Olavo de Carvalho e a verdade filosófica pelo pensamento independente
Ao detonar a patologia intelectual brasileira de vocação marxista, O Imbecil Coletivo mostra construir um pensamento independente

Olavo de Carvalho e a verdade filosófica pelo pensamento independente

A leitura de O Imbecil Coletivo — Atualidades Inculturais Brasileiras me remeteu, olha só, a Relatos Selvagens, o extraordinário filme de Damián Szifrón, e à grandeza do cinema argentino em contraposição à miséria da nossa produção artística.

Intuí o tamanho do estrago que os equívocos da geração intelectual que cresceu nos anos 60 podem ter provocado em nosso intelecto, em nossas amarras políticas e em nossa incapacidade de pensar e produzir intelectualmente com independência.

De buscar a verdade filosófica acima da ideologia e da ação política por busca de poder.

Não me lembrava de tê-lo lido ou de não tê-lo entendido ou de não ter sido marcante o suficiente o que li da edição original que redescubro intacto na minha estante desde o lançamento, em 1996. Edição da Academia Brasileira de Filosofia em parceria com a Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro.

Por certo, não tinha a formação intelectual necessária. Fosse para escalar o monumento de construção filosófica da intimidante formação filosófica do autor, fosse para perceber a graça dos malabarismos retóricos elaborados com a clareza dos bons jornalistas e a contundência dos grandes polemistas.

Certamente não alcançava os objetivos da argumentação e sua relação com o objeto, embora o frescor de abordar e suscitar polêmicas frescas a partir dos cadernos culturais que me sempre me fascinaram. 

Ou não concordava com ela, contaminado que estava pelo caldo de cultura que também em mim cobrava pelo que ele denunciava: engajamento e sentido de utilidade no que eu tentava produzir artisticamente contra a busca da verdade pela verdade.

Retomando a folheada e em seguida a leitura, na última semana, agora já numa compulsão de adolescente, me lembrei de discussões no Facebook sobre o filme e o cinema argentinos, à época do lançamento, em 2014. 

Um grande artigo do cineasta Cacá Diegues em O Globo, entre os tantos reverenciais na imprensa e nas redes sociais, me suscitava a pergunta: por que a Argentina havia chegado tão longe do Brasil a tais patamares da alta literatura, no que ela tem de valores universais, diante da qual a produção brasileira das últimas décadas era uma mixórdia?

Enquanto o cinema brasileiro saía pelo país afora, se alimentando de uma idealizada construção audiovisual da nacionalidade, procurando registrar nossa diversidade continental e adotando o barroco como linguagem do oprimido terceiro-mundista, os argentinos se concentravam na metrópole de Buenos Aires, narrando dramas urbanos universais, na linguagem naturalista da globalização, ao alcance sem esforço de qualquer um, em qualquer canto do planeta.
Em Relatos Selvagens, O Globo

Me lembro de ter recorrido a uma grande tese de mestrado que virou livro, da professora de Literatura da UFRJ, Flora Sussekind. Tal País Qual Romance me apontava para a praga da busca da identidade nacional que contaminou toda a literatura desde que se publicou livros por aqui, com raríssimas exceções. Bendito seja, Machado de Assis.

A tese de 1979 vinha no calor da onda do romance reportagem, a expressão mais visível do uso da literatura para decifrar nossas mazelas sociais, e às vésperas do filme mais cara do Brasil impossível. Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues e 1980, era outra tentativa de leitura do país a partir dos escombros deixados na Amazonia descaracterizada pela onipresença da TV na modificação dos costumes.

Relatos Selvagens e seus seis contos arrebatadores sobre vingança, moral, ética e honra, de pobres diabos frágeis diante de suas circunstâncias, não tinha nenhuma pretensão de explicar o país. Muito menos professar alguma ideologia de tomada de poder. Era o homem, por inteiro, tentando entender-se e entender o sentido da vida e de suas ações sobre os outros.

Fazendo as contas e mirando o vazio cultural dos 80 que sobreveio ao esgotamento da ditadura militar, eu tentava um balanço do engajamento ideológico da produção artística que parecia vir de longe, desde pelo menos o romance regionalista dos 30.

