Os desafios para um sistema de livros digitais

Em 2007, com o lançamento do Kindle, da Amazon, e depois com a produção de outros dispositivos e softwares de leitura tecnológicos, parecia que os livros impressos estavam fadados a se tornarem artefatos museológicos e que os livros digitais dominariam definitivamente a cultura letrada. Entretanto, passados pouco mais de dez anos, essa previsão não se materializou. Por isso, passei a refletir um pouco sobre essa questão, que me parece relevante para a educação e para o mercado editorial.

Para refletir sobre essa questão do limite do alcance de livros digitais até o presente momento, ao contrário do sucesso inquestionável da música digital, talvez possa ajudar, para pensar a comparação entre o livro físico e o livro digital, como esses dois tipos de livros são percebidos em relação à percepção de propriedade que se tem sobre eles. Nesse sentido, convém sopesar aqui também a produção do livro físico e do livro digital, como modelos de negócio. Em relação ao livro digital, podemos comparar o seu modelo de negócio com o da música digital, que conseguiu outros resultados.

Começando pelo livro físico, podemos pensá-lo como um objeto e como mercadoria. Uma vez que o livro físico é comprado, o autor ou a editora quase não tem mais poder sobre a cópia impressa dele enquanto objeto. Contudo, a produção do livro físico é mecânica e, dificilmente, uma pessoa comum poderia recriar uma cópia do exemplar com qualidade. Uma cópia assim ficaria mais cara que a simples aquisição de outro exemplar original do livro. Assim, as cópias xerografadas de livros, ou de partes deles, são de qualidade inferior e só prestam a um uso pessoal e, mais propriamente, temporário. Com a entrega do livro e a efetivação do pagamento, vencidos os prazos de arrependimento, devolução ou garantia, o livro consiste num objeto, e é conformado como bem ou mercadoria de propriedade exclusiva do comprador. Antes de vender, a editora precisa produzir fisicamente cada um dos exemplares, com altos custos de armazenagem, logística, distribuição e venda. Ao comprar, o leitor adquire um alto poder de propriedade sobre seu exemplar e pode fazer o que quiser com seu livro, dentro das regras legais, ele pode ler quantas vezes quiser e conseguir, pode anotá-lo, pode também doar, emprestar ou vender o livro para outra pessoa. Claro que o proprietário também pode rabiscar, pintar, rasgar, queimar, descartar. O leitor pode colocar o livro numa vidraça selada a vácuo, em destaque na sua sala, ou em um cofre. Pode ler o livro para outra pessoa ou pode usá-lo para apoio de porta. Porém, como objeto físico requer cuidados específicos de armazenagem, limpeza e conservação, que ficam sob total responsabilidade do comprador. Com o tempo, o objeto-livro vai desintegrar-se. A duração desse processo depende de como ele é preservado. Em uma cidade poluída, como São Paulo ou Rio de Janeiro, um livro pode se deteriorar em meses ou em poucos anos, se não receber bons cuidados. Por isso, a meu ver, é uma mercadoria de consumo ou bem não-durável, visto que o objeto-livro, com o tempo, desgasta-se e, portanto, somente com a compra de outra unidade se pode usufruir outra vez de sua função original de leitura.

Diferentemente do livro físico, um livro digital nunca vai acabar. Na condição de arquivo digital, ou objeto digital, sua vida em sistemas de armazenagem digital é estendida indefinidamente. Ele nunca vai se desintegrar, mas será copiado e recopiado infinitas vezes em sistemas computacionais, com algoritmos que garantem a integridade de seus dados. Seus dados serão criptografados e divididos em inúmeros pedaços de sequências binárias, copiados e recopiados em centenas de discos de computadores em diferentes localidades do planeta. Ele existirá fragmentado em diversos discos de computadores, conectado a World Wide Web. Ao acessar o livro, aparentemente como mágica, o sistema vai coletar esses milhares de fragmentos, juntá-los, descriptografar os dados e reconstituir o livro em uma tela digital. Tudo isso em questão de nanosegundos. O leitor nunca vai precisar se preocupar com poeira, umidade, chuva, caixa de mudança, criança sapeca, cachorro ou traça. Contudo, o poder de propriedade sobre esse objeto digital pertence efetivamente a quem controla o acesso ao arquivo digital e o poder do leitor se limita ao acesso que é mediado pela loja controladora. Às lojas e/ou editoras não apetecem abrir mão desse controle porque uma cópia digital aberta do livro pode ser copiada infinitas vezes, pelo processo de reprodutibilidade técnica dos sistemas computacionais. Se o arquivo não receber um mecanismo de controle, qualquer um pode copiar o livro infinitas vezes, compartilhando esses arquivos e destituindo o caráter de mercadoria desse objeto, eliminado o lucro e a função capitalista dele. Assim sendo, a produção do livro como objeto virtual termina com a produção de um único arquivo, a partir do qual milhões de acessos a ele são permitidos, a um custo ínfimo. As empresas de software se depararam com esse dilema de controle da reprodutibilidade de suas mercadorias virtuais há décadas e criaram, para tornarem seus negócios lucrativos, o modelo de licenciamento. Cada cópia de um programa só funciona depois de uma autenticação, com um código, ou chave, única para cada cópia em particular. Assim muitos produtores de livros digitais aderiram o Digital Right Management (DRM), um sistema de controle, que verifica a validade de cada acesso a cada livro digital. Nesse modelo, a chave fica em posse da empresa que vende o livro. Você não consegue emprestar o livro, a não ser que a loja implemente esta “funcionalidade”. Numa analogia simples, é como comprar um carro, mas sem chave. Toda vez que o usuário quiser usar o automóvel, é como se ele tivesse que ir até a concessionária pegar a chave e, depois de estacionar o carro tivesse que devolver a chave a ela. Se um dia a concessionária mudar de endereço, ou fechar, o proprietário do acesso ao carro fica com um casco de carro, sem ter como usá-lo. Parece absurdo, mas é isso que exatamente acontece com o mercado de livros digitais. Ao comprar um e-reader e alguns livros digitais de uma determinada livraria, com a crise do mercado editorial, caso a empresa desative seus computadores servidores, o e-reader simplesmente não pode se conectar com a rede, que não mais existe mais, impossibilitando a leitura dos acessos aos livros adquiridos, como aconteceu com a loja  loja eReader.com, que deixou milhares de usuários internacionais sem acesso a seus livros legitimamente adquiridos. Ao se comprar um acesso a um livro digital em uma determinada loja, o e-reader de outra loja concorrente não pode ser usado para realizar o acesso ao arquivo digital do livro, forçando o usuário a adquirir apenas os equipamentos licenciados pela loja na qual foi adquirida a licença. É como se todo vez que o leitor quisesse ler o livro, ele tivesse que ir até a livraria na qual o livro foi adquirido e solicitar para colocar as páginas escritas nele. Se o leitor for até outra livraria, é como se a outra livraria não tivesse as páginas do livro adquirido.

