pelos especialistas, com base em números, dados, pesquisa.
E mesmo essa discussão também não tem sido transparente. A imprensa visivelmente dá mais espaço a um dos lados das opiniões médicas. E faz isso não porque há uma conspiração, mas porque se norteia pela opinião pública. Evidentemente, é mais fácil os médicos não se comprometerem com questões amplas e arriscadas em meio a um Fla x Flu em que reputações são destruídas da noite pro dia. Óbvio que recomendar o isolamento é a melhor saída, a mais segura. Mas é possível? Sendo possível, por quanto tempo? E ao custo de quantas vítimas?
Médicos conhecidos dizem que desde fevereiro os profissionais da área contrários ao lockdown estavam sendo considerados párias, irresponsáveis, etc. Mas eles têm seus pontos de vista. Estão pensando na efetividade das ações, no que acontecerá em seguida, na infraestrutura e na condição daqueles mais pobres que eles olham diariamente no olho, em suas rotinas. É o pobre real, diferente daquele que o consciente caviar conhece das estatísticas.
É preciso avaliar como fazer isso sem jogar a sociedade numa tragédia sem precedentes. É aí que o debate está empobrecido.
Enquanto não se souber mais sobre o vírus, a tese da imunização pela população pode não ser como se espera. Sendo assim, a melhor resposta não seria apenas o isolamento por idade e vulnerabilidade, mas também por atividade.
É fundamental isolar todos que possam ser isolados, todos que atuam em parte da economia que poderá se recuperar com mais facilidade, como é o caso do comércio de roupas, bens duráveis, bares, etc. Ou atividades como esportes, cultos, shows, etc. Vai ocorrer prejuízo, desemprego, empobrecimento, não há dúvidas.
Mas se priorizarmos o que pode fazer a economia retomar mais rápido, menor tempo será o período de exposição da sociedade à crise econômica. Raciocínio, por incrível que pareça, igual ao combate ao próprio vírus.
Os recursos e ajuda governamental disponível poderão ser direcionados a essas atividades garantindo a rápida recuperação dos empregos ou, até mesmo, a manutenção dos mesmos. A mesma quantia financeira poderá ajudar um número maior de famílias, pessoas.
Se grande parte da população estiver em casa, aqueles que precisam sair para atividades essenciais também estarão protegidos, afinal o que transmite o vírus não é o ar livre, mas sim o contato com outras pessoas.
É fundamental também considerar que as atividades essenciais envolvem tudo que permita o menor impacto possível na economia. Um restaurante de estrada é essencial para a rotina dos caminhoneiros, para continuarmos no mesmo exemplo do início.
Outra questão que está sendo discutida no calor do radicalismo. Qual é o motivo lógico para se voltar às aulas nesse momento? Apenas alunos de pós graduação e estagiários em pesquisas precisariam sim voltar à linha de trabalho. É hora da ciência trazer soluções, enfrentar o debate, analisar números, hipóteses, etc. E não é apenas a ciência médica.
Soluções mais eficientes de produção de equipamentos médicos, por exemplo, virão da engenharia e não da medicina. Operacionalizar a produção e a distribuição destes bens virá das fábricas que não se envolvem com alimentos. Fundamental estimular a parceria entre universidades e iniciativa privada em regime de urgência.
Oficinas mecânicas e lojas de peças precisam funcionar. Já há relatos de agricultores com máquinas paradas. O cronograma da agricultura não se submete ao vírus, mas sim ao clima. Se houver atraso de colheita e de plantio, há frustração de safra, desemprego, inflação no preço dos alimentos que impactará os anos seguintes. Lembra aquela estimativa de 31 a 33 mil mortes?
Apesar de desprezível, é possível compreender a demagogia de alguns políticos dizendo frases de efeito sem nenhuma correlação com as ações que estão sendo propostas. Afinal, eles vivem disso, consequência justamente de uma sociedade em que, mesmo os educados, fazem questão de banalizar o debate.
Agora, qual é o motivo para um cidadão comum agir com demagogia? Qual o efeito prático desse posicionamento, além de alimentar o populismo dos governantes?
Interessante é que os hipócritas lacradores adoram comparar a situação que vivemos com a de uma guerra. Nos digam então, qual guerra na história da humanidade foi vencida sem que uma parte da sociedade fosse à luta?
E antes que algum imbecil me acuse de não ligar para a gravidade do Covid-19, no meu círculo familiar mais próximo, são seis pessoas que provavelmente não aguentariam a doença por problemas respiratórios ou cardíacos; eu inclusive.
Vamos elevar o nível ou vamos continuar alimentando a demagogia e inoperância dos governantes que foram eleitos para enfrentar tais problemas?
Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, sócio diretor da Athenagro
Consultor de Gestão | Transformação Digital | Inovação | Treinamentos | Liderança | Resultados
1 a👏👏👏
Engenheiro Agrônomo e Diretor Comercial na Casa da Lavoura
4 aExcelente reflexão Maurício Palma Nogueira !
Profissional independente de Engenharia civil
4 aEssa troca de ideias é interessante. Temos um ponto de vista médico, correto. Temos um ponto de vista econômico também correto, pela informalidade de trabalho, e o baixíssimo caixa das empresas. Duas frentes de batalha, a serem enfrentadas, com muita responsabilidade, e bom senso. Eu disse bom “senso “, precisa ir destravando à economia aos poucos com os mais jovens indo para ativa. Nas classes sociais mas baixas, nas favelas, têm casas ou cômodos que moram ou dormem muitas pessoas, não têm como confinar. Porem os médicos, a logística da da saúde precisam de um tempo para se organizar, para salvar vidas, avaliar resultados com medicamentos; leitos foram e estão sendo criados. Acho que o ministro da saúde é bom, posso estar enganado, mas já tivemos ministro que não tinha nenhuma formação, só era amigo do rei. A união faz a força Ouvir, pensar, avaliar, ninguém é dono de uma verdade só. Parabéns pelos pontos de vista.
Coordenador Comercial no Grupo Água Bonita
4 aO vírus que tem atingido nossa sociedade é o vírus da IGNORÂNCIA, esse é perigoso e não tem limites.