Não me lembrava de nada desprovido de engajamento, de nenhum grande personagem universal produzido por nossos autores, mesmo e até na grande dramaturgia televisiva das novelas dos 70, de grandes autores teatrais de esquerda: Dias Gomes, Bráulio Pedroso, Jorge Andrade.

O cinema, que viria renascer exatamente pela época do livro de Carvalho, é uma volta ainda mais radical à obrigação de fazer história e resgatar identidade, no Carlota Joaquina, de Carla Camurati, e no Central do Brasil, de Walter Salles.

De certa forma, davam sentido ao que Olavo de Carvalho viria a dizer, nos 40 artigos e três anexos debochados com que escaneou em 380 páginas todo o pensamento intelectual do período que vai de 1992 a 96, para desancá-lo como impostura e reflexo de nosso atraso.

Estupidez coletiva

Estamos em meados dos anos 90. 

Encaminha-se a eleição do sociólogo uspiano Fernando Henrique Cardoso, na crista do Plano Real, em meio a duas derrotas de Lula nas duas últimas eleições presidenciais e o mandato tampão de Itamar Franco subsequente à queda de Fernando Collor de Mello, que direita e esquerda ajudaram a derrubar.

Há um clima de justiçamento no ar. Toda a classe pensante nas universidades, nos jornais e no showbusiness, representada na voz ostensiva do cantor elevado a filósofo Caetano Veloso, pede justiça contra todo o estamento político à direita, visivelmente apodrecido depois da CPI dos Anões do Orçamento que bombara depois da queda de Collor.

Como procurava culpados por não ter produzido nada de relevante na década que sobreveio ao fim da ditadura, essa classe pressionava o novo ministro da Cultura Francisco Weffort por mais verbas e se encantava com o que se chamava de nova esquerda.

Seu ídolo, ostensivamente paparicado por jornais e revistas, era o deputado José Genoíno, o ex-guerrilheiro jovem, simpaticão e muito articulado. Estava em todas as publicações respeitáveis como porta-voz de uma nova geração que abandonara as ilusões da luta armada para conquistar espaço dentro e com os instrumentos da democracia. 

Já não era mais “revolucionário”, na expressão que opunha os modernos de 60 aos “reacionários”. Era progressista. E nada mais progressista que denunciar o mundo injusto e defender os movimentos sociais do tipo MST que substituíam a guerrilha.

Era mais ou menos reflexo de outra onda, a do politicamente correto, uma graça americana que começava a desembarcar aqui para impor nomes mais palatáveis à realidade. E dava corda aos movimentos de negros, mulheres e gays que pediam, pela ordem, reparação histórica, equiparação de obrigações e leis especiais de proteção.

Os filósofos mais pops da mídia, os uspianos Fábio Konder Comparato e José Arthur Gianotti, contestavam, respectivamente, a sensibilidade social do neoliberalismo que atribuíam a FHC e a ideia de massificação, já que era possível encontrar na mesma prateleira CDs de canto gregoriano e de Madonna.

Era um tempo em que, sob os conceitos de inconsciente e de ideologia, da psicanálise e do marxismo, o pensamento intelectual brasileiro tomava por inviável ou superado o pensamento autônomo e independente. Interpretava tudo sob o prisma da luta de classes e sobrepunha as conveniências coletivas aos valores universais de ética, moral e honra.

Uma época em que tudo era relativo e justificado pelo contexto, extintas as barreiras que separavam o alto conhecimento da sabedoria popular, a verdade filosófica da sabedoria coletiva.

Uma imbecilidade coletiva restrita ao grupo formador de opinião da sociedade, contaminada por um marxismo redutor que vinha desde os anos 30.

Produto de uma “patologia intelectual brasileira”, que o então jornalista Olavo de Carvalho vinha esboçando por entender em 20 anos retirado da vida cultural e depois de dois livros sobre, grosso modo, a tirania do Estado sobre o indivíduo: A Nova Era e a Revolução Cultural e O Jardim das Aflições.

O Intelectual coletivo

Que está relacionada ao “intelectual coletivo”, denominação do filósofo italiano Antônio Gramsci ao intelectual do partido que deve fazer a revolução por dentro. Ocupando espaço nos organismos culturais, para influenciar ações de médio e longo prazo para a tomada pacífica do poder.