Mas como isso deu certo em relação aos conteúdos musicais? Diferentemente de arquivos de livros digitais, que são gravações de textos, feitos para serem lidos, numa experiência de visão, os arquivos de música, são mídias com gravações de som, que podem ser ouvidos. O consumo do livro é um processo lento, que depende da decodificação linguística e mesmo da experiência do leitor com as letras, exigindo um tempo para interpretação de sua leitura. O tempo da experiência varia de leitor para leitor. O livro, enquanto objeto físico, apresenta uma experiência sensorial muito concreta, que não envolve apenas a visão, inclusive com as cores da capa, mas também com o tato, o olfato e a audição. O livro físico é um objeto lúdico, feito para ser manipulado com as mãos. O leitor estabelece uma experiência com a textura e a porosidade da fibra do papel e da letra impressa nele, percebe o cheiro do papel novo e da tinta. Ao folhear as páginas do livro, o leitor as escuta dobrar. Na palma da mão, o leitor pode entremear-lhe os dedos, lendo uma página aqui e outra qualquer, num simples movimento. O livro não emite luz direta nem indireta. O papel envelhece e muda como o tempo e a experiência concreta de leitura também muda, mas a impressão no papel nunca se apaga.

Em relação ao consumo da música, a experiência de audição de uma música gravada nas mídias de vinil e as músicas digitais guardam uma certa essência. Em ambas, a música sempre é executada em um tempo pré-determinado, que é igual para todos os ouvintes. Geralmente o tempo da música é relativamente curto se comparado ao tempo de leitura. O ouvinte pode, contudo, repetir a reprodução da música quantas vezes quiser, mas não pode mudar o tempo de reprodução da música sem distorcer sua experiência. A experiência da música é predominantemente auditiva, menos concreta que a da leitura. Na música podemos sugerir outros sentidos, mas os ouvintes não usam tato, nem precisam tanto da visão, nem de olfato. A música já poderia ser considerada um objeto virtual per si, abstrato, pois ela não precisa ser processada. Quem processa a música é o músico, cuja execução pode ser gravada em alguma mídia. Ao adotar o modelo de negócios de acesso a músicas digitais, a experiência do ouvinte até melhorou em alguns aspectos, com o aprimoramento da qualidade dos sons. Aplicativos como Spotify, proporcionam o acesso virtualmente a quase todas as músicas disponíveis a um custo menor que a aquisição de um único álbum por mês. O ouvinte desistiu de ser proprietário de cópias físicas de músicas em mídias para ser um usuário por assinatura de um sistema que o conecta a milhares de músicas, em alta qualidade. A experiência com a música digital em relação à música analógica, na verdade, é melhor. Melhores tecnologias permitiram, inclusive, a portabilidade maior da música. Por meio do acesso aos streamings de áudio, o ouvinte pode ouvir quantas músicas quiser. Se o ouvinte quiser mudar de loja, ele compra outra assinatura que garante a ele o acesso, essencialmente, ao mesmo número de músicas, com diferenças nas ofertas de serviços associados a elas, como shows especiais e participações. A diferença passa a ser a da exclusividade a serviços e apresentações considerados premium.

Diferentemente da música analógica para a música digital, a transição da leitura analógica para a leitura digital não conseguiu melhorar a experiência, pelo contrário, reduziu a experiência com o livro físico. Se não consegue manter ou aperfeiçoar a experiência de leitura, penso que os equipamentos de leitura devem enveredar por caminhos próprios. Outras tecnologias devem ser aperfeiçoadas na busca de algo próximo a experiência de um papel eletrônico e uma assinatura que ofereça acesso a todos os livros, como na música digital, não mais a aquisição de cópias de objetos-mercadoria-digitais, construindo outro modelo de negócios.


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