ONZE DIAS

ONZE DIAS


Hoje estou muito feliz porque estou comemorando onze dias.


Eu sei, provavelmente você deve estar pensando que, seja lá o que for, não deve ser grande coisa; parece muito pouco para comemorar algo porque, em teoria, nada de realmente relevante está 100% concretizado em onze dias, certo? Errado. O tempo, como todo o resto, é algo muito relativo.


No dia 30/06/2017 eu estava junto com a minha mãe em um mercado quando minha vida de fato começou, da pior forma possível. Ela e meu pai tinham saído para comprar um carrinho de bebê (não faço a menor ideia do que se trata, mas me parece algo bem útil, assim que descobrir eu escrevo explicando) e um grande tiroteio se iniciou.


Gostaria de fazer um breve comentário sobre tiroteios: São uma péssima ideia, quem inventou isso deveria ser castigado com rigor, nunca esteja no meio de um, eles são realmente horríveis. E já houveram mais de 2600 no Rio de Janeiro apenas em 2017, dá para acreditar? O que essas pessoas têm na cabeça? Por que ninguém faz nada para impedi-las? Ótimas perguntas, nenhuma resposta.


Voltando ao meu tiroteio em particular, uma bala perdida, outra coisa que acontece com muita frequência no meu estado, me atingiu. Para ser completamente honesto, ela acertou primeiro a minha mãe e depois me feriu. Isso tudo é o que dizem, é claro, eu particularmente não vi nada, estava muito ocupado cuidando da minha própria vida. Nós dois fomos as vítimas da 624ª bala perdida de 2017, um número que não existe nem mesmo em regiões atingidas por guerras.


Eu já conheço várias coisas. Sou capaz de reconhecer meus pais pela voz, tenho gostos musicais próprios e possuo uma personalidade razoavelmente definida. Mas acho que precisarei frequentar alguns bons anos de aula para entender porque todos estão me chamando de “guerreiro”. Ainda não sei isso, mas aprenderei no futuro que poucas pessoas levam um tiro que perfura seus dois pulmões, quebra três costelas, ombro, clavícula, lesiona duas vértebras e sobrevivem para contar a história. No meu caso, estou conseguindo essa proeza pesando pouco mais de três quilos agora.


Obviamente a dor foi insuportável e outras terríveis se seguiram: Meu parto realizado às pressas, a cirurgia de emergência, a descompressão da minha pequena medula óssea, tudo isso no dia 30. Meu primeiro dia de vida foi carregado de emoções, todas muito desagradáveis. Minha mãe já está melhor; no meu caso, a luta continua.


E, por mais incrível que pareça, há quem diga que eu tive sorte. Ontem mesmo, dia 10, uma mulher grávida foi atropelada no meu estado por bandidos em fuga. O bebê, que teria o mesmo nome que eu se tivesse nascido, não sobreviveu.


Hoje eu já respiro sem ajuda de aparelhos e alguns médicos, mais otimistas, dizem que tenho inclusive a chance de um dia conseguir andar, apesar da lesão na minha espinha. Espero que eles tenham razão, seria bom ter a chance de jogar futebol com meu pai no futuro.


Por tudo isso, quero comemorar muito meu dia onze e torcer para que muitos outros dias venham no futuro. E que chegue um momento em que crianças não corram o risco de morrer sem ter tido a chance de serem acolhidas nos braços carinhosos dos seus pais por causa da estupidez do ser humano.


Meu nome é Arthur, sou brasileiro, tenho onze dias de vida e fui baleado em 30/06/2017 ainda dentro do útero da minha mãe, após 39 semanas de gestação. E, desafiando todas as probabilidades, sou mais um sobrevivente.


FIM


O autor: Rodrigo de Oliveira é escritor, tem 40 anos de idade, pai do Felipe de 13 anos e da Fernanda de 11. É o autor da saga “As Crônicas dos Mortos” e do livro “Os Filhos da Tempestade”.

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