Esgotada por anacrônica a teoria proletariado versus burguesia, a estratégia de Gramsci, fundador e secretário geral do Partido Comunista italiano, deu novo sentido à intelectualidade que tomou as universidades depois da Segunda Guerra e avançou para a imprensa e a indústria editorial depois da ditadura e das ilusões armadas.

Agora já não era mais a tomada do poder pela ação direta, mas pelo domínio dos meios de formação — imprensa, universidade, indústria editorial e até a igreja. Quem se lembra da Teologia da Libertação? Agora, o progressista substituía o revolucionário na luta contra o sistema. A burguesia era substituída pelo estamento burocrático ao qual caberia combater e, posteriormente, ocupar.

(Foi uma dominação e uma introjeção tão forte que, décadas depois, já tendo tomado o estamento por via de eleições, esses “progressistas” continuavam no palanque combatendo os governos que eles mesmo comandavam.)

Já o imbecil coletivo, na acepção de Carvalho, não era a soma dos imbecis de uma comunidade, mas os que formavam a intelligentzia nacional, no sentido de um grupo de pessoas que se se falam, se movem e se influenciam por um interesse comum.

Uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se re reúnem movidas pelo interesse comum de imbecilizar-se umas às outras.
O Imbecil Coletivo, em Prólogo

Essa igrejinha, que ganhou maior expressão nos cadernos culturais dos grandes jornais dos anos 80 e 90, se cristalizou rejeitando o pensamento divergente, legitimando apenas obras, autores e intelectos que rezavam segundo a cartilha da utilidade prática do marxismo e advogando um pensamento nacional que nada mais era que imitação apressada ou rejeição do grande saber universal.

Olavo lista, entre outros, os nomes de intelectuais de fato independentes marginalizados dessa reza e dessa cartilha, como Mário Ferreira dos Santos, Gilberto Freyre, Oliveira Vianna e Otto Maria Carpeaux.

Quando ele a flagra, no esplendor de seus cadernos culturais, da sanha dos uspianos na imprensa e na marcha célere da esquerda para tomar o poder pelas vias democráticas, o produto cultural dela resultante era pífio. A busca da verdade provisória e estupidamente nacionalista era o contrário do que se espera do pensamento independente.

Nela, 

  • Fernando Henrique Cardoso era insensível não porque comprova que o fosse, mas porque pertencia a uma classe.
  • José Genoíno era democrata, mas era razoável que defendesse a invasão de terras comandadas pelo líder do MST, José Rainha. 
  • Os homens do estamento a quem cabia justiçar eram naturalmente maus. Negros, mulheres e gays, naturalmente bons.

Era a imbecilidade coletiva, o pensamento construído por uma casta segundo sua impossibilidade de enxergar além do seu terreiro para construir a verdade filosófica, a verdade universal em que nem todos resultam não naturalmente maus ou bons.

Finalidade de ação política

Ele mesmo um pária rejeitado ou censurado por esse estamento cultural, Carvalho desanca sem piedade os grandes personagens midiáticos da época. No estilo demolidor de reputações e unanimidades que vem lhe tornando conhecido pelas razões erradas desde que ganhou fama como mentor do governo Jair Bolsonaro.

Seu estilo de bater sem piedade acima da linha da cintura, muitas vezes em termos que não se escreve, ontem ou hoje, poderia dar a contribuição que seus críticos precisam para desqualificá-lo como interlocutor. Mas é tal a sua intimidante formação teórica, de quem parece já ter lido e entendido tudo, tal a consistência dos argumentos e a qualidade — rara entre os filósofos — de sua escrita, que é difícil contestá-lo.

Nele, a desqualificação do adversário por via do argumento tem quase status de princípio filosófico. Na resposta em que os amigos lhe condenam o tom brutal contra uma pessoa amável e de boa fé como Fábio Konder Comparato, ele devolve numa nota de rodapé:

As doçuras da personalidade do prof. Konder são um benefício reservado àqueles que privam de sua intimidade. Nós, o público, recebemos desse cavalheiro apenas as suas ideias, e temos o direito, o dever de julgá-lo por elas somente. Aquele que defende os direitos da estupidez majoritária contra a inteligência solitária é, em toda a extensão da palavra, um homem de mentalidade brutal, um bárbaro, um violento, em toda a extensão da palavra, repito, e mais ainda no sentido que lhe dá Éric Weil — um sentido bem mais temível, aliás, do que ela tem na acepção vulgar. Se as boas maneiras do prof. Konder tornam a brutalidade da sua ideologia invisível aos olhos de seus amigos, é porque amica veritas, ser mais amicus Konder . Ademais, por que a responsabilidade filosófica acima de toda consideração pessoal haveria de ser uma qualidade humana tão inferior à polidez do prof. Konder?
O Imbecil Coletivo, em Prêmio Imbecil Coletivo 1995

