Os causos da Dona Necar

Os causos da Dona Necar



Carta para a minha Mãe


São Paulo, Julho de 2023


Hoje resolvi sentar e escrever esta carta para você, mãe. Gostaria de que estivesse aqui comigo. Estava preparando o almoço e me lembrei, não sei bem o porquê, de você dando opinião de como deveria ser feito. Além de gostar de um arroz soltinho, você também queria que ele formasse uma rapa no fundo. Era felicidade pura quando isso acontecia.

Isso me fez lembrar do seu rostinho animado, coisa rara, pois as atribulações da vida e seu jeito, um tanto controlador, a faziam ficar mais carrancuda. Engraçado, estar escrevendo e chamando-a de você! Imagina! Tínhamos, eu e meus irmãos, de pedir a benção e usar o senhora, qualquer coisa diferente era falta de respeito.

— Olha o respeito, menina! Eu sou a sua mãe! — asseverava sempre que acreditava estar cruzando o limite.

Sabe, entendia que era o jeito que você aprendeu a ser, mas seria tão bom se pudéssemos ter sido mais amigas e não tanto mãe e filha, com essa distância por hierarquia e formalidades.

A vida é curta e passa rápido, daria tanto para poder voltar alguns anos e mudar algumas coisas. Porém, para fazer isso eu precisaria voltar ao passado. Se ao menos eu tivesse um DeLorean, ou um cientista como o Doc Brown, para conseguir isso. Ou, então, o objeto mágico da Hermione, em Harry Potter, o vira tempo. Conjecturas, dos filmes que costumava assistir na sessão da tarde ou domingo, não me recordo bem.

Cada momento que passávamos ao lado uma da outra, mesmo em silêncio, serviu para aparar certas diferenças, criar mais afinidades, amadurecer, da minha parte. Já a sua, só podia receber atenção e amor. Com o passar do tempo, foi esquecendo das boas risadas, das histórias, enfim, a memória foi enfraquecendo.

E, por falar em histórias, lembra que costumava contar de como a vida, para quem morava na roça, era sacrificada? Gostaria de ouvi-la contar novamente, como tinha de atravessar, a pé, duas ou três fazendas para chegar à escola e o medo que tinha de encarar um touro (ou seria vaca?), bravo no meio do caminho? Se isso acontecesse, precisava se esconder e lá se ia um dia de aula. Que já não era regular.

Você era sempre a felicidade dos sobrinhos, meus primos, com seus causos do tempo de fazenda. Todos adoravam sentar-se à sua volta e ouvi-la contar de como o vô — seu pai — colocava pimenta na boca dos filhos, quando dormiam de boca aberta à mesa. Ou sobre as desavenças dos irmãos (porque todo irmão que se preze tem uma), como aquela que lhe deixou uma cicatriz no braço?

Lembra-se disso? Queria ter gravado “esses causos” porque hoje posso confundir uma história com outra. E, todas poderiam dar um belo livro de contos, ou causos, que fariam muitos leitores rirem até chorar.

Estou sentimental, uma coisa me lembra outra e eu vou vagueando pelos ‘causos’ de que me recordo. Uma das coisas que era tão peculiar em você, era o fato de fazer questão de cumprimentar os filhos, no horário em que nasceram. Confesso, que sempre me achei privilegiada, uma vez que nasci pelo meio-dia, os irmãos não tiveram sorte, recebiam ligações alta hora da noite e de madrugada. Boas recordações.

Recordar é Viver, como dizia a música e era um de seus jargões favoritos. Sua coleção de histórias era infinita. Nos enchia de alegria ao ouvir relatar como conhecera o pai. Eram dois amantes da música e da dança e essa paixão os levou a se conheceram em um salão, acredito que se chamava Madureira, quando começaram a namorar tinha a história de guardar lugar na fila do bonde. Ei, é verdade, vocês eram do tempo do bonde!

Você nos contava que seu avô perdera uma fazenda por não saber assinar, em Goiânia, e, que se isso não tivesse acontecido, talvez a vida poderia ter tomado um caminho diferente ou não. Uma vez que o seu pai também perdeu terras, só que por escolhas erradas.

Apesar de ter-se mudado para a cidade, seu amor era a vida no campo, na fazenda. Gostava de cozinhar e era uma cozinheira “de mão cheia” como se diz. Fazia bolos e pães, que só de pensar já dá água na boca. Alguns, até conseguiu me ensinar, mas certamente, nunca serão iguais ao seus.

Agora, falando de fazenda, me veio a memória outra recordação: a lembrança de você colhendo manga. Essa fruta era a sua perdição! Era capaz de comer uma dúzia de uma só vez! Certa vez, essa gana pela manga fez com que uma espinha inflamasse e ficou com o rosto inchado, nem assim, perdeu a paixão pela fruta.

E, como uma lembrança remete a outra, essa me fez recordar da sua vaidade extremada. Mesmo em casa, tinha de estar impecável, passava seus cremes no rosto, depois o batom, a sombra; penteava os cabelos, com o seu pente favorito, as unhas tinham de estar sempre perfeitas. Quando completou seus 80 aninhos, parecia mais uma mulher de 60, jogando alto. Mas na sua cabeça, era mesmo uma mulher de uns 30 anos, talvez.

Quanta dor de cabeça este seu pensamento me deu! Por não aceitar seus limites e, com eles, os problemas de saúde que vieram depois, viviam sobressaltando o meu coração. Acabei criando uma rede de vigias para me relatar seus passos.

Quem ama cuida, dizem. Mães cuidam, mimam, educam seus filhos. Nem sempre da mesma maneira, nem sempre com entendimento mútuo. Ficam coisas a serem ditas e, outras tantas, que não deveriam ter sido ditas. Mas, no final, o que conta mesmo é o amor. Com este sentimento, todo o resto fica para trás. Ficam as lembranças. Ficam os causos. Porque hoje, tudo o que resta são apenas recordações.

Resolvi escrever esta carta porque hoje lembrei-me de você, mãe.

Desta sua amada filha,

Que irá sempre recordar de seus causos,

Com amor,

Vera

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