Tal visão de mundo é parte de uma estratégia que, curiosamente como os gramscianos, também têm finalidade de ação política. Numa de suas aulas recentes, a 432, admite que agiu naqueles tempos claramente motivado por desqualificar os símbolos em que a esquerda acreditava.

— A esquerda tinha uma autoconfiança enorme e era preciso quebrar essa autoconfiança, senão destruindo seus referenciais de pensamento.

Entre esses, estavam Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Paul Sartre e toda uma constelação de filósofos franceses que, segundo ele, deveriam estar há muito no lixo da história. Eram ícones dos 60 de cujos cacoetes a intelectualidade das universidades ainda vivia, imitando mal ou superando pior ao imitar as novas correntes de pensamento americana, também, a seu ver, à época, decadentes.

A época da Nova Esquerda, da New Age, do politicamente correto e da programação neurolínguistica, entre outros, eram os sintomas de decadência que a esquerda incorporava acriticamente. Fosse na substituição piorada do modelo francês ou na tentativa, ainda mais absurda, de se plasmar um pensamento nacional.

Como se pensamento independente pudesse ter região, pátria.

Verdade filosófica

Não conheço o suficiente a obra de Carvalho e nem suas motivações atuais, para ver onde suas crenças fundas na busca da verdade filosófica trombam com a ação política que ele começa a desenvolver, envolvido que está até o osso com as motivações políticas do governo a quem empresta seu prestígio e sua doutrina.

É mais do que um caso de confluência de interesses, em que sua tentação de derrubar as imposturas e denunciar os prejuízos quase insanáveis que o pensamento único causou à produção cultural, à moral e aos valores pátrios. 

“Todas as pesquisas de opinião mostram que o povo brasileiro é acentuadamente conservador. No entanto, num país de maioria conservadora, você não tinha um partido conservador, um jornal diário conservador, um canal de TV conservador, uma universidade conservadora, nada. Quer dizer, a maioria não tinha canais de expressão. A maioria estava excluída da política.”
> Em  Jornal CGN

Mas em que ponto ele não atropela a busca da verdade, nada mais que a verdade, na medida em que monta o cavalo das circunstâncias?

Na tal aula 432 em que explica suas estratégias, ele se mostra agora empenhado em desqualificar as referências intelectuais dos ministros do STF.

Da mesma forma que procurou desmontar as referências da esquerda para aniquilar sua estima como condição de evitar o seu domínio, ele anda convencido de que é preciso cortar na base as tentações dos ministros do Supremo em sua cruzada, para ele visível, de dominar o país pela auto-legislação.

Anda estudando a fundo Ronald Wordkin, um dos gurus da nova geração de juízes que se atribui a tarefa de interpretar como valores absolutos, segundo suas vontades, e não aplicar a lei.

Talvez porque sua luta seja diferente e não vise a tomada do poder, mas que se justifique plenamente em nome da busca da verdade. Não à toa, ele abomina ser chamado de ideólogo, no sentido de quem professa uma ideologia para objetivos práticos.

Mais de uma vez disse que prefere continuar na luta, talvez vã, pela busca da verdade a ocupar qualquer cargo público. Mesmo que fosse o imponente de embaixador nos EUA, para o qual teria sido convidado.

— Só se fosse temporário.

Até que ponto essa verdade possa ser comprometida pela verdade imediata de seus novos adoradores, é uma questão ainda em aberto. Há que conhecê-la. 

Independente de suas contradições, sua obra de que O Imbecil Coletivo é o retrato mais vistoso, é grande aprendizado e estímulo sobre a busca da verdade para além das tentações da hora, dos interesses de grupo e das ideologias. 

Uma verdade universal que se busca com estudo, pesquisa, comparação de evidências, distanciamento crítico e desprendimento histórico. Não militância, ostensiva ou camuflada.

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